Boletim do Meteoro #4

Eduardo Nasi
Boletim do Meteoro
Published in
10 min readJun 1, 2020

Bom dia!

Os prédios em chama, os carros em chama.

A brutalidade policial.

O racismo estrutural.

A Covid-19 mata mais negros que brancos, mais pobres que ricos, e não é por uma diferença genética, mas porque as condições são piores, porque os hospitais são mais precários.

Bolsonaro acha que é uma boa hora para beber leite, imitando um gesto estúpido da supremacia branca, porque nele nada é original, é tudo cópia, e mais abaixo falo de novo sobre isso.

Começo hoje com uma indicação extra, que serve para qualquer dia, para todos os dias: Branco sai, preto fica, do Adirley Queirós, um filme que estreou urgente e segue cada vez mais urgente. Está na Netflix.

Vamos em frente.

Aos filmes da semana.

Mas antes: quem lê aqui no Medium tem menos conteúdo que quem assina. Tiro umas partes. Porque o boletim quente está lá, no e-mail que chega aos domingos pela manhã.

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Agora sim, aos filmes.

Na segunda — Whisky, de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll (Netflix)

Vamos começar a semana com esse simpático filme uruguaio. A matriarca morreu, o irmão que se foi pro Brasil está retornando ao país de origem depois de anos e o outro irmão resolve mentir que é casado, valendo-se de uma funcionária da pequena tecelagem que toca, que topa fazer as vezes de esposa.

Na terça — Ela quer tudo, de Spike Lee (Netflix)

Ela quer tudo virou série do Netflix. Está na segunda temporada. Não vi, não sei se vale. Mas parece que serviu como desculpa para trazer esse filme extraordinário para o streaming. Chama atenção ser um raro filme que não é produzido pela própria Netflix que está disponível em 4K. Nora Darling, a protagonista, merece.

Aproveito e alerto: dia 12 de junho chega direto na Netflix Destacamento Blood, o novo filme de Lee.

Na quarta — Fruitvale Station, de Ryan Coogler (Globoplay)

Este é o primeiro longa de Ryan Coogler, que viria a ficar conhecido por blockbusters importantes e dignos como Creed e Pantera Negra. O filme é baseado na vida de Oscar Grant, um negro morto pela polícia de San Francisco. Ganhou prêmios em Sundance e em Cannes, mas a urgência aqui é outra, é de hoje, é do que está acontecendo neste momento.

Na quinta — Adeus à linguagem, de Jean-Luc Godard (Globoplay)

Logo abaixo escrevi um texto chamado Verborragia, onde falo desse Godard mui precioso.

Na sexta — A cara que mereces, de Miguel Gomes (Mubi)

“Até aos 30 anos tens a cara que Deus te deu, depois tens a cara que mereces”.

Se você não for convencido por esse aforismo da abertura deste filme de Miguel Gomes, lamento, não posso fazer nada. Aqui em casa adoramos Miguel Gomes.

No sábado — Você nem imagina, de Alice Wu (Netflix)

O A.O.Scott, crítico do New York Times, colocou essa comédia romântica na lista dos melhores do ano até agora, mas lembremos que esse ano é bem singular. Esse filme acaba se impondo por ser uma graça. Mesmo que não seja uma obra-prima, tem diálogos bem-escritos e não nivela o espectador por baixo. Traz a leveza que alguns de nós precisam.

No domingo — Projeto Perséfone, de Karim Aïnouz (IMS https://ims.com.br/convida/)

O ano é 3020. Há mil anos, ou seja, este ano, um grande fenômeno impactou a humanidade, que teve que abandonar o planeta.

Esse curta de ficção científica parte da obra de Davi Kopenawa. Foi produzido durante a quarentena sob encomenda do Instituto Moreira Salles, como parte de uma programação criada para o período que inclui cartuns, artigos, arte digital e outros.

Verborragia

A reunião ministerial de 22 de abril nos deixou impressionados a todos. Em mim bateu demais a verborragia. Como fala aquela gente, meu deus. Os discursos são pobres, feitos no automático, como se nossos ministros fossem matracas. Repetem ideias prontas. A fala não nasce do pensamento, mas do fígado. Um deles aparentemente confunde hemorragia e hemorroida e sequer dá indícios de perceber que trocou as palavras.

A forma como as TVs de notícia divulgaram a gravação proporcionou uma série de repetições de vários trechos, o que aumenta a sensação de que todo aquele discurso é mera tautologia. Enquanto assistimos à gravação, vamos distribuindo nossa visão nas redes sociais, com a TV ligada, de olho nos sites, nas mensagens de celular. A oposição se manifesta com mais uma avalanche de pronunciamentos. Depois vem o centrão, a direitona, a direitinha. Os telejornais, os podcasts, as rádios, os YouTubers, as lives, os jornais, as semanais — todos têm muito a dizer.

É muito texto, é muita fala, é muita verborragia.

Dia após dia, escândalo após escândalo. Cada fala é escrutinada por dezenas de outras falas. São necessárias, claro. Mas, a cada texto que tenta nos salvar, afundamos mais. Cada fala nos leva para mais longe de assuntos importantes, porque a verborragia também é uma camuflagem.

É tudo literal. Não há metáfora alguma. É pra prender os ministros do Supremo, é pra passar a boiada, é pra não deixar que as vítimas de coronavírus possam optar pelo aborto. É literalmente tudo isso. Se não é uma ditadura do sistema político, certamente é uma ditadura da linguagem, que está amarrada e atravessa um corredor polonês, vendada, ai das palavras se tentarem insinuar alguma outra coisa. É o cúmulo do papo reto, papo reto como marcha de soldado.

E, de repente, percebo: xeque-mate para mim mesmo, que há umas semanas resolvi escrever este Boletim do Meteoro. Saí escrevendo e dizendo o que os leitores deveriam assistir. Um filme por dia. Texto em cima de texto, sem descanso nem aos domingos. Tanta gente já escreve e fala sobre filmes. Inclusive algumas pessoas bem mais qualificadas. E venho eu tentando espalhar minhas próprias ideias. Para quê? Já não tem dicas de filmes em excesso na internet? Já não tem gente demais dizendo pra assinar este ou aquele serviço de streaming ou pra comprar na Amazon?

Eu nunca gostei de Eduardo e Mônica. Eu era criança chamada Eduardo em idade escolar quando a música estourou, e sempre sobrava para mim quando a música tocava na kombi escolar (aos mais jovens talvez espante que nos anos 80 era razoável encher uma kombi com crianças sem cinto de segurança). Mais tarde, calhou que nunca morri de amores pelo Legião. Não foi a minha praia. E a música me parecia errada: eu, um Eduardo, achava que tinha mais a ver com a Mônica. E acho que, sem querer, Renato Russo fez de Mônica uma chata para 99% da população, e ainda meteu o Godard no meio, ele que não tinha nada a ver com isso.

Godard é um caso estranho. Até posso concordar que seus filmes envelheceram mal, mas eu diria que essa assincronia com o Zeitgeist teve duração limitada. Godard voltou a ser atualíssimo. Vi no Mubi já durante a pandemia alguns filmes do Grupo Dziga Vertov e parecia que eles tinham sido feitos agora para explicar o mundo em que vivemos. Adeus à linguagem, que indiquei no começo, é um petardo contra esses regimes totalitários verborrágicos. Imagem e palavra está no Netflix e também é muito contemporâneo. O totalitarismo, afinal de contas, começa no texto.

Quando escrevo da forma como escrevo neste Boletim do Meteoro, explicando as coisas, sendo didático, sugerindo o que os outros devem fazer, indicando links, me sinto cúmplice de um regime totalitário. E, quando não sou cúmplice, fui sequestrado. Me desculpem, não sei como sair dessa por enquanto. Às vezes, sem saber, somos condenados à prisão perpétua.

Precisamos dos poetas, dos artistas, dos pixadores e dos músicos para entender onde estamos. Precisamos ver e rever Godard não como uma excentricidade, mas como um diretor que tem algo a nos dizer, que está estendendo a mão e apontando para as saídas. Precisamos ver Adirley Queirós, Spike Lee e o Fruitvale Station do Ryan Coogler. Precisamos ver a cara que merecemos ao passar dos 30.

Cuidado, lembre-se: as saídas do totalitarismo são muitas. Se for uma só, não é uma saída verdadeira, e sim um mero túnel que conduz a outro tipo de totalitarismo.

Moral da história: de boca fechada não sai perdigoto contaminado.

Outros espaços

* Muitos filmes estão ganhando sessões gratuitas durante a quarentena. O perfil de Instagram @vivonocinema tem feito um bom trabalho em mapear esses filmes. Vimos semana passada o documentário Chão, da Camila Freitas, a partir de uma dica do perfil, no Cineclube Cinelatino. O filme não está mais disponível, mas deve estrear em algum momento, de alguma forma. Ele também alerta que Um homem fiel, que indiquei no primeiro boletim, entrou no Festival Varilux e pode ser visto de graça. Vale a pena.

* Foi lançado na semana passada o Cinema Virtual, que reúne filmes inéditos que estavam programados para chegar aos cinemas neste período em que não há cinemas. Talvez não sejam os lançamentos mais esperados, e sim aqueles que não terão fôlego para achar espaço na grade da retomada. Parte do valor dos ingressos virtuais é dirigido para as salas de cinema.

Replies

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Compre dos pequenos, dos locais etc.

Temos tentado, como todo mundo, comprar algumas coisas dos pequenos produtores e dos amigos que têm seus negócios. Essa crise não vai ser fácil, até porque são poucos os que têm renda garantida nesse período pra gastar com o luxo, o supérfluo. Mesmo quem segue com a renda está com salário fortemente reduzido. Longe de mim querer criar gatilhos de consumo, mas pelo consumo também se faz o dinheiro circular, se ameniza frustrações.

Dito isso, a coisa não é tão preto no branco. Nunca é.

Tenho um amigo, dono de umas franquias, que até desencanou um pouco nos últimos tempos. Ele é um cara legal, um empresário pequeno, já vinha mal da crise que se arrastava e de umas escolhas erradas… Mas ele tem umas franquias, umas lojas, e ninguém diz que ele é dono de um pequeno negócio, embora seja. As pessoas o veem como parte de uma megacorporação. Não quer demitir ninguém, mas está ficando sem ter como pagar. Pros bancos, é pequeno demais, risco demais, os juros custam caro. Pros consumidores conscientes, faz parte de um império.

Tenho outro amigo que é um pequeno produtor agrícola. Ele leva o negócio muito a sério, é muito preparado, faz uns produtos de qualidade impressionante. Um cara muito amável e gentil, além de competentíssimo. Muita gente veria o pequeno produtor e se disporia a ajudar, mas vocês não fazem ideia do quanto ele tem de dinheiro. É milionário, talvez bilionário, de nascença. Não precisa de ajuda. Claro que ele tem a dignidade de não pedir ajuda, como vi fazerem uns e outros que também estão em situação bem confortável.

Enfim. Não vou julgar ninguém nem jeito de ficar expondo as pessoas. É só pra dizer que a coisa não é tão simples.

Prefiro usar o espaço pra falar de pequenos negócios que tenho pra mim que são pequenos e dignos. Alguns usamos mais; outros menos. Alguns são de amigos, outros entraram na nossa vida em relações comerciais. Espero que não seja um mico pra ninguém, e acho difícil que seja.

* Falei acima do Aires Skin, da Polly. Mas não disse que não basta serem lindos, esses sabonetes são um prodígio da durabilidade. Nunca vi sabonetes tão duráveis. E eu sou contra desperdício: uso sabonete até o fim, abro tubo de pasta de dente pra não desperdiçar…

* Outro dia, quando comemoramos dois anos de casados, a Duda pediu o red velvet da Mari, da Suspiro por Bolo. Melhor red velvet do mundo. A Mari está nessa há uns anos e tem bolos e doces magníficos.

* Por enquanto, temos alternado os cafés entre o Coffee Lab e o Um Coffee Co, mas quero aumentar um pouco esse rodízio nas próximas semanas, pra abranger outros pequenos produtores.

* A Duda pede peixes da Pescados Maia, e eles são sempre frescos e gostosos.

* Também encomendamos os queijos excelentes d’A Queijaria. A massa de pizza deles também é incrível.

* Pedi vinhos da loja aqui da rua. E do Vinhos e Vinhos, especializado em vinhos brasileiros, porque é bom que o dinheiro fique no país, gere rendas e empregos aqui, ou, vá lá, na América Latina. Nada contra França e Espanha, pelo contrário, mas me parece mais caro chegar aos pequenos produtores de lá, sei lá.

* Sigo, como sempre, atento aos lançamentos da Balão Editorial, editora da Natália, da Flávia e do aniversariante de hoje, Guilherme Kroll. Parabéns, Gui.

Temos cozinhado em casa, como sempre, e praticamente não pedimos delivery nesses quase 80 dias. Perdoem-nos os restaurantes, mas é impossível ajudar todo mundo que a gente gostaria de ajudar nesse momento.

Daqui uns dias repetimos essa rodada. E acho que valeria a pena incluir as sugestões e os negócios de leitores. Se alguém topar, é só enviar no reply.

Mais uns links, pra ser mais verborrágico ainda

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Antes de ir

* Sigo com o projeto que coleta relatos de sonhos durante a pandemia. Estamos chegando a quarenta sonhos, um milagre, porque temos uma divulgação pequena e precisamos contar que as pessoas lembrem tanto do sonho quanto da existência do projeto. Se você tiver algum sonho nesse período e puder contá-lo, o link é este. Agradeço a quem puder divulgar a amigos.

* Como falei na semana passada, o Mubi agora tem um ótimo acervo. Assiná-lo ficou ainda mais vantajoso. Se você usa este link, ganha 30 dias grátis. E eu também ganho, o que ajuda a manter esse boletim atualizado. Já ganhei alguns meses graças aos leitores, e espero que vocês não só estejam gostando de seus meses, mas que fiquem por lá.

* Se puder, apoie as pequenas livrarias e os pequenos negócios. Mas, se você for assinar o Amazon Prime Video ou comprar qualquer coisa na Amazon, entre por esse link. Aí eu ganho uns trocados, e você ganha a alegria de me deixar um pouquinho mais animado para escrever.

* Se você gostou do que leu, agradeço se assinar. Também agradeço se puder espalhar que esse boletim existe e agradeço especialmente pela leitura.

PS

Vou falar (ou não) nos próximos boletins. Se alguém quiser se adiantar, está aí:

A época da inocência (Netflix)

As Faces de Toni Erdmann (Globoplay)

Eu, Daniel Blake (Netflix)

Mãe só há uma (Netflix)

O Jovem Karl Marx (Prime Video e Globoplay)

Paddington 2 (Netflix)

Imagem e Palavra (Netflix)

A Assassina (Globoplay)

Um estranho no lago (Globoplay)

É apenas o fim do mundo (Globoplay)

A frente fria que a chuva traz (Globoplay)

Acima das Nuvens (Globoplay)

Laurence Anyways (Globoplay)

Holy Motors (Globoplay e Mubi)

120 batimentos por minuto (Globoplay)

O garoto da bicicleta (Globoplay)

Gainsbourg — O Homem Que Amava As Mulheres (Globoplay)

Leviatã (Globoplay)

A garota desconhecida (Globoplay)

Zama (Globoplay)

A parte dos anjos (Globoplay)

Vou rifar meu coração (SP Cine Play)

Vaga carne (SP Cine Play)

Os incompreendidos (Mubi)

Em busca da vida (Mubi)

Trash Humpers (Mubi)

Jacquot de Nantes (Mubi)

Habemus Papam (Mubi)

Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência (Mubi)

O Vingador Tóxico (Mubi)

O circo de Calder (Mubi)

O Boletim do Meteoro é uma criação do Ex-Laboratório Experimental.

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