[Resenha] Carta à Rainha Louca

Lara Magalhães
Boteco Literário
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3 min readAug 23, 2022

Carta à Rainha Louca é o último romance de Maria Valéria Rezende, lançado em 2019 pela Editora Alfaguara.

Maria Valéria estreou na literatura em 2001 com quase 60 anos e é uma autora muito premiada inclusive com 3 Prêmios Jabuti: 2009 na categoria literatura infantil com “No risco do caracol”, em 2013 na categoria juvenil com “Ouro dentro da cabeça” e em 2015 nas categorias romance e Livro do ano de Ficção com “Quarenta Dias”.

Além disso, ela é uma das idealizadoras do coletivo literário feminista “Mulherio das Letras”, um movimento que conta com cerca de sete mil mulheres profissionais da área literária (desde criativa à produtiva) com o objetivo de dar visibilidade, questionar e ampliar a participação das mulheres no cenário literário.

Tudo isso nos ajuda a entender esse romance que se passa no século XVIII, escrito em forma de carta, com uma linguagem da época e que mostra como o machismo está tão presente nos dias atuais quanto naquela época.

Isabel das Santas Virgens, presa no Convento de Recolhimento da Conceição, na cidade de Olinda, Pernambuco, resolve escrever uma carta a Rainha Maria I, conhecida como Rainha Louca, inicialmente uma carta de apelo mas mais do que isso, uma carta para contar à Rainha “toda a verdade sobre o que em Vosso nome se faz nestas terras e a mim me fizeram.”

Apesar de branca, Isabel não era de uma família de posses e por isso foi criada como companhia da filha dos donos da casa onde seu pai trabalhava. Cresceram juntas, quase como irmãs e apesar de uma ser filha dos patrões e a outra não, o livro mostra a realidade da mulher naqueles tempos, como eram tratadas, a que estavam sujeitas.

Sua grande paixão eram os livros, a leitura, a escrita. E durante toda a sua vida foi acumulando conhecimento, aproveitando cada um dos locais por onde passou. Além de conhecimento Isabel também acumulou papéis que seriam úteis na sua jornada de escrever essa carta.

“De tal modo agarrou-me o costume de viver no escuro que, mesmo quando não tinha cópias a fazer, ali entre os papéis e livros me metia pelas noites adentro, a ler tudo o que me inspirava a fantasia e me permitiam os restos de vela roubados dos altares ou mesmo algumas brasas vivas que trazia do fogão numa concha de ferro. Aprendi assim a criar dentro de mim mesma lugares de uma vida livre, protegida pelas trevas, da qual ninguém mais podia suspeitar”

O livro é dividido em 4 partes, separados por anos entre 1789 e 1792. Os dois primeiros capítulos parecem um pouco confuso, difícil de enxergar a cronologia dos fatos mas no decorrer da leitura entendemos que isso reflete exatamente o estado emocional de Isabel. O terceiro capítulo, e mais longo, é onde a história se desenrola e conseguimos acompanhar toda a história da Isabel. Tudo fica claro, se encaixa no tempo certo. O quarto e último capítulo é quando conhecemos o que aconteceu com Isabel.

Durante toda a leitura encontramos partes rasuradas, que já no início Isabel se desculpa pelos pensamentos que ela não pode controlar e também pois na condição dela, existe a escassez de papel, que ela não pode se dar ao luxo de jogar aquele fora e começar novamente. Mas é nessa parte rasurada que estão as partes mais fortes, mais profundas de toda a carta.

“Perdoai-me a rasura, Senhora, que se me ia a pena correndo sem peias pelo papel. Corria a pena levada por inconvenientes palavras que teimam em escapar do sítio onde trato de tê-las bem atadas no meu espírito — já que delas não posso me livrar — para que não me venham a fugir pela boca e dar razão a quem por louca me toma.”

Segundo a própria Maria Valéria, em entrevista ao Correio Brasiliense ela diz: “Nesses trechos estão as maiores verdades da carta, praticamente um protesto feminista à moda do século XVIII”

O livro em si é um protesto feminista, baseado em uma realidade machista, misógina e patriarcal do século XVIII que nos dias atuais ainda vemos, de outras formas, com outras roupagens acontecendo.

Em mim, ficou o desejo de ler os outros romances da autora e curtir mais ainda essa escrita tão peculiar e esse olhar tão rico e importante para as questões femininas.

Carta à Rainha Louca
→ Maria Valéria Rezende
→ Editora Alfaguara
→ Leitura 19 de 2022

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Lara Magalhães
Boteco Literário

De falar, de ouvir, de ler e de escrever. De beber com os amigos e de sorrir para a vida. IG literário: @botecoliterario_