O que a relação entre o rapper Jay-Z e o futebol nos ensina sobre a miopia de marketing
Marcas pessoais e empresariais expandem suas atuações sob agenciamento da empresa de Jay-Z
Quando jovem, Shawn Corey Carter que morava em um conjunto habitacional popular no Brooklyn, Nova York, começou a traficar drogas, algo não muito incomum na região. Anos depois a tarefa acabou se provando útil em sua formação pessoal e de empresário de sucesso que acabou se tornando. Décadas depois Shawn falou um pouco sobre a época, em entrevista:
“Eu conheço sobre orçamentos. Eu era um traficante de drogas. Para estar neste negócio, você precisa saber quanto pode gastar, quanto precisa reinvestir (…) Em algum ponto, você tem que ter uma estratégia de saída, porque a janela é muito pequena. Você vai ser preso ou você vai morrer”
Após este período o rapaz teve que percorrer um longo caminho para se tornar cantor, carreira que ele realmente desejava perseguir, se lançando em 1996 ao criar a própria produtora, a Roc-A-Fella Records, para lançar seu primeiro álbum.
Hoje, Shawn, também conhecido como Jay-Z, conta com “singelas” 77 nomeações ao Grammy Awards, detentor de 22 estatuetas, é casado com a estrela Beyoncé, e possui uma visão privilegiada sobre os negócios, o que o faz um dos homens mais poderosos do mundo com uma fortuna pessoal de $ 1 bilhão de dólares, pouco deste montante, porém, vindo da música.
Jay-Z e diversificação dos negócios
Ainda não é possível se tornar bilionário apenas com uma carreira musical nos dias de hoje, por isso grande parte deste valor vêm dos investimentos do rapper em vários negócios, incluindo a própria indústria musical.
E quando falamos em “vários negócios”, isso quer dizer “vários” de verdade. Como um bom investidor que se preze, Jay-Z utiliza muito bem da teoria de Markowitz e faz com que a diversificação de seus investimentos diminua os riscos (não sistemáticos, aqueles referentes à empresas ou setores) e a volatilidade da sua carteira, fator preponderante para fazê-lo acumular a fortuna bilionária. Abaixo apresentamos a lista dos negócios em que Jay-Z possui investimentos:
- Moda (1): Em 1999 criou a Rocawear, vendida em 2007 por US$ 204 milhões.
- Moda (2): A marca de roupas de streetwear, Paper Planes foi criada por Emory Jones, amigo e chefe da área de lifestyle da empresa Roc Nation, também pertencente à Jay-Z, citada abaixo.
- Setor de bebidas: participação no conhaque francês D’Ussé, joint venture criada com a Bacardi em 2012, e fundou em 2014 a marca de champagne premium, Armand de Brignac, da qual continua 100% detentor.
- Investimentos: possui participação da Uber. Em 2013 Jay-Z comprou US$ 2 milhões em ações, hoje avaliadas em mais de US$ 70 milhões, e chegou a oferecer mais US$ 5 milhões ao fundador, Travis Kalanick, oferta recusada na época.
- Streaming musical: além da estimativa de que suas próprias músicas sejam reproduzidas um bilhão de vezes anualmente, o rapper também tem uma empresa de streaming para chamar de sua. Em 2015 comprou a sueca Aspiro por US$ 56 milhões e reformulou a marca, relançando o Tidal para rivalizar com o Spotify ,Deezer e Apple Music.
- Arte: Jay-Z também é cultura! dentre as obras de arte em sua coleção, destaca-se o quatro “Mecca”, de Jean-Michel Basquiat, comprado por US$ 4,5 milhões em 2013. O artista inclusive já foi citado várias vezes nas músicas de Jay-Z que não esconde o apreço pelo trabalho do haitiano falecido em 1988.
- Setor imobiliário: possui três propriedades nos Estados Unidos adquiridas por um total US$ 120,85 milhões.
- Aviação: a “uber dos aviões”, JetSmarter, que pretende oferecer vôos privados à preços mais acessíveis através de planos de assinaturas anuais, tem o cantor e a família real saudita como proprietários.
- Cosméticos: Juntamente com sua esposa, participou do venture capital da empresa de cosméticos Julep, investindo parte dos US$ 10 milhões arrecadados pela empresa em 2013 para a expansão da marca.
- Entretenimento: em parceria com a gigante Live Nation, em 2008 Jay-Z criou a agência Roc Nation que atua nas áreas de agenciamento de talentos, produção musical, desenvolvimento estratégico de marcas, moda, turnês, etc. Dentre as personalidades do mundo da música que tem contrato com a empresa estão Rihanna, Shakira, Lil Uzi Vert e J. Cole, e é justamente a partir daqui que os esportes entram em jogo.
Roc Nation e futebol
Dentre as várias áreas de atuação da Roc Nation, a principal delas é o de agenciamento de talentos. Além do setor musical a empresa tem um “braço” no setor esportivo com a agência Roc Nation Sports, que agencia atletas de futebol, basquete, futebol americano e de outros esportes em suas carreiras e utilização de marcas pessoais.
Especificamente no futebol a agência conta em seu portfólio com Kevin De Bruyne, Romelu Lukaku (foto abaixo) e Marcos Rashford, entre outros. No começo deste ano inclusive, a agência com sede em Nova York e Los Angeles, abriu um escritório em Londres para cuidar de perto de seus clientes e expandir ainda mais a lista de agenciados no país, que hoje conta com cinco atletas de futebol masculino e um de futebol feminino.
Em 2018 a empresa ficou entre as trinta agências esportivas mais valiosas do mundo pela revista Forbes com mais de US$ 960 milhões de dólares em contratos.
Miopia em marketing no futebol
Um dos maiores méritos e diferenciais da empresa é a forma como ela trata seus agenciados. A ideia pode ser resumida pelo começo da declaração do diretor de estratégia da Roc Nation Sports, ao falar sobre a atitude de Marcos Rashford. O jogador do Manchester United que é agenciado pela empresa influenciou o governo britânico a fornecer alimento à crianças de famílias carentes:
“Procuramos aquelas figuras que representam algo além do esporte que praticam. O que ele fez transcendeu a raça, transcendeu qualquer agitação social que estamos experimentando. Este é um rapaz de 22 anos que diz: ‘Nenhuma criança deve passar fome neste país. Isso é inaceitável”, declarou Kelly Hogart.
Este tipo de abordagem em relação aos clientes está alinhada com uma das ideias de estratégia e marketing mais influentes da segunda metade do século passado, mas que dificilmente é colocada em prática até hoje. Escrito nos anos 60 por Theodore Levitt professor de Harvard, o premiado artigo “Marketing Myopia” (Miopia em Marketig, em português) apresenta um dos erros mais comuns das empresas ao abordarem seus negócios.
Basicamente a miopia em marketing é a perda de foco do ramo em que a empresa atua, fazendo com que a empresa se atente mais na produção e venda de bens e serviços, ao invés de buscar identificar e satisfazer as necessidades e desejos dos consumidores, postura essa também conhecida como orientação para o marketing. Esta visão estreita pode fazer com que aos poucos, o negócio perca relevância sem que os donos percebam.
O artigo de Levitt traz o exemplo das empresas ferroviárias que perderam espaço para caminhões, aviões, etc. por se considerarem uma empresa do ramo de ferrovias, ao invés de um empresa de transportes. Ao “prestar atenção” apenas no produto que vendia e não no contexto em que estava inserido, o setor entrou em declínio.
Transportada para a área esportiva, a agência de Jay-Z aplica este conceito e não vê o futebol apenas como um esporte, mas sim como entretenimento; Rashford não é visto apenas como o atacante do Manchester United e da seleção inglesa, mas sim como uma personalidade que pode, por exemplo, estrelar a capa da revista de moda Vogue (foto abaixo) junto com ativistas de causas raciais, sociais, políticas e de saúde mental:
Milan: a parceira mais recente
Já a primeira parceria da Roc Nation com um clube de futebol aconteceu em julho deste ano, com o Milan (vídeo abaixo). Ambos já haviam atuados na realização do evento “From Milan With Love”, para homenagear os profissionais de saúde que atuam na pandemia de coronavírus. Com este acordo o Milan deve buscar aproveitar o conhecimento e a expertise da empresa de Jay-Z para expandir sua marca, ampliar a atuação digital, criar colaborações de merchandising e aumentar as vendas.
Com o projeto de revitalização do estádio San Siro já enviada à prefeitura de Milão — obra que deve explorar especialmente a venda de camarotes e ser sede de grandes shows — não seria de se estranhar que vários artistas agenciados pela Roc Nation se apresentem por lá nos próximos anos.
Assim como os concorrentes das empresas de ferrovia não eram apenas as outras empresas de ferrovia, parece cada vez mais claro que as equipes de futebol competem entre si apenas dentro de campo. Fora dele, os clubes disputam a atenção, disposição e dinheiro dos consumidores (pessoas que zapeiam os canais de televisão/celular em busca de algo interessante) com os setores televisivos, de cinema, streaming e até com redes sociais.
A junção entre Milan e Roc Nation, então, demonstra uma visão de longo prazo e esforços da equipe italiana em desenvolver o lado do entretenimento ligado à marca, e também da moda, por estar em um dos principais centros estilísticos da Europa, intenções confirmadas por Casper Stylsvig, diretor de receitas do clube, em duas declarações. A primeira para o site oficial do clube:
“Essa ambiciosa parceria nos ajudará a mostrar o poder das marcas AC Milan e Roc Nation nos esportes, entretenimento e estilo de vida e nos dará algumas novas maneiras empolgantes de interagir com nossos fãs e parceiros ao redor do mundo.”
e a segunda para à AP:
“Eu acho que a fusão entre esporte e entretenimento pode ser uma maneira de engajar novos torcedores. O mundo mudou drasticamente, e precisamos acompanhar. A Roc Nation está nos ajudando, nos desafiando com isso, é bom ter alguém ao nosso lado para fazer isso.
Muitas vezes a solução para um problema é uma bala de prata, neste caso aqui, parece que Milan e Roc Nation Sports pretendem usar uma metralhadora para atingir vários mercados.
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