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O “bem-vindo” não é bem-vindo! Um ensaio inicial sobre flexões de gênero nas interfaces

Yasmim Costa
Bots Brasil

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Ao ligar em uma famosa empresa essa semana, ouvi o atendente virtual dizer “bem-vindo à XXX!”.

Ao participar de um grande evento de tecnologia no mês passado, fui recebida com uma mensagem eletrônica que dizia “bem-vindo à XXX!”.

“Bem-vindo”, “bem-vindo”, precisamos conversar sobre isso!

Diferentemente da língua inglesa, por exemplo, o nosso português possui flexões que permitem variações em algumas classes de palavras, classificando-as com o gênero feminino ou masculino.

Vejam, no inglês, podemos falar que uma pessoa, independente do gênero, é “a winner”. No português, nesse adjetivo, se a pessoa sobre a qual nos referimos é do gênero feminino, falaremos que ela é “uma vencedora”, caso contrário, se for do gênero masculino, será “um vencedor”.

Isso se chama flexão de gênero (existem outras flexões, como flexão de número e grau) e estudamos isso na escola e até fora dela.

Outra coisa que aprendemos na nossa cultura (e aí, também podemos estender para a língua inglesa) é que quando nos referimos ao “geral” ou à humanidade, usamos o gênero masculino. Essa construção padrão pode ser chamada de androcentrismo. Relembremos as sentenças:

“Men created the modern society…”

“Os homens criaram a sociedade moderna…”.

Ambas as frases se referem aos seres humanos em geral (tanto do gênero masculino, como feminino).

O “bem-vindo”, o “fique tranquilo” e o “ainda não sou cadastrado” são exemplos de expressões que generalizam os tratamentos, usando o masculino como referência, mesmo que o usuário seja, na verdade, uma usuária.

É importante dizer que, se soubermos o gênero, é claro que podemos usar as flexões. E isso até ajudará a criar um vínculo a mais com as pessoas (aliás, guardemos a palavra “vínculo”, ela é muito importante nas interfaces interativas).

Alguns cadastros, por exemplo, pedem a preferência de títulos para consolidar dados, mas também para usar tratamentos flexionados. De qualquer forma, é aconselhável perguntar à pessoa, no cadastro, como ela quer ser tratada, levando em conta toda a diversidade e discussões contemporâneas sobre gênero (que não vamos abordar nesse texto).

Independente disso, existem certos níveis de interação que não nos permitem saber qual o gênero do usuário (e nem quem ele é), por isso, o ideal é que não recorramos ao padrão, usando o “bem-vindo” como tratativa geral.

Mas, se é social, cultural e gramaticalmente aceito, por que as interfaces não devem usar o “o” como default?

Primeiro, é importante dizer que nossos diálogos devem ser curtos e acessíveis, porém, apesar da aparente simplicidade, carregam ideologias que estão sendo transmitidas inconscientemente. Vale pensar em cada palavra.

Dito isso, gostaria de trazer uma reflexão sobre os sentimentos ocultos que esses tratamentos generalizados podem causar, afastando emocional e psicologicamente os usuários e usuárias da nossa interface (e, consequentemente, do nosso produto/serviço).

As pessoas que interagem com os nossos aplicativos são únicas e, como humanas, carregam a necessidade de serem reconhecidas como tal. Isso explica porque os processos de customização e personalização fizeram tanto sucesso nas últimas décadas (e a tendência é que se aprofundem ainda mais, mesmo que com outros nomes e definições).

Sem personalização, tendemos a acreditar que aquele atendimento eletrônico pode não conseguir resolver o NOSSO problema, já que é um atendimento feito para resolver o problema de TODOS, e o nosso problema é ÚNICO, como nós!

Vamos imaginar a seguinte situação: você liga para o SAC de uma empresa, a fim de resolver um problema com a sua fatura. A primeira coisa que ouve é: “sejam bem-vindos à XXX!”.

Teoricamente, a frase está correta, afinal, milhares de pessoas estão ligando diariamente para esse SAC (inclusive, ao mesmo tempo). Porém, sentimos que a frase não foi exatamente para nós, mas para TODOS. Sem personalização, tendemos a acreditar que aquele atendimento eletrônico pode não conseguir resolver o NOSSO problema, já que é um atendimento feito para resolver o problema de TODOS, e o nosso problema é ÚNICO, como nós! Por isso, precisamos falar com um atendente, um atendente humano vai entender melhor o NOSSO problema, porque é gente como a gente.

Desconheço algum SAC (por telefone) que fale “sejam bem-vindos”, foi um exemplo para que nos coloquemos no lugar das pessoas do gênero feminino. Apesar de estarem acostumadas com o tratamento, quando ouvem a frase “fique tranquilo que já vamos transferir a sua ligação”, sabem, no fundo, que aquele diálogo não foi construído pensando nas necessidades delas e sim nas necessidades de milhares de outros usuários e usuárias (pois, está usando a tratativa padrão de gênero).

Assim, de forma inconsciente, as pessoas acabam sentindo dificuldades para se engajarem, confiarem e criarem vínculos com as interfaces.

Muitas pessoas me perguntam sobre uso do “(a)” nos diálogos escritos, como, por exemplo, nessa mensagem da empresa Netflix:

É menos pior, mas, ainda assim, situa um dos gêneros em segundo lugar. Ainda temos a sensação de que é uma frase padrão corporativa, não é mesmo?!

As interações virtuais são desafiadoras porque, ao mesmo tempo que precisam recriar alguns padrões de relação social, também têm a liberdade de desconstruí-los para melhorá-los.

Por fim, se eu tivesse que listar as vantagens de não usar o gênero masculino como default nas interações, as principais seriam:

  1. demonstrar a inteligência da interface (não sabemos quem está lá, portanto, não precisamos imaginar e pressupor erroneamente);
  2. construir uma relação de confiança com o usuário ou com a usuária, já que ele ou ela não terá a sensação de ser “só mais um”;
  3. dialogar de maneira criativa, usando palavras diferentes dos padrões do que “todo mundo faz”;
  4. posicionar a marca/produto/serviço como uma entidade que leva em consideração discussões contemporâneas sobre posicionamentos e definições de gênero.

As interações virtuais são desafiadoras porque, ao mesmo tempo que precisam recriar alguns padrões de relação social, também têm a liberdade de desconstruí-los para melhorá-los.

É importante que saibamos o que podemos copiar e o que podemos deletar e recriar. A utilização do gênero masculino como default pode ser descartada. No caso das boas-vindas, por exemplo, foi-se o tempo em que apenas a frase “bem-vindo” refletia acolhimento, já que o acolhimento também pode ser transmitido através da interpretação e entonação da frase.

Algumas interfaces que não usam o “bem-vindo”, mas não deixam de cumprimentar as usuárias e os usuários:

“Esse é o atendimento SKY, boa noite!” (SKY — 10611) (essa é uma das saudações)

“Olá, eu sou…” (Saraiva — 11 3065 7200)

“Itaú 30 horas. Bom dia!” (Itaú 30 Horas — 11 4004 4828)

“Aqui é da Nextel, bom dia!” (Nextel — 11 4004–6611) (essa é uma das saudações)

“Bom dia, você ligou pra TIM!” (TIM — 1056)

“Boa noite! Pra atendimento em português…” (Claro — 1052) (essa é uma das saudações)

“Bom dia, você ligou…” (Santander — 0800 762 7777)

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Yasmim Costa
Bots Brasil

From Brazil - Having a degree in Social Communication, I've always written. Nowadays, conversation design www.linkedin.com/in/yasmimcosta/