As referências de uma cidade (ou porque devia ir mais vezes à Brasileira)

Ricardo Peixoto
Braga de outros tempos
2 min readMay 18, 2019

Ao longo dos anos da vida de cada um, habituamo-nos a ter uma série de pontos de diferentes referências, no que diz respeito a casas de comércio, restaurantes, cafés. Assim como isto acontece, também criamos referências de outras pessoas, desde os anónimos com quem nos cruzamos na rotina para onde a vida nos atira, até aos que não nos são anónimos mas a quem nos mantemos anónimos, visto que crescemos e nos modificamos fisicamente. Estas pessoas representam um pouco de um imaginário colectivo nativo, de quem uma cidade inteira é capaz de conhecer as façanhas e desfaçatezes, pontos de heroísmo e de pés de barro.

Todos temos alguma destas referências. Lembro-me em particular de uma mercearia onde ia com uma das minhas avós, um local frio, de temperatura e não só. Um cheiro que percebi mais tarde ser muito típico destes locais: o bacalhau em exposição e o café, juntamente com o pó da madeira velha do soalho, criava um odor tão facilmente reconhecível como difícil de recriar numa qualquer grande superfície comercial. Cheiros que nos atiram para memórias que pareciam há muito perdidas. Mimos perdidos no tempo, na forma de guarda-chuvas de chocolate.

Numa cidade cada vez menos humanamente reconhecível, estas figuras são garantia de ligação a um passado não tão distante em anos, mas numa evolução muito longínqua. Quase como que passando da fotografia a preto-e-branco para fotografia a cor. Estas figuras representam modos de vida distintos, antigos, em permanente desactualização, mas todos construtores de História e de Estórias, passeando pelo centro de Braga, quase como fantasmas de outros modos de vida.

A Brasileira é uma referência das referências. Um ícone que não perdeu o seu tempo e que não se perdeu no tempo. Um íman de figuras-referência, com o potencial de agregar os nativos modernos anónimos e de transmitir tempos de calma invejável, de menos cor e maior dificuldade. Nas poucas vezes que entro na Brasileira vejo sempre pelo menos uma destas figuras, que já estava perdida na memória.

A Brasileira — Braga (retirada de https://lifecooler.com/artigo/comer/cafe-a-brasileira/419549/)

Esquecemos o passado, interessa-nos o futuro. Esquecemo-nos (porque aprendemos no passado) que o que viveremos a seguir não está apenas intrinsecamente ligado ao tempo deixado: é uma continuidade. As conversas, as palavras-soltas que se ouvem em forma de multidão na Brasileira enquanto se bebe um café de saco recordam-nos isto, abrem a essa continuidade. Cruzam as memórias da cidade com as memórias pessoais.

Porquê a recordação das idas com a minha avó a essa mercearia? Porque vi a pessoa que a atendia sempre. Devia ir mais vezes à Brasileira…

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Ricardo Peixoto
Braga de outros tempos

Professor e investigador em Psicologia. Curioso sobre vários outros assuntos. Professor and researcher in Psychology. Curious on several other subjects.