O torcer é delas

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15 min readNov 14, 2017

Mesmo fazendo parte da história do futebol no país, mulheres contam como têm seu torcer questionado constantemente

As torcedoras do século passado | Foto: Fluminense Futebol Clube

Talvez você tenha ouvido falar por aí que o termo “torcedor” foi criado por causa das mulheres. No início do século XX, as pessoas assistiam a jogos de futebol no Brasil trajando roupas formais. Por causa do calor extremo do Rio de Janeiro, as mulheres tiravam suas luvas e, na apreensão do jogo, torciam-nas. O cronista Coelho Neto observou o comportamento e descreveu-o em um texto, referindo-se às “torcedoras”. A expressão então se consagrou.

Hoje, muitas mulheres continuam acompanhando o esporte. Porém, as luvas delicadas deram lugar às bandeiras; os vestidos rendados, às camisas com o escudo do clube; o silêncio, aos gritos e cantos no estádio. Em 2012, a Pluri Consultoria realizou uma pesquisa elencando as 20 maiores torcidas do país entre as mulheres: dos clubes mineiros presentes na lista, consta que 43,9% da torcida cruzeirense é composta por mulheres, enquanto a porcentagem é de 41,6% no Atlético Mineiro. Esses números mostram a presença feminina no futebol dos maiores clubes do estado como sendo praticamente igualitária a dos homens.

Por meio de longas conversas, nos aprofundamos nas histórias de diversas dessas torcedoras mineiras. E o que ouvimos foi que a paixão pelo futebol, enquanto força cultural e parte da identidade dos brasileiros, não é diferente quando se trata delas. “O primeiro jogo que eu fui foi em 2008, no Mineirão, e foi ali que eu descobri ‘caramba, eu amo isso’”, conta Cinthia Alves Nascimento, torcedora do Cruzeiro e parte do coletivo Resistência Azul Popular. A pesquisadora atleticana Bárbara Gonçalves conta como acompanhar o seu time foi fazendo parte de quem ela é. “Quando eu fui crescendo foi ficando sério, de chorar porque o time perdeu, de ficar mal e arrasada. Eu sou proibida de assistir clássico, por exemplo, porque eu já desmaiei em casa”, conta.

Foto: Arquivo Pessoal de Patrícia Muniz

“É muito poético, sabe, as pessoas na Praça Sete se abraçavam na rua, pessoas que não se conheciam, gritavam na rua, levantavam a bandeira, tiravam fotos, compartilhavam cerveja”, lembra Bárbara sobre a final da Copa Libertadores da América de 2013, quando o Atlético Mineiro se consagrou campeão. A atleticana Patrícia Muniz fala do momento com o mesmo carinho: “eu fiquei em êxtase, totalmente, eu falo que foi um nirvana”.

Chegando ao futebol

O contato de homens e mulheres com a torcida é diferente desde a infância — é comum que elas tenham de trilhar seu caminho sozinhas. Patrícia, por exemplo, conta sobre como seu irmão tinha liberdade de frequentar estádios, enquanto ela era proibida pela mãe. E o curioso: ele nunca gostou muito de futebol. “E eu ficava né, como que meu irmão pode ir em um jogo que nem gosta tanto, e eu estou aqui chorando em casa”, se recorda.

Mesmo que a família seja formada por apaixonados pelo futebol, as filhas mulheres costumam ter o acesso e suas experiências cerceadas. O pai, por exemplo, figura masculina que costuma viver a experiência dos estádios mais intensamente, presume que a filha não gosta ou então afirma que aquele ambiente é perigoso para ela — enquanto isso, seus irmãos ganham camisas, sentam na arquibancada e são matriculados em escolinhas de futebol. Assim, quando elas, já crescidas, se inquietam e exigem participar, outros costumam assumir a tarefa de apresentá-las ao mundo do futebol. Tios, irmãos e pais de amigas fazem companhia no estádio durante a adolescência e elas vão aos poucos construindo sua memória no esporte.

A atleticana e jornalista esportiva Júlia Sette sempre foi estimulada a gostar e praticar esportes. Seu pai considera esse um dos pilares formadores do caráter de uma pessoa, colocado no mesmo patamar da escola e da Igreja. Porém, mesmo ela tendo jogado futebol e torcido durante toda a infância, ele achava que ir ao estádio era demais. “Eu adorava ir aos estádios, na verdade meu tio sempre estava disposto a me levar. Meu pai era completamente contra, falava que é muito perigoso. E eu respondia ‘Cara, eu vou de qualquer jeito. Não quero saber, eu vou nesse estádio’”, conta.

I Encontro de Mulheres de Arquibancada de Belo Horizonte | Foto: Mariana Gonzaga

A também atleticana Ana Miranda, parte da torcida organizada Fúria Alvinegra, também foi criada em uma família de apaixonados. Sua mãe foi ao estádio durante as três gravidezes e ela e o marido viajavam de Kombi para assistir aos jogos. Por outro lado, Ana percebia que seus irmãos eram mais estimulados a participar do que ela: por exemplo, eles sempre ganharam uniformes de jogo do Atlético Mineiro, enquanto ela tinha que se contentar em herdar camisas velhas. Sua primeira camisa oficial foi comprada por ela mesma, aos 16 anos. “Por mais que não fosse por maldade, há sim uma diferença de tratamento, e hoje quando eu questiono essa diferença, eles falam ‘ah Ana, a gente achava que você não gostava tanto assim’”, se lembra. Mas ela sempre gostou, e muito. “Eu ía para todos os jogos, eu esperava para ir para o Mineirão, eu chegava enlouquecida, eu contava para os meus amiguinhos que eu tinha ido pro jogo do Galo”, recorda.

Na família de Jacqueline dos Santos, historiadora e ativista do coletivo Bloco das Pretas, as mulheres são as grandes torcedoras. Sua avó, de 93 anos, acompanha os jogos até hoje. Composta em sua maioria por cruzeirenses — menos a tia Marta, “diferentona”, que é atleticana — , a mãe, a prima, a cunhada e a tia são sinônimos de futebol para Jacqueline. Aos domingos, todos vão para a casa da matriarca em Sabará e acabam se reunindo para assistir aos jogos. O poder social agregador do futebol, conta a historiadora, a encanta. “São as lembranças positivas que eu tenho, é a memória afetiva que eu tenho [do futebol]”.

Quando já mulheres independentes, essas torcedoras saem do seio familiar e sentem logo de início que sua presença no meio do futebol gera desconfiança nos homens. É como se elas não fizessem parte daquilo. “Até hoje, quando você está no bar do estádio conversando alguma coisa sobre o jogo, alguém fala que você não entende, pelo fato de ser mulher”, relata Cinthia.

Outra forma de ser colocada de lado no futebol é ter que se provar constantemente. A mulher que gosta de futebol tem que ser uma especialista; caso contrário, é como se ela não gostasse o suficiente. “Se ela quiser ter o mínimo de respeito enquanto torcedora, ela tem que provar que ela entende, provar que ela gosta”, afirma Patrícia. Muitas vezes, os homens não são grande conhecedores de futebol, segundo Patrícia, mas sua fala é legitimada mais facilmente — basta que usem uma camisa de clube, por exemplo.

Mulheres organizadas

I Encontro de Mulheres de Arquibancada de Belo Horizonte | Foto: Mariana Gonzaga

Em uma rápida pesquisa pela internet, geralmente o que se encontra sobre mulheres em torcidas organizadas são em grupos exclusivamente femininos. Porém, as maiores e mais tradicionais torcidas de grandes clubes também contam com uma presença numerosa de mulheres.

Formada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, durante o seu mestrado Bárbara Gonçalves pesquisou sobre a inserção das mulheres em uma torcida organizada de Belo Horizonte — pensando no atual processo de criminalização desses grupos, ela optou por não revelar a torcida organizada com o qual trabalhou, pois não gostaria que o material fosse usado contra eles de alguma forma. Durante o trabalho, ela conheceu torcedoras determinadas a acompanharem seu time de perto, participar de caravanas, carregar bandeirões, puxar os outros torcedores para o campo. Mas, ao mesmo tempo, constatou-se a grande mediação masculina nesses processos.

O que aparece muito nesses espaços é a dificuldade de ser uma mulher de organizada. “Elas têm que responder a uma diretoria em sua maioria masculina, que determina tudo o que elas podem fazer e o que elas não podem fazer”, conta Bárbara, deixando claro que é um espaço de concessão e que elas podem estar ali com a condição de seguirem determinadas regras, bem diferentes das dos seus companheiros homens. “Tem o papel da mulher na torcida. Por exemplo, mulher serve para ser apoio em festas”, conta a cruzeirense Anna Liberato, do Comando Feminino, torcida integrante da Máfia Azul.

Algo mediado pelos homens da organizada, inclusive, é a própria vestimenta das mulheres. Muitas delas queriam usar saia e vestido da torcida, mas não são permitidas. Elas também têm que ir de calça, pois se forem de short eles reclamam. E, assim como outros espaços sociais dominados pela masculinidade, a torcida organizada é um espaço de contradições. “Sempre tinha o relato de que elas tinham que ser ‘meio homem’: ‘a gente tem que ser meio homem pra aguentar o tranco, mas a gente não pode perder a feminilidade’”, afirma Bárbara. Elas precisam provar que têm a força e a energia que corresponda ao torcedor, mas não podem se deixar levar por esse lado “masculinizado”.

“Teve uma das minhas entrevistadas que puxava a torcida, que era reunir os torcedores para descer para o campo, por exemplo, e ela falava de uma dificuldade muito grande, porque os homens não respeitavam ela. Os outros torcedores não respeitavam, tipo “eu vou obedecer mulher? Eu não vou obedecer mulher, pelo amor de Deus’.

Bárbara Gonçalves conta histórias que ouviu durante sua pesquisa

Tinha uma torcedora que era um membro atípico desse grupo, inclusive ela dava trote. Na entrada da torcida tem um trote, que dá nos homens, que é em viagem, é o caos, vai desde tipo porrada até trancar todos os torcedores novos no banheiro do ônibus. Meio agressivo. E ela podia dar trote”

Tem entrevistada minha que não reconhece torcedora como uma palavra legítima, ela não conseguia falar. Eu perguntava assim, ‘para você, o que é ser uma torcedora ideal?’. Ela ‘ah não, torcedor ideal’, e respondia tudo no masculino. Daí chegou uma hora que eu falei ‘o que é ser torcedora?’, e ela ‘não, torcedora foi uma palavra que você inventou, né. Existe torcedor’”.

Além disso, nesse ambiente de provação tudo pode se tornar uma ameaça, inclusive outras torcedoras. Uma nova integrante não é levada a sério enquanto torcedora por suas próprias colegas, por exemplo, pois presume-se que ela está ali “atrás de homem”, explica Bárbara. “A gente já sabe que o homem não considera o torcer feminino como legítimo, isso é um dado que a Leda Costa [pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Esporte (NEPESS) da Universidade Federal Fluminense (UFF)] já falava. Mas a gente perceber que as próprias mulheres não reconhecem outras mulheres como torcedoras legítimas, isso é doído”, declara. Jaqueline Araújo, a primeira e única diretora da Fúria Alvinegra, declara que, quando entrou na organizada, as outras mulheres se sentiram ameaçadas: “Elas pensaram que nós queríamos roubar seus lugares. Eu não quero roubar o lugar de ninguém, eu quero estar aqui e quero torcer, igual os meninos também torcem, por que não?”, reivindica.

Traições e relacionamentos amorosos são outros motivadores de rixas entre mulheres nesses espaços, em que a rivalidade feminina soma-se à rivalidade em campo. “A gente percebeu que o maior rival não era o torcedor do time adversário, era a torcedora da torcida organizada do time adversário”, afirma Bárbara.

Apesar disso, elas conseguem construir uma trajetória própria na torcida. Exigências por igualdade de gênero já são observadas nesse contexto, mesmo que de maneira incipiente. Uma luta constante dessas mulheres é para poder ir aos chamados jogos de guerra — disputas contra rivais históricos ou clássicos, que carregam forte simbolismo para a torcida. Geralmente, os torcedores acabam brigando entre si — , segurar bandeirões e participar das baterias. “Ninguém vai me limitar, ninguém vai me parar. Eu vou para onde eu quiser e vou fazer o que eu quiser”, avisa Ana, da Fúria Alvinegra.

Fazer o trabalho pesado, elas garantem, não é nenhuma novidade. “A gente sempre está no campo, a gente sempre está carregando material, muitas vezes sozinhas”, conta Ana. Esther dos Santos Ribeiro, da organizada China Azul, confirma: “o tanto de vezes que eu, minha mãe, as outras meninas da torcida carregamos caixote. Todo mundo faz muita coisa pela torcida, a gente não está aqui por causa de homem não”.

Mulheres de arquibancada — um movimento

Foi por meio dessa vontade de unir a paixão pelo futebol com suas posições políticas que Patrícia procurou grupos de atleticanos que discutiam questões de justiça social no futebol, como o GaloMarx e posteriormente a Grupa — sendo esse último um coletivo exclusivo de mulheres que se unem para ir ao estádio e fazer companhia uma à outra. Já a torcida cruzeirense possui o coletivo Resistência Azul Popular (RAP), e sua variação feminista, da qual Cinthia faz parte.

Para além de Minas Gerais, a preocupação de unir mulheres em prol do futebol é nacional. Em São Paulo, Dadá Ganan, Kiti Abreu, Natália Moreira e Penélope Toledo organizaram em junho deste ano o I Encontro de Mulheres de Arquibancada, que reuniu 350 mulheres de 50 torcidas para discutir as demandas delas para um futebol melhor. Como parte dos desdobramentos decididos no encontro nacional, no dia 2 de setembro Belo Horizonte recebeu a edição local do evento. Vários dos relatos reproduzidos nesta reportagem foram ouvidos naquela ocasião.

Penélope, corintiana, veio ao encontro mineiro. Segundo ela, o Mulheres de Arquibancada tem outros projetos além dos eventos, como uma campanha em que mulheres fotografam os banheiros dos estádios, reivindicando melhorias. Mas, acima de tudo, o movimento é trabalhado no cotidiano. “É uma escolha de vida, é a gente decidir que vai frequentar a arquibancada, com respeito, sem ser subestimada, sem ser ofendida, sem ser menosprezada, e fazer dessas coisas uma filosofia de vida”, declara.

I Encontro de Mulheres de Arquibancada de Belo Horizonte | Foto: Mariana Gonzaga

Outra convidada do evento foi a gaúcha e conselheira do Internacional, Najla Diniz. Durante a infância, sua história foi a mesma de outras tantas meninas: cresceu numa geração de muitos primos meninos, os quais iam ao estádio, e ela, não. Ao questionar o pai sobre porque nunca foi levada ao Beira-Rio, casa do seu clube do coração, ouviu o que para ele parecia uma constatação óbvia: “mas você não era menino”. A percepção de exclusão foi crescendo com ela, assim como o incômodo com a nova configuração dos estádios “padrão Fifa”, que encareceram os ingressos e afastaram parte da população da experiência do futebol. As questões da resistência e do feminismo a levaram ao Povo do Clube, movimento social oriundo das arquibancadas que luta pela valorização da identidade popular do Internacional, e ao Inter Feminista, coletivo que pauta a questão das mulheres.

Durante sua fala no Encontro, Najla combate a ideia de que as mulheres servem para embelezar os estádios. Um exemplo dessa objetificação do corpo feminino são, segundo ela, as camisas dos clubes. “É um modelo com um decotão. A mulher tem que estar com tudo apertadinho e o peito de fora, obviamente. Mas eu quero aquela camisa lá do meu jogador, eu quero igual para mim”, exige.

Fora a modelagem, que se afasta dos uniformes utilizados em campo, a torcedora mulher geralmente precisa se contentar com poucas opções de produtos oficiais. Nas lojas online, até o fechamento desse texto, o Atlético Mineiro, por exemplo, possuía dois modelos femininos de camisa de jogo, e quatro masculinos; o Cruzeiro também tinha dois modelos femininos e três masculinos; já no América, há três masculinos e uma opção feminina. Além disso, os homens ainda têm à sua disposição calções, meiões, a linha de goleiros (que não está disponível na versão feminina em nenhum dos clubes) e as opções de camisas com ou sem números, além de tamanhos especiais.

Najla é também ouvidora-geral, um cargo de diretoria no clube. E num primeiro momento ela, enquanto mulher, era institucionalmente invisível. No seu crachá, estava escrito “conselheiro”; ao preencher uma ficha, o espaço destinado ao cônjuge marcava “esposa” — e dificilmente, ela supôs, aquele pedaço de papel estava sugerindo que sua orientação sexual talvez fosse outra. Não, o local demarcado era, segundo ela, muito bem delimitado. “As estruturas administrativas e diretivas do clube são voltadas para receber homens”, afirma. No conselho deliberativo, são 26 mulheres e 224 homens.

Desde então, ela tem atuado para mudar essa demarcação de gênero. Questão aparentemente simples, mas que traz uma maior sensação de inclusão e pertencimento ao clube pelas mulheres. Hoje, até as publicações do presidente, que antes eram direcionadas ao torcedor colorado, são dirigidas à torcida colorada. Nos demais comunicados, estão presentes os vocativos sócia e sócio-torcedor. Aparentemente simples, esse cuidado na linguagem não é comum entre os clubes brasileiros.

Eu não quero ser João

Uma pergunta que norteou esta reportagem foi: quem são essas torcedoras? Quando falamos de mulheres no futebol, devemos pensar qual sua etnia, em que classe social ela está, com quem ela se relaciona, se a sociedade enxerga seu filho, ou sequer a enxerga como mulher.

O novos movimentos de torcidas têm trazido esse debate ao pensar a mulher dentro do estádio. “Ela não se caracteriza só mulher, ela se caracteriza mãe, ela se caracteriza mulher lésbica, ela se caracteriza mulher trans, e que também quer usufruir daquilo que está sendo imposto ali no caso do futebol”, afirma Cinthia, sinalizando como o machismo reforça também a homofobia, a transfobia e se dissemina para outros aspectos da vida. “Então não é só que estádio não é lugar de mulher, estádio não é lugar de minorias, hoje”, conclui.

Se o cruzeirense chama o atleticano de “franga” ou “gaylo”, ele tem que entender que esse pejorativo trata de uma pessoa que sofre dentro de casa por causa de sua orientação sexual, que se trata de um problema social que vai muito além de uma palavra ou de um grito. Já quando o atleticano chama o cruzeirense de maria, ele tem que se colocar no lugar de milhões de Marias. Como explica Cinthia, “a Maria trata da história do brasileiro, não só da brasileira, mas do trabalhador”.

Há ainda casos em que os próprios jogadores ouvem ofensas dentro de campo — o caso do goleiro Aranha se tornou famoso quando, jogando pelo Santos em 2014, foi chamado de macaco pela torcida do Grêmio. O racismo atinge também a mulher negra, e vem carregado de outros aspectos. “Acho que a reivindicação da mulher negra, e isso eu falo muito por mim, é respeito. Porque hiperssexualização, pejorativos tipo macaca, isso acontece e é muito desconfortável. O que a minha pele tem a ver com o meu torcer?”, questiona Cinthia. Segundo observa Jacqueline, “eu acho que eles não enxergam a mulher negra como torcedora”. Depois do aumento do preço dos ingressos, o acesso dessas mulheres ao estádio ficou ainda mais difícil — geralmente, elas ficam em casa cuidando dos filhos para os maridos irem aos jogos. “As minhas amigas brancas elas conseguem ir, muitas delas têm sócio torcedor, mas as mulheres negras…”, reflete a historiadora.

Já questões de classe se aplicam às Marias. Trabalhadoras, de classe baixa, muitas vezes negras e além de tudo mães, que lugar elas têm no estádio “padrão Fifa”? Como elas podem usufruir daquele espaço se os preços dos ingressos e das refeições são elevados; se quando um jogo termina meia-noite, o transporte público não atende o estádio ou não oferece segurança em determinada hora da noite; se ela precisa estar no ônibus de novo às 7h da manhã do dia seguinte?

Quando se quer elogiar o clima de um jogo, geralmente o jornalista relata que há muitas famílias presentes. Famílias essas compostas por pai, mãe e filhos. Mas, quando uma mãe comparece sem o pai, a recepção é menos calorosa, como afirma a atleticana Juliana Gonçalves. “Quando eu levo a minha filha ao estádio, falam que eu sou doida, questionam ‘e se acontecer alguma coisa, e se acontecer briga’. Mas se o pai levar é fofinho, ‘ah criança no estádio, que coisa maravilhosa’”, relata. Por outro lado, se a mãe não levar o filho, ela é questionada sobre o paradeiro da criança. Isso tudo quando a mãe consegue ir aos jogos — a gratuidade do Mineirão para menores de cinco anos, por exemplo, deve ser retirada no Barro Preto, exigindo que a mulher se desloque para o outro lado da cidade. “Se a gente não discute o estádio para as crianças, a gente não discute o estádio para as mães. Se não cabe o meu filho, não vai me caber”, afirma Juliana.

Mulheres que se relacionam com outras mulheres têm ainda outras vivências no estádio, muitas vezes sendo constrangidas ou se sentindo ameaçadas. “O importante é saber lidar com os problemas que vão aparecendo na sua frente, primeiramente por uma questão de sobrevivência. Vamos lutar para mudar? Vamos. Mas a primeira coisa é sobreviver”, declara Ana Clara Costa Amaral, cruzeirense e membra da RAP. Ela já frequentou os estádios com a namorada, até que a parceria “virou a casaca” e se tornou atleticana, brinca Ana.

Bárbara Gonçalves já trabalhou com travestis e transsexuais, em 2009, e relata como o espaço do futebol era usado para deslegitimar a identidade daquelas pessoas. Em um episódio que dá nome a este segmento, ela conta de quando essas mulheres estavam na rua e as pessoas gritavam, de dentro dos ônibus, “João, amanhã tem pelada”. “O futebol era usado para reiterar uma masculinidade num corpo que não é masculino. E muitas delas reclamavam: ‘poxa, eu não posso torcer mais. Se eu torcer, eu virei João de novo. Eu não quero ser João’”, lembra.

Ao mesmo tempo em que todas essas situações são problemas típicos do meio, o atleticano Luciano Jorge de Jesus, professor e colaborador do coletivo Futebol, Mídia e Democracia, chama a atenção para o cuidado de não retirar o futebol da sociedade. “O espaço do futebol é um espaço que tem as suas demandas, a sua própria linguagem, a sua própria cultura. Mas ele não é um espaço deslocado, não é um espaço isolado do mundo”, garante. Desta forma, as opressões presentes na sociedade brasileira se reproduzem também no futebol. O que se deve fazer é combatê-las, assim como se faz em outro âmbitos da vida — porém, quando um clube, uma federação, uma torcida, são negligentes, essas práticas são legitimadas. “As opressões são não só estruturadas, elas não só se constroem ao longo de um tempo enquanto relação de poder, elas são institucionalizadas”, afirma.

Elas não querem ser João. Elas são Marias, Marias trabalhadoras, Marias negras, Marias mães, Marias lésbicas, Marias travestis. Marias torcedoras.

I Encontro de Mulheres de Arquibancada de Belo Horizonte | Foto: Mariana Gonzaga

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