AMOR

NOTA 9,0

Matheus Rego
Boite du Film
4 min readJun 29, 2018

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França, Alemanha e Áustria; 2013. Dir.: Michael Haneke. Com Emmanuelle Riva, Jean-Louis Trintignant, Isabelle Huppert e Rita Blanco.

O cinema de Michael Haneke é cru.

Não existem camadas de melodrama, condescendência, ilusões ou sensacionalismo. Tudo isso talvez esteja presente em seus personagens ou cenários. O olhar que ele dirige a eles, no entanto, é o de uma frieza que se faz clara através de uma movimentação de câmera objetiva, que nunca perde de vista seus atores — o grande objeto de interesse –.

A imagem que faço de Haneke é a de um cético cientista que se debruça com sóbrio interesse sobre a lente de seu microscópio. Sob essa lente, a movimentação cega e desordenada de bactérias que reagem a um agente externo.

Em Funny Games temos o espetáculo da violência banalizada como agente diminutivo da vida. Em Caché, um eurocentrismo de caráter mesquinho que sufoca seus personagens em sua própria paranoia e ódio. Em A Fita Braca, O Leviatã de Hobbes como presença constante.

Em Amour, por sua vez, Haneke é mais pontual; a morte.

Percorrer sua carreira é um ato de notar questões essencialmente humanas, com as quais temos a impossibilidade de lidar. São questões que inspiram medo, incertezas e inseguranças, de modo que nos é mais fácil buscar o caminho das ilusões e mentiras. Estas, por sua vez, geram recalque, que, em ultima instância, se traduz em constante tensão. Tensão sem alívio é desespero.

Eis a razão de seu cinema ofensivo — tido por alguns como sádico –. A apreciação estética de todas essas questões, levadas ao extremo, é um ato de forçar sobre o espectador o enfrentamento de uma realidade muito mais concreta do que aquela proposta pela indústria cinematográfica de Hollywood. A experiência pode ser dura e angustiante, mas o reconhecimento final daquilo que é proposto, e o enfrentamento direto de nossos tormentos, pode inspirar redenção.

Cada filme é uma tentativa de nos fazer aceitar nossa posição em meio a um universo caótico.

Parece coerente, então, que o mais aflitivo de seus filmes dê conta de retratar um casal de idosos.

Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) são dois ex-professores de piano, já com seus oitenta anos, que tem de enfrentar juntos a decadência física e psíquica de Anne, por ocasião de um AVC.

Pra mim, esse é o retrato de um casal retirado de um exilio intelectual no qual viveram durante a maior parte de suas vidas. Trata-se de duas pessoas que dedicaram a existência às questões da alma e às inquietações da mente.

Até a doença de Anne, a vida para os dois se resumia em contemplar e experimentar o mundo sob um viés idealista, ao ponto deste mesmo mundo se lhes apresentar como uma abstração e não como um espaço concreto.

Há uma cena que reafirma essa idéia, onde uma série de pinturas são mostradas. Numa sequencia em que essas pinturas são exibidas seguidamente, indo do impressionismo ao realismo, sempre retratando a natureza, elas parecem sugerir um movimento de abandono desse mundo abstrato (impressionismo) e a imersão numa realidade dura (realismo). Pela primeira vez em suas vidas, o casal é afligido por uma questão física, o que os traz para uma realidade material muito mais imediata do que aquela do mundo das idéias.

E aí se tem inicio uma jornada de desestruturação do ser — em ultimo momento a vida senil se resume a isso; uma continua desfiguração daquilo que um dia se foi –.

Assistimos ao fim da existência de duas pessoas — e são realmente duas pessoas pois, ainda que apenas Anne padece fisicamente, junto à ela se vão todas as lembranças e experiências de Georges, também –.

O ritmo do filme é dado pelo próprio cotidiano do casal — o que faz com que se desenvolva lentamente –. Apesar disso, há uma linha de constante tensão e expectativa que percorre o filme e nos deixa apreensivos. É aflitivo ver Anne ter seus cabelos penteados por uma ríspida enfermeira, mas também incomodo ouvi-la gemer continuamente por razoes inexplicáveis.

Em dado momento, Georges, que a essa altura já comprometeu boa parte de sua própria saúde fisical e mental em consideração aos cuidados da esposa, nos surpreende ao dar um tapa no rosto de Anne. Apesar do choque que o ato causa logo de cara, não leva muito tempo para percebermos o gesto como uma tentativa de trazer à vida uma pessoa inanimada. Tanto mais, a cena antecipa um momento futuro muito mais chocante.

É lá pelo fim da película que Haneke propõe sua grande questão. Em uma cena que há de provocar um misto de comoção e inquietação, somos deparados com a seguinte questão — quando a continuidade da existência se torna uma continua destruição da dignidade, não seria a morte uma resposta mais consciente? –

Bem, como é comum em Haneke, essas são questões que cabem a nós pensar e não a ele responder. Posso dizer que seu cinema continua inquietante, desafiador, provocativo, aflitivo e perturbador.

Há uma detalhe em Amour, no entanto, que o encobre o filme de uma fina camada de ternura. Apesar de seus clássicos cortes secos e da insistência em ter uma trilha sonora diegética, me parece que, pela primeira vez, o próprio Haneke se deixa comover pelo drama de seus personagens. A sequencia final — que não vou revelar — lança um olhar generoso para aquelas pessoas que tanto sofreram ao longo do filme, no lugar de seu costumeiro ceticismo frio.

Talvez, até mesmo para um cientista de alma dura como Haneke, seja custoso não se comover com as impressionantes performances de Trintignant e Riva.

Publicado em 18 de fevereiro de 2013.

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