Braga-fantasma

Ricardo Peixoto
Braga de outros tempos
3 min readMar 6, 2021

Há uns dias, uma caminhada levou-me ao centro de Braga. Eram 18h de um sábado de inverno e, à medida que me ia aproximando, percebi que o ritmo da cidade não era o habitual. Nada de imprevisto, porque o confinamento tem obrigado a isso.

Era um dia de neblina, com microgotas de água no ar. Daqueles dias que não atam, nem desatam e de tempo que passa devagar — a “morrinha”, como se diz por aqui. Daqueles dias que nos ensinaram, na escola, que o tempo é um estado de espírito; que passa sempre, mas não sempre ao mesmo ritmo. Horas que, por vezes, têm muito mais que 60 minutos, tardes que duram dias inteiros. São dias que nos ensinam as medidas do tempo.

Ainda que contando com a cidade deserta, tudo se torna estranho, diferente. Nunca tinha visto o centro da cidade como nas fotos de antigamente, sem ninguém. Ouvia passar um carro, de quando em quando, mas não mais que isso. Uma cidade feita de noite, de iluminação escura, que permite ouvir o silêncio e a ausência de conversas. Uma cidade sem barulho, em que o ruído do silêncio, por si só, cativa e envolve, com iluminação num tom quente, mas frio. Uma cidade sem pessoas, uma envolvência de sépia. Uma cidade-fantasma.

Avenida Central, 2021 (©Ricardo Peixoto)

Fez-me lembrar as fotos do passado, muitas vezes imagens da cidade sem pessoas. As fotos antigas muitas vezes não têm gente, não porque as pessoas não estavam lá, mas porque o tempo de exposição que a tecnologia da época exigia era grande e as pessoas não paravam. Por isso, muitas vezes se vêem os vultos, mas não as pessoas. Intuímos as presenças nessas fotos: a obra feita, a utilização dos espaços, os passeios e as estradas e outros artefactos que só se completam se forem usados. Nesta cidade de hoje, sem pessoas, as presenças intuem-se… estão lá, como vultos indetectáveis a olho nu.

Fixei-me na Igreja dos Congregados, primeiro, e na Arcada, em seguida. O que terão visto, o que terão testemunhado, quanto teriam a contar. Quantas almas passaram por ali, nas diferentes formas que a cidade tomou, ao longo dos anos. Tudo o que a cidade tem, é um testemunho dos que viveram. Tudo o que vier a ter, é um testemunho da vida presente. Se os edifícios têm alma, é pela alma que as pessoas lhes emprestam.

A luz entre a neblina desfoca, torna-se decomposta, parece iluminar menos. Sem as pessoas que normalmente se passeiam ou se apressam, a cidade habitada torna-se espectral. A luz menos viva parece acompanhar uma melancolia sépia, um estado de alma desacompanhado de gente. Uma cidade sem alma, portanto? Talvez… Mas o que é uma cidade com alma? Talvez a alegria, as conversas despreocupadas, as pressas preocupadas, as brincadeiras das crianças… A vida de personagens de um vai-vem que aparecem e desaparecem, que voltam ou não voltam. Ainda que a alma seja vista como imaterial, quando olhamos para objectos e locais com alma, damos-lhes características humanas. Visto desta forma, se não há pessoas, não há alma. Mas as fotos antigas, que não mostram pessoas, mostram ter alma: vestígios de outras formas de viver, de cheiros imateriais e de objectos impalpáveis. A alma está lá porque as pessoas estão lá, mesmo que não se vejam. Na cidade-fantasma de hoje, a alma está lá, porque as pessoas, pela sua ausência, marcam a presença, umas pelas outras.

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Ricardo Peixoto
Braga de outros tempos

Professor e investigador em Psicologia. Curioso sobre vários outros assuntos. Professor and researcher in Psychology. Curious on several other subjects.