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Ontem a fosfoetanolamina, hoje a cloroquina. E amanhã?
O discurso de Bolsonaro tenta colocar o povo contra a Ciência e põe a Anvisa em risco
No início do ano, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) criticou a proibição pelo STF (Supremo Tribunal Federal) da pílula do câncer, a fosfoetanolamina. A proibição que ocorreu em 2016 retorna as notícias agora em 2020. O portal Notícias UOL traz um trecho da fala do presidente:
Tem certas coisas que não dá para esperar. […] A Anvisa [Agência Nacional de vigilância Sanitária], por exemplo, não pode protelar por muito tempo a liberação das pautas que interessam à sociedade.
O presidente que, enquanto deputado, votava em projetos à bel-prazer, não compreende (ou não quer compreender) que a Agência precisa, para o bem da própria sociedade, seguir o ordenamento científico. Do modo como Bolsonaro expõe, parece que o benefício da pílula já tem comprovação e que a Anvisa não libera porque não quer ou porque está ideologicamente aparelhada, como profere seus apoiadores.
Sabemos que Bolsonaro gosta de implodir as instituições públicas, por isso fica o questionamento: devemos temer pela Anvisa?
O caso da fosfoetanolamina
Em 2014, a Universidade de São Paulo (USP) vetou a aplicação médica de quaisquer substâncias sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Tal medida impactou o laboratório do químico Gilberto Chierice que disponibilizava a fosfoetanolamina para vítimas de câncer, mesmo sem ter sido estudada em seres humanos.
Na tentativa de manter viva a esperança de superação da doença, diversas famílias recorrem aos tribunais para conseguir acesso à pílula azul e branca e muitas delas tiveram ganho de causa. Um debate intenso causou comoção nacional nas redes sociais: de um lado, a cobrança e o desespero dos doentes pelo acesso a fosfoetanolamina, e de outro, as críticas dos especialistas, que exigem estudos controlados em seres humanos para comprovar o verdadeiro efeito da droga.
O caso chega ao Congresso Nacional e 26 deputados criam um projeto de lei que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. Em 3 de março de 2016, cinco dias antes da votação do projeto, o então deputado pelo PP, Jair Bolsonaro apelava:
No dia da votação, Eduardo Bolsonaro defende o projeto de lei da seguinte forma:
O que Eduardo Bolsonaro desconsidera é que depoimentos positivos podem se sobrepor aos negativos quando a intencionalidade é a defesa do objeto em questão. Afinal, sempre há um viés por parte de quem coleta e seleciona os testemunhos. Assim, se um sujeito deseja provar o potencial de um comprimido pode destacar apenas os finais felizes. Várias pessoas que engolem uma pílula contra o câncer e não melhoram caem no silêncio ou, infelizmente, morrem antes de dar declarações. Além disso, não dá pra saber se uma eventual recuperação veio da promessa testada, de um tratamento anterior ou de qualquer intervenção adotada, às vezes inconscientemente. E por isso, é importante a pesquisa clínica.
A lei foi aprovada na Câmara e no Senado e a três dias da votação do impeachment na Câmara dos Deputados, a presidenta Dilma sanciona a Lei 13.269/2016. Contudo, o texto da lei possui um “porém”. Vejam:
Contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu o direito de uso da fosfoetanolamina sintética ao deferir a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5501 de autoria da Associação Médica Brasileira (AMB).
As pesquisas conduzidas no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), realizadas em 2017, que pretendia avaliar 210 pacientes com dez tipos diferentes de tumores, suspendeu o recrutamento de novos voluntários por não ter demonstrado benefícios clínicos significativos. Dos 59 que haviam passados por uma reavaliação após se submeterem por meses ao tratamento, apenas um obteve resposta significativa.
Sem resposta positiva aos testes clínicos, a fosfoetanolamina não pode ser vendida como medicamento, tentou-se comercializá-la como suplemento alimentar. Em nota, porém, a Anvisa diz que a fosfoetanolamina não é uma substância proibida, mas, para ser comercializada de acordo com a legislação brasileira, e em conformidade com as regras praticadas em todos os países desenvolvidos do mundo, precisa estar registrada.
Os últimos desdobramentos da cloroquina
Nesta semana, o ex-Ministro da Saúde Luiz Mandetta, em entrevista à GloboNews disse que Bolsonaro tentou alterar a bula da cloroquina:
Conforme apontei no texto “A cloroquina não cura covid-19, mas pode curar nossa democracia”, o ministro interino do Ministério da Saúde, o general Eduardo Pazuello, para livrar a barra de Bolsonaro e do Exército com a quantidade absurda de dinheiro público gasto no aumento da produção da cloroquina, precisaria autorizar um novo protocolo para o tratamento do novo coronavírus.
Contudo, conforme relata a imprensa, o documento divulgado foi uma alternativa encontrada pelo general Eduardo Pazuello, diante das dificuldades de se criar um protocolo propriamente dito. Para isso, seria necessária a aprovação de um Protocolo Clínico de Diretriz Terapêutica (PCDT), cujo um dos pilares para elaboração é a comprovação científica da eficácia da droga — o que não existe. O órgão responsável por avaliar se um produto será usado na rede pública é a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), colegiado formado por representantes da indústria e diversos setores.
O modus operandi de Bolsonaro é escabrosa, é ditatorial, pois ao divulgar apenas uma orientação, o ministério contorna a dificuldade de criar um protocolo e endossa o uso em larga escala da cloroquina, que se tornou uma das principais bandeiras de Bolsonaro, mesmo sem respaldo científico, não como um caso de Saúde Pública, mas como um caso político.
O embate do Bolsonaro com a Anvisa vai ter novos capítulos, visto que a Agência não alterou o controle sobre o tipo de receita para a compra desses medicamentos e segue exigindo a Receita de Controle Especial em duas vias: uma é devolvida ao paciente e outra fica retida nas farmácias.
O discurso anti-ciência de Bolsonaro é extremamente perigosa, pois flerta com as teorias de conspiração de que as indústrias farmacêuticas querem deixar as pessoas doentes para lucrarem mais. E suas ações anti-ciência são justificadas pelo populismo barato que evoca o “povo”, enquanto categoria abstrata — muito embora, parte considerável desse “povo” seja contrária às ações do presidente -; em nome desse povo, que suas ações ditatoriais se fundamentam. Por isso, prevejo que está ao norte de Bolsonaro a implosão da Anvisa.
Chegamos ao ponto de que o #ForaBolsonaro é também uma questão de Saúde Pública.