Boletim do Meteoro #2

Eduardo Nasi
Boletim do Meteoro
Published in
10 min readMay 18, 2020

Seguinte: para esta segunda edição do Boletim no Meteoro, vou começar a eliminar parte do conteúdo daqui e deixar só no e-mail. A ideia é forçar descaradamente você assinar mesmo.

Vai ser assim: uma semana tiro um texto. Na outra, umas sugestões de filmes… Quem assina recebe tudo.

Agora vamos aos filmes?

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Na segunda — Paraíso perdido, de Monique Gardenberg (Netflix)

Esse filme reúne Erasmo Carlos, Júlio Andrade, Hermila Guedes, Seu Jorge e Jaloo em uma boate de música romântica da Rua Augusta (embora, se bem me lembro, o território é indefinido, eu que morava por ali que reconheço o cenário).

É uma delícia de ver, um daqueles filmes pequenos que vão crescendo quando a gente vê e enchem o coração de alegria.

Na terça — Honeyland, de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov (aluguel ou compra no Looke)

Honeyland foi um dos filmes mais badalados da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado, pau a pau com Parasita. Parasita eu consegui ver. Honeyland não deu. Ia estrear nos cinemas; os cinemas fecharam. E agora estreou no Looke, que é uma plataforma que vale a pena explorar um pouco. É nela, por exemplo, que estão hospedados os filmes da SP Cine e o Festival Varilux — essas duas seleções podem ser vistas de graça.

O filme vem da Macedônia, e é um documentário sobre a vida da apicultora Hatidze Muratova em um fim de mundo, um lugar lindíssimo e vasto, meio que o contrário do que estamos vivendo nós nesta pandemia. Falando assim, parece exótico, talvez maçante, mas não é. A equipe de filmagem acompanhou a vida da sua personagem por três anos muito turbulentos. Com tantas horas gravadas, os diretores deram conta de construir uma narrativa hipnotizantes que inclui até uma briga de vizinhos. É uma preciosidade.

Indicado ao Oscar de Documentário (perdeu pra American Factory, aka o filme dos Obamas) e filme Internacional (justamente no ano de Parasita), mas ganhou prêmio da Mostra, Sundance e muitos outros, entrou em inúmeras listas de melhores do ano, enfim, credenciais não faltam a esse grande documentário da Macedônia.

Na quarta — Gloria, de Sebastián Lelio (Globoplay)

Gloria é um filme surpreendentemente raro: é sobre uma mulher madura e livre que leva sua vida sem amarras. Sai pra dançar, transa com quem quer etc. Estranho mesmo é que um filme com esse tema cause surpresa. Mas causa. Ainda.

E causa tanta surpresa que ganhou uma versão hollywoodiana. O próprio Sebastián Lelio dirigiu a refilmagem americana de seu filme, que troca a grande Paulina García por Julianne Moore. Dá para ver essa versão no HBO Go. Vimos outro dia aqui em casa. A versão chilena é mais bacana.

Na quinta — Peterloo, de Mike Leigh (Prime Video)

Peterloo é um fato histórico que criou uma reviravolta na democracia britânica. Mas imagino que a maioria dos leitores do Boletim do Meteoro não seja composta por britânicos. Se eu contar mais sobre o que é Peterloo, vão me acusar de dar spoiler.

Talvez seja melhor dizer assim: logo depois da batalha de Waterloo, em plena revolução industrial, surge um grande conflito entre os trabalhadores de Manchester. É um filme social, sobre luta de classes, com o estilo marcante de Leigh.

Na sexta — A gangue, de Myroslav Slaboshpytskyi (SP Cine Play)

Inesquecível a sessão de A Gangue que vi no Cinesesc há uns anos. Foi interrompida. Depois de um punhado de cenas fortes, havia uma moça em estado de choque. Paralisada. Foi removida em uma maca, na companhia de um rapaz que a acompanhava. E então o filme continuou. Quando o filme acabou, ela ainda estava do lado de fora da sala, sentada.

Essa foi a mais trágica das catarses que presenciei na minha vida.

Estamos, portanto, falando de um filme intenso. Mas, acima de tudo, de um filme muito poderoso, sobre uma gangue de surdo-mudos ucranianos que se comunica apenas em linguagem de sinais.

Esta semana, as dicas de sábado e domingo vão ser apenas para assinantes. Assine.

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OS ALGORITMOS

Vi dois filmes no fim de semana passado que me puseram a pensar no papel deste Boletim do Meteoro.

Os contos de Hoffmann, da dupla Michael Powell e Emeric Pressburger, é uma versão em filme da ópera de Offenbach. É exuberante — até dá dó de não ter visto em um cinema. Nela, o eu-lírico do poeta romântico alemão E.T.A. Hoffmann relata seus desamores. E, como tende a acontecer com todo poeta romântico alemão, Hoffmann tem o dedo pobre para escolher os alvos de seus afetos. Mas o que seria do romantismo se essa gente conseguisse encontrar um amor enfrentar sem nenhuma treta?

Olympia é um desses amores de Hoffmann. É uma mulher-mecânica. Uma máquina. Sedutora, sim, mas tem alma? Pode amar? Parece-nos óbvio hoje que Hoffmann entrou numa furada ao se envolver com Olympia.

Mas não era só a moça mecânica que era jovem na época, mas também a Modernidade. As máquinas assombravam e fascinavam. Será que poderiam nos controlar? Num embate entre as máquinas e os homens, quem venceria?

Aí que entra o segundo filme: A condição humana, de Louis Malle.

O filme é um documentário filmado em uma fábrica de carros e em um desses salões de exibição da indústria automotiva. Se os contos de Hoffmann estão no começo da Modernidade, o filme de Malle foi lançado em 1973. Mostra as consequências dela. O resultado não é muito favorável a nós. A condição humana que o filme nos mostra é de gente que vive para construir e admirar máquinas. Os humanos são acessórios. A julgar por essas imagens, se houve uma guerra entre homem e máquina ao longo da Modernidade, as máquinas venceram.

Se houve uma guerra, talvez ela não tenha acabado.

Tenho a ilusão de que estamos aqui no Boletim do Meteoro justamente enfrentando as máquinas. Imagino que estamos indo quixotescamente contra os algoritmos. Ao conversar sobre cinema, estamos tentando assumir o controle dos que assistimos. Vamos seguir alimentando os algoritmos de qualquer maneira. Mas, bem alimentados, quem sabe eles começam a trabalhar mais a nosso favor?

Não sei vocês, mas eu ainda me espanto quando penso em formação de gosto e de repertório. Acho um percurso tão delicado.

Eu mesmo não sei direito como acabei chegando aos filmes experimentais tailandeses e em paradas afins.

É verdade que cinema fazia parte da nossa vida quando eu era moleque. Tínhamos um projetor 16mm e um super-8 em casa. Íamos às vezes ao cinema. Fomos uma das primeiras famílias a ter um videocassete em casa. Mas a gente não saia do circuito hollywoodiano.

Os filmes do circuito alternativo não passavam lá por casa. Não tive alguém para me orientar.

Suspeito, portanto, que a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tenha sido essencial. Não o festival em si, mas um programa que passava na TVE de Porto Alegre nas noites de sábado. Foi o que me marcou. Eu via uns filmes esquisitos trancado no meu quarto, e aos poucos esses filmes foram se tornando cada vez mais naturais pra mim.

Quando me mudei para São Paulo e comecei a frequentar a Mostra, eu me emocionava ao ver o Leon Cakoff, e até hoje me emociono quando estou numa sessão com a Renata de Almeida. Um dos trabalhos mais legais nos meus 15 anos de publicidade foi quando refizemos o visual da TV Cultura e ajudamos a divulgar um revival da Mostra na TV Cultura há uns anos. Esse programa foi fundamental para mim, assim como a Mostra é importante pra mim.

Hoje temos todos inúmeros filmes ao alcance das nossas mãos a qualquer minuto. Parece uma maravilha, mas não adianta muito se os algoritmos tentam fazer com que vejamos todos os mesmos filmes.

Criei o Boletim do Meteoro meio por impulso, e aos poucos ele começa a fazer sentido. Acho que colocar luz sobre esses filmes que me tocaram é uma forma de retribuir o que eles fizeram por mim.

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EM TEMPO

Claro que indico Os contos de Hoffmann e A condição humana. Mas eles estavam no Mubi e já saíram do ar, porque o Mubi faz um rodízio de filmes e cada um deles fica no ar por 30 dias. Agora não estão em nenhum lugar oficial que eu tenha visto. Enfim, são milhares de filmes devidamente restaurados e digitalizados que simplesmente não são acessíveis.

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GAUGUIN

Me perguntaram se não vou escrever sobre artes visuais.

Possivelmente vou, mas não agora. Tenho achado as experiências de visitar museus e feiras virtuais insuportáveis. Estou saturado de olhar para telas, mas preciso fazer isso para trabalhar, escrever e ver filmes. Então não quero gastar ainda mais meus desgastados olhos tentando entender como é que uma pintura se articula a partir dos pixels. Passei a vida toda defendendo que a gente tem que ver arte ao vivo. Enfrentei filas imensas e uma boa seleta de perrengues.

Arte em vídeo já é outra coisa. A Pinacoteca está com uma mostra chamada distância em seu site. É uma tentativa, uma experiência que inclui vídeos interessantes e um texto curatorial que guia a visita aos vídeos. Mais pra frente, talvez eu até indique na lista algum filme que fique nos limites de cinema e arte na programação semanal. Enfim, tem jeitos e jeitos de falar de arte.

Puxei o assunto porque meu interesse por arte me levou a assistir ao filme do Gauguin com o Vincent Cassel que está na Mostra Varilux. O longa faz um recorte bem fechado de tempo: a primeira viagem de Gauguin ao Taiti. É aí que a coisa pega.

Sabe-se hoje que Gauguin não foi um santo nas ilhas da Polinésia. Talvez não tivesse como ser nem se quisesse. O sujeito era um homem branco europeu do seu tempo, um colonizador, e agiu como um predador sexual, como tantos outros agiram.

Pensei que o filme mostraria isso. Vincent Cassel como um Gauguin atormentado, pobre, no fim do mundo, um predador produzindo uma arte sublime, uma contradição. Tinha potencial pra ser um filmaço.

Ledo engano. O filme ignora as discussões recentes e transforma Gauguin num Robinson Crusoé pintor.

Não cobro de Gauguin outra postura. Ele era um predador numa sociedade colonial estruturalmente predadora. Era parte de um problema muito maior. Ao mesmo tempo, era um gênio. Há uns meses vi uma pintura dele no Museu Nacional de Belas Artes, em Buenos Aires. Uma pintura da Polinésia: mostra uma taitiana imersa por um amarelo inesquecível. Me digam: quantos amarelos são inesquecíveis?

Não tenho problema algum em admirar artista que tem biografia conturbada. Se só admirasse os santos, talvez sobrasse quase nenhuma arte pra ser admirada, e provavelmente toda ela seria muito chata. Gauguin é um predador e um pintor imenso, brilhante, genial. Cabe a nós conciliar as duas coisas.

Não posso cobrar de Gauguin, mas posso e devo cobrar que um filme que, tendo em vista tudo o que sabemos, simplesmente opta por passar pano. É inadmissível.

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REPLY

Entre replies elogiosos e agradecidos da primeira edição, aos quais sou muito grato, veio um comentário mais elaborado do leitor Bruno Costa, que copio aqui:

“Rápido: muito didático seu conteúdo e muito boas as sugestões. Um ponto me chamou atenção, a menção ao filme Assunto de Família e o breve comentário subsequente. Concordo que o filme é mais sutil que o Parasita e isso pode ser uma das razões para não ser tão bem sucedido internacionalmente. Esse comentário singelo dialoga diretamente com aquilo que tenho tentado formular há muito tempo, uma espécie de teoria da colonização narrativa engendrada de maneira oblíqua, mas contínua, há bastante tempo. Um dos seus sintomas mais aparentes é realocação dos olhares para o enredo, facilmente perceptível com a adoção do anglicismo plot e todos os seus derivados. Enfim, não vou me alongar demais, mas acho que merece menção atentar, por exemplo, como um filme tão agudo sobre a divisão de classes e também sul coreano, chamado Burning, passou quase despercebido. Enfim, poderia fazer todo um tratado sobre Ozu, Antonioni e outros tantos, mas queria apenas deixar esse breve comentário.”

Bruno, me parece que apontar o dedo para uma certa colonização da narrativa nos obrigue a percorrer uma longa trilha desde a Grécia da Antiguidade. Mas é claro que Hollywood vem usando a cartilha grega e que hoje em dia muitos cinemas eventualmente usem narrativas mais palatáveis para conquistar espaço.

Sobre Em chamas (Burning), é um belo filme também. Saiu por aqui na mesma época de Assunto de família e teve uma trajetória meio parecida nos cinemas. Hoje, está disponível do Belas Artes à la Carte e nas plataformas de aluguel e venda como iTunes.

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Algumas notas sobre as plataformas…

Aos poucos a gente vai explorando as plataformas, porque é desse acervo disponível de que estamos falando. Eu não assino todas, claro. Francamente, não sei quem assinaria.

O que eu mais assisto é o Mubi. Não chego a ver todos os filmes, claro, mas gosto muito das seleções. Por causa do rodízio dos títulos, ainda não indiquei nada lá na seleção da semana, mas esta semana quase entrou um.

Já cogitei assinar o Telecine, que tem uma seleção bem interessante e inclui muitos filmes recém-lançados. Mas, como vou/ia muito ao cinema, ficava meio redundante. Atualmente me parece interessante o plano do Belas Artes. Alguém aí assina e recomenda?

Já prestei atenção no Looke várias vezes. O catálogo do plano mensal deles parece pouco interessante, mas fiquei surpreso com esse lançamento do Honeyland, que está só lá, para venda e aluguel. Alugamos, e a experiência foi ótima. De qualquer forma, uso para ver os filmes da SP Cine e do Varilux, que são de graça.

Para quem assina TV a cabo, sei que há boas opções no Now e na Vivo TV. A gente não assina. O pouco tempo de TV que tenho é dedicado a filmes e séries no on demand.

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Recados finais

Sigo com o projeto sobre sonhos durante a pandemia. Semana passada errei o link. Se você tiver algum sonho nesse período e puder contá-lo, o link correto é este. Agradeço se puder divulgar a amigos.

Se você assinar o Mubi por esse link, você ganha um mês grátis (e eu também).

Se você for assinar o Amazon Prime Video ou comprar qualquer coisa na Amazon, entre por este link. Aí eu ganho uns trocados e você ganha a alegria de me deixar mais animado para escrever.

Agradeço se puderem espalhar que esse boletim existe e agradeço especialmente pela leitura.

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Até a semana que vem.

Tchau!

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PS

Vou falar (ou não) nos próximos boletins. Se alguém quiser se adiantar, está aí:

A época da inocência (Netflix)

As Faces de Toni Erdmann (Globoplay)

A história de uma criança com fome (Prime Video)

Guava Island (Prime Video)

Eu, Daniel Blake (Netflix)

Mãe só há uma (Netflix)

O Jovem Karl Marx (Prime Video e Globoplay)

Paddington 2 (Netflix)

Estou me guardando para quando o Carnaval chegar (Netflix)

Branco Sai, Preto Fica (Netflix)

Imagem e Palavra (Netflix)

A Assassina (Globoplay)

Um estranho no lago (Globoplay)

É apenas o fim do mundo (Globoplay)

A frente fria que a chuva traz (Globoplay)

Acima das Nuvens (Globoplay)

Laurence Anyways (Globoplay)

Holy Motors (Globoplay)

120 batimentos por minuto (Globoplay)

O garoto da bicicleta (Globoplay)

Gainsbourg — O Homem Que Amava As Mulheres (Globoplay)

Adeus à Linguagem (Globoplay)

Leviatã (Globoplay)

A garota desconhecida (Globoplay)

Zama (Globoplay)

A parte dos anjos (Globoplay)

Vou rifar meu coração (SP Cine Play)

Vaga carne (SP Cine Play)

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