Você seria usuário do seu bot ?

Felipe Magalhães Bonel
Bots Brasil
Published in
6 min readAug 18, 2019
“Desculpe, não entendi. Pode repetir com outras palavras?”​

TL;DR:

  • “Usabilidade” e “empatia com usuários” são conceitos que cada vez mais ficam de fora de processos de construção de assistentes virtuais, e este é um dos principais motivos de insucesso de produtos com grande potencial.
  • Realizar um levantamento das principais dores automatizáveis dos usuários é um bom começo para a construção de um backlog de produto consistente.
  • Ter conhecimento profundo sobre como funciona, no mundo real, a interação transformada em fluxo é fator de sucesso para a construção de interações sólidas.
  • Entre um NLP mal treinado e um bot burro, talvez seja melhor se ater ao que funciona. Se for para fazer, é bom fazer direito e garantir um treinamento eficiente para as intents do contexto.
  • Olhe com carinho para seu usuário e se esforce para a experiência de seu bot ser a mais simples e encantadora possível. A primeira opinião é a que, muitas vezes, salva ou mata um chatbot.

Você seria usuário do seu bot?

Se a resposta para esta pergunta for “não”, talvez seja hora de repensar algumas coisas.

Afinal, não existe nada mais nocivo à implementação de uma nova interface ou canal de comunicação com o usuário do que uma experiência de uso desenhada de qualquer jeito. E como isto, infelizmente, é mais regra do que exceção, é importante que se discutam saídas centradas na usabilidade para que não se dê razão aos agnósticos de plantão que insistem em afirmações como “chatbots não funcionam” ou “assistentes virtuais não dão certo porque os algoritmos ainda não estão evoluídos o suficiente”.

Bobagem pura! Cá entre nós: nunca vi ninguém culpando o mobile pela grossa quantidade de apps malfeitos em circulação pelo mercado, muito menos ouvi qualquer cético de plantão dizendo que “ah, esse negócio de site aí é bobagem”. Não. A questão está muito mais em saber superar o hype em cima da expectativa criada em torno da tecnologia e entender quais as perguntas certas a serem feitas antes de tocar um desenvolvimento de um potencial gerador de frustrações. Acredite — entre fazer mal feito e não fazer, às vezes é melhor nem começar.

Isso vai ajudar alguém de verdade?

Esta talvez seja a pergunta mais complexa a se fazer e, portanto, a mais importante. Do ponto de vista prático, seu assistente virtual irá facilitar a vida de alguém com alguma coisa? Se sim, pode seguir em frente. Se for para ter por ter, melhor não.

“Mas o Gartner disse que, até 2020, 85% das empresas vão estar usando interfaces conversacionais para automatizar seu atendimento ao cliente. Então eu preciso ter uma.”

Sim. 2020 é daqui a menos de cinco meses e eu bem que gostaria que 85% do atendimento ao cliente do mundo fosse automatizado, conversacional, massivo one-to-one. Por outro lado, a quantidade absurda de bots sem propósito claro nem objetivo definido soltos pelos mensageiros acaba trazendo mais dores de cabeça do que alegrias.

Garanto: pessoa alguma vai fazer questão de conversar com um chatbot institucional para saber em que ano sua empresa foi fundada, quem são os funcionários dela, em que segmento do mercado vocês atuam. Isto posto, é altamente recomendado que se minere a base de dados do seu negócio para entender três coisas básicas:

  • Quais as principais dores dos meus consumidores?
  • Essas dores podem ser resolvidas com um fluxo conversacional?
  • Eu tenho condições sistêmicas (APIs, microsserviços, bancos de dados) para enriquecer as informações deste fluxo?

Respostas afirmativas às perguntas acima, se organizadas direitinho, podem virar um ótimo material para a organização de um roadmap de implementações consistente, centrado nas dores de seu usuário e na obtenção de ROI para o seu negócio.

Esta é uma maravilhosa situação de ganha-ganha, na medida em que garante previsibilidade, eficiência e a consciência limpa de que consumidor nenhum está te xingando porque o bot o mandou instalar o seu aplicativo para conseguir ter acesso a uma interação transacional que você priorizou sem ter condições para tal.

Eu conheço bem a experiência que eu pretendo automatizar?

Tendo este roadmap redondinho (ou ao menos rascunhado) em mãos, uma prática louvável é garantir que a abordagem para a criação dos fluxos conversacionais está adequada. Muito do processo da escrita dialógica passa por conduzir o usuário rumo à resolução de seu problema, ou seja, ser preditivo em como ajudá-lo melhor. Para isso, nada mais razoável do que formular suas hipóteses com o máximo de informações a respeito de comportamento de uso, satisfação com atendimento e, principalmente, algumas métricas de eficiência e retenção.

“Pesquisa com o usuário é frescura, aqui a gente tem um bom feeling”.

Então vai aí, só que a chance de errar é de quase 100%. Boas possibilidades de encantar um cliente ou garantir uma experiência memorável se perdem por assistentes que não estão preparados para situações comuns dentro de determinado contexto, ou que são por demais insistentes e não possuem uma válvula de escape.

Não adianta mandar 5438 notificações pelo Messenger ou pelo WhatsApp se o seu usuário não tiver o menor motivo para conversar contigo. Não adianta treinar a sua NLP para reconhecer elogios se o seu público alvo estiver querendo arrancar o seu couro por algum motivo.

Acredite: um bot meu já respondeu “O afeto é recíproco ❤️” para uma usuária que tinha digitado “desisto de você”. O resultado destas interações, embora ironicamente cômico, nunca é bom.

Por outro lado, se você tiver plena consciência do terreno em que está pisando, poderá desenhar conversas capazes de turbinar em absoluto todo aquele plano de ROI levantado anteriormente. A lógica da lujinha nunca deixou de valer: cliente satisfeito sempre retorna.

Você vai ter condições de garantir o treinamento necessário para o bot performar bem?

Eu já fui muito xiita acerca da necessidade de se entulhar NLP de ponta em tudo que é canto para garantir que o bom português se compreenda aos quatro cantos. Ainda sou assim, de certa forma, mas é sempre bom pensar se o uso de algumas tecnologias não é puro overkill.

“Mas Felipe, a revista CIO disse que se eu não tiver um ‘Watson’, eu não vou ser inovador!”

Ok, vamos tentar abordar a questão de outra maneira: suponhamos que você trabalhe a três quadras de casa, que a escola dos seus filhos fique do outro lado da rua. Nessas circunstâncias, você investiria num carro? Provavelmente não, considerando o custo de manutenção e a trabalheira que dá garantir que tudo esteja sempre em ordem.

Quando falamos de Inteligência Artificial, a lógica utilizada pode ser a mesma. Se você quiser ter uma engine de processamento de linguagem natural ultra power, mas não tiver o menor saco (ou alguém disponível) para observar taxas de acurácia, colher feedbacks e treinar adequadamente, para que complicar?

Às vezes é melhor continuar confiando numa URA ou botar uma meia dúzia de quick replies em contexto fechado do que perder 90% dos seus usuários porque o seu voicebot parece uma véia surda por causa de speech to text mal afinado, ou porque o seu assistente virtual não é capaz de desambiguar “saldo de recarga” de “franquia de dados” só porque o consumidor final fala “meus créditos acabaram”. Sabe? São coisas que podem parecer detalhes, mas que mudam completamente o sentido da jornada de um usuário na utilização de uma interface cognitiva.

Por outro lado, ter um dispositivo de melhoria contínua é uma saída quase infalível para atingir a excelência. Gosto bastante de pensar no modelo da Vivo, que criou uma “escola” de treinamento para os bots de seu Call Center Cognitivo. Se a assertividade do processamento de linguagem deles hoje bate 86%, em boa parte é porque tem uma porrada de seres humanos, de monitores de qualidade a cientistas de dados, que trabalhou muito para que tudo se afinasse direitinho.

Fique calmo: você não precisa ter um setor na sua empresa com 18 pessoas dedicadas a treinar o seu bot. Mas ó: dá trabalho. Não pense que é mágica.

Em suma:

Mais do que ser cético ou evangelista a respeito de interfaces conversacionais, o importante é ser fiel ao seu público-alvo e se fazer as perguntas certas para garantir que seu produto final cumpra um propósito, encante seu usuário e se garanta como uma interface confiável e simples para que questões cotidianas possam ser resolvidos.

Em última instância, a empatia continua sendo a melhor válvula para este tipo de decisão: se você, no lugar de quem for usar seu bot, se irritar ou não conseguir sair do outro lado, é porque algo vai mal. Na dúvida, melhor ter alguém de Produtos ou de UX por perto para enviesar este olhar. Lembre-se: apesar de você não ser o seu usuário, ser capaz de se sentir em sua pele é importantíssimo.

Afinal de contas, nada pior do que um usuário frustrado de primeira viagem. Algumas primeiras impressões são difíceis de reverter.

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Felipe Magalhães Bonel
Bots Brasil

An uneasy brazilian on a mission to make bots listen, think, and talk.