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Quando vamos parar de criticar o trabalho de pessoas negras por aquilo que elas não prometeram executar?

Djamila Ribeiro a Beyoncé Knowles-Carter foram criticadas pela forma como conduzem os seus trabalhos. É possível encontrar algo em comum nessas críticas?

Caio Faiad
Boletim Antidoto

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Não pretendo nesse texto aproximar os trabalhos de Djamila Ribeiro e de Beyoncé Knowles-Carter, mas sim trazer à luz que as cobranças feitas sobre os trabalhos dessas mulheres são balizadas por aquilo que elas deveriam executar, mas não por aquilo que de fato executam. Não sou inocente a ponto de considerar que o que apresento é uma versão definitiva sobre os caso. O que expresso nada mais é do que um turbilhão de ideias que vieram na minha cabeça e que precisei trazer em texto para organizá-los. E portanto, considerado que tudo que apresento precisa ser pensados com maior aprofundamento. E quem sabe você não pode me ajudar a orientar o meu pensamento? Só sei que cansei em tempos de pandemia ficar pensando sozinho.

Dito isso, vamos ao texto…

No final de julho, pipocou na internet uma crítica para publi que Djamila Ribeiro fez para uma empresa de aplicativo. Letícia Parks, autora do vídeo, apresenta em seu vídeo pontos que me parecem interessantes para uma discussão aprofundada, contudo precisamos avaliar o modo como a crítica é colocada. Observe nas capas dos vídeos disponíveis em sua conta no twitter que os títulos possuem Djamila como foco principal. Com formação em Letras, me parece ser interessante pensar nesse detalhe, pois muito embora a intenção de Letícia possa ter sido fazer um debate político, o que ficou marcado na internet foi unicamente o ataque de uma mulher negra a outra mulher negra.

Letícia Parks poderia ter tirado o foco da Djamila e ter aproveitado os 15 minutos de fama para de fato elevar o debate político. Contudo, se não personalizasse a discussão provavelmente não teria a repercussão midiática que teve. Com isso, temos perguntas a responder:

  • Do ponto de vista político-ideológico a repercussão do vídeo serviu para aprofundamento do debate contra as desigualdades de raça e de classe no Brasil? Ou serviu apenas como arma para os vários opositores do trabalho de Djamila?
  • Qual foi a transformação política que o vídeo de Letícia conseguiu difundir em cada pessoa que viu o vídeo? Houve uma construção de uma nova ideia na mente dos espectadores? Ou só serviu de mero entretenimento para quem só gosta de ver o circo pegando fogo?

Eu tenho a impressão de que as pessoas mal sabem quem é Letícia Parks, e muito menos as ideias que ela defende diariamente. Dentro da minha bolha social a chamam de “aquela moça que criticou Djamila”. O epíteto virou algo comum na internet, mas o/a referente é trocado de tempos em tempos. Hoje o referente é Letícia Parks. Amanhã o referente pode ser até eu, se não produzir algo de novo com as críticas que porventura fizer ao pensamento de Djamila.

Com o tal vídeo, as pessoas até sabem em que pontos criticar Djamila, mas não compreende como se posicionar criticamente a partir daquele ponto de vista, trazido por Letícia Parks, em outros contextos do cotidiano. Por isso, arrisco a afirmar que o famoso vídeo não só tentou destruir a forma consciente como Djamila optou em elaborar a resistir contra as estruturas opressoras — ação essa que nem é explicitada, descrita, para que o espectador entenda o motivo que faz Djamila agir da forma que age — , mas como não construiu nada no lugar para quem assistiu. Novamente, me arrisco a afirmar que não houve uma nova construção de ideia para o público-alvo, apenas o apedrejamento virtual de Djamila.

Mas o ponto que eu quero discutir aqui é que tanto Djamila Ribeiro quanto Letícia Parks são mulheres negras que militam por uma causa. Ambas querem uma sociedade mais justa, contudo possuem estratégias diferentes para atingir essa ideia. No discurso de Letícia fica evidente que há apenas uma forma de construção de uma sociedade mais justa, esse caminho é o anticapitalismo. Do modo como Letícia apresenta seu discurso intitulado em letras garrafais “Djamila e seu apoio às empresas” parece que Djamila não é anticapitalista. Afinal duas pessoas anticapitalistas, só podem andar em sintonia. Certo? Errado!! Existem diferentes formas de resistir ao capitalismo que podem ser sintetizadas pelas seguintes lógicas: esmagar o capitalismo, dominar o capitalismo, escapar do capitalismo e erodir o capitalismo. Tais diferenciações são explicadas na tradução de Ricardo Moura para o texto How to Be an Anticapitalist Today (Como ser um anticapitalista hoje?) de Erik Olin Wright, sociólogo autor do livro Como ser anticapitalista no século XXI?

Vamos partir de um princípio que a estratégia de Letícia Parks é “esmagar o capitalismo” e a de Djamila é “dominar o capitalismo” (ou qualquer outra diferente da de Letícia). Ambas tem consciência de suas escolhas teóricas. Djamila é mestre em Filosofia Política, qualquer estratégia que ela aponte para fazer o seu trabalho é uma decisão racional dela. Seria coerente Letícia Parks (ou qualquer outra pessoa) cobrar de Djamila uma estratégia diferente daquela que a intelectual propôs para o desenvolvimento do seu trabalho? É coerente Letícia Parks ir para o debate público reduzindo uma outra mulher negra como traidora de um movimento de luta e tratar apenas o seu lado como o modo “certo” de ação? Na minha leitura, foi isso que Letícia Parks fez. E isso não é embate político, não é construção de ideias. Não é o tão almejado pela esquerda “trabalho de base”.

Julgo importante pensar que existem diferentes formas de agir politicamente contra essa estrutura capitalista que opera na manutenção das desigualdades, sobretudo para o povo preto. Estamos cada vez mais chamando pessoas negras para o debate público e essas pessoas também tem o direito de se aliar intelectualmente com qualquer uma das estratégias anticapitalistas, caso elas optem por serem anticapitalistas. Cada pessoa mobiliza seu trabalho político a partir de referenciais que decidiu fazer. E é a ideia que precisa ser questionada, e não a pessoa. Sobretudo em um realidade social enfrentada no Brasil em que pessoas negras possuem um espaço reduzido no debate público.

Erica Malunguinho recentemente fez a seguinte postagem em sua conta no twitter:

Temos aqui um posicionamento extremamente consciente. Passível de críticas? Sim. Como tudo nessa vida. Não existe perfeição no campo das ideias. Mas como criticar as ideias sem desmoronar as figuras públicas importantes para o movimento negro atual? Com certeza, não é fazendo um vídeo na internet colocando na capa “Malunguinho e seu apoio ao capitalismo”.

Djamila e Malunguinho são pessoas anticapitalistas, mas conscientes de que vivem dentro do capitalismo. E propõe outro modo de fazer agir frente a realidade que se põe. Uma revolução silenciosa, que come pelas beiradas, que abre na unha espaço dentro do sistema opressor para a população negra. Uma revolução que busca trazer outras pessoas negras junto com elas. Veja, Djamila podia estar na Globo sozinha. Podia publicar livros sozinha. Mas querendo ou não, o trabalho de Djamila fez eu ter na minha estante Silvio Almeida, Adilson Moreira e Carla Akotirene. Intelectuais que podem ter alguma diferença no campo das ideias de Djamila, mas que essas diferenças não as impeçam de estarem juntas quando o inimigo real está claro para todos. Os ditos revolucionários não promovem uma luta educativa para que a tão sonhada revolução aconteça, pois estão preocupadas em se colocar no debate público como o “lado certo” da história. Enquanto isso, Djamila e Malunguinho promovem um debate integrador da população negra a partir da Educação e da valorização da nossa cultura.

Se você acredita que determinada estratégia de ação é a mais correta a seguir, seja você a ocupar aquele espaço. Mas sem destruir o trabalho de outras pessoas, sem julgá-la por não estar desenvolvendo o papel que você acredita que ela deveria estar fazendo. É justo cobrar das pessoas negras determinadas formas de ação sendo que elas não se comprometeram a agir de tal forma? Fica o questionamento

Dito isso, temos o caso do recém lançado Black Is King de Beyoncé…

Black Is King é o filme que compõe a parte visual do álbum The Gift, lançado no mesmo dia em que estreou a nova versão animada e fotorrealista de Rei Leão. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, a antropóloga Lilia Schwarcz tece críticas estranhas a obra produzida e estrelada por Beyoncé. Assim, minha intenção aqui é mostrar aspectos que julgo como frágeis na análise de Schwarcz.

Lilia é enfática ao dizer que Beyoncé apresenta uma “África essencial e idílica” e afirma que tem dúvidas se os “jovens se reconheçam no lado didático dessa história”. A meu ver, o lado didático da história que muitos jovens se apegaram está atrelada a uma concepção estética: o Afrofuturismo. A África afrofuturista de Black is King pode até ser comparada com Wakanda de Pantera Negra. Ao não incorporar a questão do afrofuturismo em sua análise, Schwarcz nos apresenta um texto com sentidos distorcidos. Mal comparando, seria equivalente a analisar Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis sem trazer nenhuma discussão sobre a estética realista do fim do século XIX.

Eu, sinceramente, fiquei sem entender o que Lilia quis dizer na frase “mas o álbum decepciona também”. Decepciona quem, cara palida? Saber quem Beyoncé decepciona é fundamental, pois o verbo “decepcionar” presume ter expectativas. Quem se decepcionou com o álbum visual de Beyoncé, Lilia? Fala Lilia, cadê sua voz? (com perdão do meme) Quais expectativas eram essas que não foram atingidas? Não apresentando no texto quem se decepciona com Black Is King e sabendo que nenhuma obra agrada todo mundo, essa decepção apontada pela antropóloga fica em um grande vazio argumentativo, pois tudo que existe no mundo “decepciona também”. Mas seria essa decepção da própria Lilia Schwarcz? Seria Lilia da beyhive com expectativas para a obra, e eu não tava sabendo? hehehe

Agora falarei com um “membro” da beyhive. Tenho até carteirinha, quer ver?

Brincadeiras a parte, sou fã da Beyoncé desde as Destiny’s Child. Quando Beyoncé Knowles e Kelly Rowland (que aparece no vídeo de BROWN SKIN GIRL) iniciaram a carreira solo, o grande debate da música era como a indústria musical negava o rótulo de pop para artistas negras. Havia aquela máxima, se é branca canta pop, se é negra é R&B. Lembro bem dessa fase. Minha adolescência na favela foi regada pelos DVDs piratas cujos títulos nada mais eram sempre “Black Music alguma coisa” e “R&B alguma coisa”. Beyoncé negava o nascimento musical no R&B, contudo queria que sua música, que sua arte estivesse dentro das categorias para qual foi feita. Beyoncé sempre teve uma estética pop. Ela trabalhou bastante para romper essa barreira racial no mercado fonográfico estadunidense. Hoje ninguém duvida que Beyoncé é pop, mas faça o teste: quais e quantas cantoras negras possuíam o título de artista pop antes de Beyoncé?

Beyoncé já ganhou muitos Grammys, mas ao analisar suas vitórias observou-se Beyoncé só ganhava quando disputava com outros negros. Bey nunca ganhou, por exemplo, um Grammy na categoria principal Álbum do Ano, tendo momentos, no mínimo, incompreensíveis para beyhive como a perda para Taylor Swift em 2010 e para Adele em 2017. O fato era tão incompreensível que na vitória de Adele, a cantora britânica usou parte do seu discurso para homenagear o álbum Lemonade (2016), de Beyoncé.

Desconsiderou-se a historicidade do estrondoso sucesso irrefutável com momentos bastante controversos da indústria pop para com Beyoncé. Desconsiderou-se que Beyoncé é uma artista popular e é nessa linguagem que ela atinge o seu público alvo. Desconsiderou-se que Black Is King é um filme da Disney e, me surpreende que a fantasia, fosse ela afrofuturista ou não, ser esquecida “no churrasco” durante a elaboração da análise. Sendo fantasia, há um pacto com espectador que aquilo que se vê não é realidade. Desconsiderou-se o conceito de álbum visual que impactou o mercado pop desde álbum Beyoncé (2013), que sem aviso prévio lançou músicas e clipes de todas as músicas no mesmo dia.

Desconsiderar a historicidade artística de Beyoncé, é desconsiderar decisões estilísticas altamente conscientes. É possível identificar na obra de Beyoncé um projeto artístico coeso que segue em Beyoncé (2013), Lemonade (2016), Everything Is Love (com Jay-Z) (2018). Assim sendo, como analisar The Gift/Black Is King (2020) sem considerar o projeto artístico da cantora? Dessa forma, me causa estranheza ler que Beyoncé tem que sair “sala de jantar” em um artigo feito por uma cientista que deveria ter critérios sólidos para apreciação da obra apresentada. É quase como desconsiderar o Realismo na obra de Machado e ainda afirmar que ele não sabe escrever romance. Sob minha ótica, foi basicamente isso que Schwarcz fez no texto dela. Desconsidera uma das estéticas que fundamenta a obra, o afrofuturismo, e ainda manda Beyoncé “sair da sala de estar” porque esse não é modo de ser fazer luta antirracista.

A antropóloga, estudiosa da questão racial brasileira, optou por desconsiderar muitas situações que permite compreender melhor as decisões estéticas escolhidas pela diva pop negra. Contudo preferiu balizar o álbum visual com elementos externos a obra, operando na utilização da comparação com Hamlet, como se essa comparação fosse necessária para elevar a narrativa artística de Beyoncé.

Algumas críticas são pertinentes, mas personaliza na obra da Beyoncé, me parece desonesto porque deveria ser a crítica ao pop como um todo. Mesmo assim, quando se estuda o pop de Beyoncé, quantas artistas pop apresentam um projeto artístico tão coeso quanto Beyoncé? Ao lançar álbuns visuais, com todos os clipes de forma simultânea, Beyoncé tenta romper com a lógicas dos charts que coloca a qualidade da obra pela posição de um ranking. Quantas artistas pops ousaram dessa forma? Ao se propor fazer pop, Beyoncé faz uma obra bastante articulada com diversos elementos, que não podem simplesmente ser desconsiderados da análise. Solicitam a Beyoncé que o pop dela não tenha glamourização “Filme de Beyoncé erra em glamourizar a negritude com estampa de oncinha”, que não tenha representação de uma certa estratificação social. E nesse ponto, Beyoncé é cobrada por algo que não prometeu no seu fazer artístico.

Ela é uma mulher negra dos Estados Unidos, uma sociedade extremamente capitalista, onde os valores de sucesso estão relacionados às posições hierárquicas que o dinheiro dá. E isso está na música pop estadunidense. Qualquer pessoa negra nos EUA (e no Brasil também) para fazer sucesso vai ter que conseguir manipular esse discurso capitalista. Ensaiam críticas a Beyoncé por não ter um discurso mais social, mais anticapitalista. Mas ela nunca prometeu isso!! E aí, a meu ver, críticos que estão esperando um debate antirracista aliados a pautas anticapitalista, antifacista e tanto outros anti, criticam a ausência de fatores como o anticapitalismo no sentido de colar como um deficitário do antirracismo de Beyoncé “diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”.

Se a luta antirracista não pode ser feita com uma roupagem pop, presume-se que na mente de Schwarcz, e de outros teóricos, já foi estabelecido um modo correto de ser fazer a luta antirracista, é por esse modo que ela baliza sua crítica como se Beyoncé tivesse que promover sua arte a partir de um barema e assinalando aquilo que ela deveria entregar para o público. Para uma cientista, o antirracismo pode ser um conceito, uma teoria, mas para uma pessoa negra, o antirracismo é quase um ethos, e indeferi do modo como ela decide operar.

As críticas a Djamila e Beyoncé são exemplos de que o trabalho que pessoas pretas desenvolvem nunca é suficiente para os críticos de plantão. Na promoção de ações para desestruturar uma complexa estrutura racista, que pasmém, não foi construído por pessoas negras. Especificamente no caso da Beyoncé, vale sempre lembrar que os brancos criaram o racismo e é inusitado brancos dizerem para pessoas negras como elas devem subverter a lógica social que a própria branquitude criou.

Aos olhos dos críticos, elas sempre precisarão fazer algo a mais daquilo que já fazem. Os trabalhos de ambas não são analisadas por aquilo que fazem, mas por aquilo que acreditam que elas deveriam fazer. Nesse sentido, os críticos deslegitimam decisões conscientes que essas pessoas negras precisaram estabelecer para executar seus respectivos trabalhos.

Nesses casos, temos a reiteração daquela velha história racista que todos nós sabemos: de que negros precisam se esforçar muito mais para chegar no mesmo nível hierárquico de pessoas brancas. A vista dos olhos externos, essas mulheres negras não podem ter autonomia para conduzir seus trabalhos da forma como querem conduzir. E isso é bastante problemático em si!!

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Caio Faiad
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👨🏽‍🔬Doutorando-USP e fã da Beyoncé ✊🏼Ciência, Democracia e Direitos Humanos. @ocaiofaiad em todas as redes sociais