Café da manhã e cachorros falantes

Billy Garcia
Bots Brasil
Published in
6 min readJan 20, 2021
Workshop de acesso ao IA • Uma provocação aos novos tempos, negócios e hábitos.
Uma tarde no Museu Santander falando sobre a intersecção entre criatividade e IA

Passei as últimas décadas transitando em agências de comunicação, transitando pelo mundo e transitando por mim mesmo. Usei a comunicação para sensibilizar pessoas no mundo inteiro através da imagem e da interação, quase sempre me orientando por “receitas” básicas da propaganda, como a prosopopeia, que é mais ou menos como usamos figuras de linguagem para atribuir a objetos inanimados ou seres irracionais a capacidade de ter sentimentos ou realizar ações próprias.

Verdade seja dita, a comunicação ainda se baseia em conceitos muito básicos do nosso comportamento, exemplo disso é como nos sentimos a respeito das propagandas de café da manhã… sabemos que aquela voz em off, representando a margarina te contando sobre como ela e o pão quentinho combinam bem é pura “bulshitagem”. Meu café da manhã é quase sempre corrido e o pãozinho francês da padaria mais próxima de casa é definitivamente terrível.

Mas quer saber a verdade?
A gente — por causa de gatilhos comportamentais mesmo — acaba caindo nessa armadilha quase todos os dias, que é buscar empatia onde eventualmente, o comportamento não pode ser gerado de forma real. Não sei você, mas continuo comprando a mesma margarina da propaganda a anos, e mesmo que tenha estado do “outro lado da cortina” pra saber que aquilo tudo não passa de um truque, sigo atrás desse momento perfeito como um cão que persegue carros.

Essa introdução toda, te para perguntar o seguinte:
A comunicação nos ensina “ desde sempre” que dar personalidade às marcas vende. Ponto. Como fica isso num cenário em que estas mesmas marcas — que são, de fato, objetos inanimados atrás da sua grana — são capazes conversar com seus consumidores e criar storytellings cada vez mais complexos? Qual o equilíbrio entre ter acesso a produtos e serviços cada vez mais personalizados e se tornar a isca perfeita? Em 2021, tomar a pílula vermelha ou a azul?

Nos últimos anos, com alguma experiência nas humanas e focado em criar pontes mais sólidas entre os dois universos, migrei de vez para as exatas.
Os projetos conversacionais foram a ponte definitiva entre os dois campos de atuação, pois são iniciados nos squads de desenvolvimento mas quando chegam na ponta, o engajamento e a performance do projeto como um todo vai depender de variáveis essencialmente humanas. Dei sorte, a percepção do mercado e das comunidades na época era exatamente a mesma, e como consequência disso, me envolvi em mais de 100 projetos conversacionais utilizando praticamente todas as plataformas do mercado, como aliás, você que está lendo este artigo, muito provavelmente, também já tenha o feito.

Embora estas plataformas, de maneira geral, tenham suas particularidades de uso e features, o conceito é sempre mais ou menos o mesmo: Uma jornada de conversas que pode ser abertas ou fechadas e que, como premissa, leva os usuários até prompts que alguém escreveu. Posso estar equivocado, mas das diversas ferramentas que uso ou usei, sejam Rasa, Nama, Zenvia, Aivo, Dialog Flow, VoiceFlow, ChatFuel, Blip, Watson… de alguma maneira, estão todas elas orientadas a entregar uma tratativa conversacional sobre algum assunto. Essas tratativas, que atualmente são escritas por profissionais humanos, podem passar a ser criadas instantaneamente por IAs cada vez mais autônomas, e em bem pouco tempo.

Segue o raciocínio para entender onde isso pode nos levar e como pode nos impactar ‘pra lá do hype.

Cachorro Falante

Quando, em 2019, iniciou-se o enorme hype em torno do liberação para testes da API da GPT-3, uma IA capaz de criar — e aqui vou me abster propositalmente das aspas — textos, artigos, poemas, microcontos e até dar dicas para cometer um assassinato bem sucedido, enganando a percepção humana sobre sua origem artificial, muito se discutiu sobre a capacidade de criar a integridade desses conteúdos sem a supervisão humana, entretanto, me parece que a verdadeira revolução reside na usabilidade e não acuidade do modelo.

É mais ou menos como li recentemente: “A GPT-3 pode ser vista como um cachorro falante. Não se trata — ainda — sobre a profundidade dos assuntos, mas sobre sua capacidade de falar”.

A amplitude do conceito conversacional utilizada no modelo é enorme e seu funcionamento é todo orientado por comandos diretos, tão simples quanto: “Escreva o melhor poema de João Cabral de Melo Neto…” para ter resultados como o parágrafo abaixo:

Do poder das palavras, do desejo, da loucura, da crueldade, da força que só as palavras têm. E da impotência das palavras, da sua falta de uso, da sua ausência,do silêncio que só elas têm.

O homem tem a fala e não tem voz, o homem tem o grito e não tem o silêncio, nem pára para pensar, como o pássaro, nem volta as costas e faz silêncio como o peixe. O homem fala, e não tem a boca, grita, e não tem a garganta, e a palavra parte da sua boca.

O homem, o ser humano.
Para falar como um deus tem que ter a boca de um deus.

Para simplificar, o modelo — e vários outros que nasceram na sequência , como o GPT-Neo, uma recriação da GPT-3 em código aberto — é capaz de criar seus conteúdos baseados numa gigantesca base de informações e sua operação é orientada por comandos diretos que conseguem interpretar até as intenções mais subjetivas. Seria um UP gigantesco na relação entre intents e objectives, mas ao criar os próprios conteúdos o modelo teoricamente poderia excluir a necessidade dos objectives. Você que é DEV, deve ter entendido o tamanho do paradigma com o qual estamos tratando aqui.

Dito isso, seguem algumas previsões para as quais já temos conhecimento técnico e criativo para prever como impacto.

Cenário profissional: O UXWriter

Aposto bastante na mudança de paradigma para esta função, que estará cada vez mais orientada à catalogação e curadoria de conteúdos que à criação de prompts e tratativas conversacionais finais. A área deve ficar cada vez mais atraente para profissionais de outras áreas relacionadas a curadoria de conteúdo que também estão em fase de adaptação como jornalismo, biblioteconomia e afins. A concorrência deve aumentar sensivelmente por vagas relacionadas a conteúdo, mas a exemplo dos últimos meses, a demanda por estes profissionais também tende a aumentar.

Cenário profissional: O desenvolvedor

O mercado tem oferecido opções cada vez mais simplificadas e capazes de atender até mesmo as demandas mais específicas de desenvolvimento, o que chamamos de Low-code e No-code, dois movimentos muito fortes nas comunidades especializadas e que aproxima cada vez mais adeptos. Minha sensação pessoal é que algumas “melancias devem se ajeitar pelo caminho” e a demanda por desenvolvedores que sejam capazes de criar sistemas que empoderem seus usuários não-técnicos só vai aumentar.

Novos produtos e serviços

Entre o final de 2020 e inicio de 2021, participei de dois projetos que confirmam o que venho falando nos meus workshops fazem uns anos: A era do First_name acabou, e se sua estratégia de marketing está orientada entender seu cliente somente pelo ponto de vista quantitativo, seu negócio tende a atravessar 2021 aos “trancos e barrancos”, isso SE atravessar.

A personalização dos bens de consumo e serviços vai tomar outra proporção nos próximos anos, seja pedindo uma pizza através da Alexa enquanto conversa com uma versão da Jojô Toddynho que conhece os seus gostos ou brincando com seus filhos e os personagens da Disney numa skill que conta historias infantis com o contexto da própria família.

Aposto demais, por exemplo, na publicação de livros criados por demanda e inteiramente por IAs conversacionais baseados no gosto pessoal dos seus leitores.

Análise de sentimento

Não é por falta de ferramentas de mensuração que nossos squads de marketing precisam permanecer qualificando leads quase que absolutamente pela perspectiva quantitativa. Nesses últimos anos, posso contar nos dedos a quantidade de vezes que presenciei a medição de análise sentimental em projetos conversacionais, o que indica claramente que ainda temos muito para aproveitar das nossas capacidades técnicas atuais.

Para encerrar, minha única certeza é que em 2021 não podemos ter muita certeza de nada.

Imagem com “cachorro em destaque parecido com o personagem Frank do filme MIB” e o título deste artigo em destaque: “Café da manhã e cachorros falantes”. Foto por Marcus Cramer no Unsplash.

Este artigo faz parte da série 21 em 2021 do Bots Brasil ✨

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