Melissa não fica rouca.

Bradesco
bradesco
Published in
5 min readSep 16, 2016
Melissa, voluntária nos Jogos Paralímpicos Rio 2016/Foto: Pedrinho Fonseca

Para todos. Pode ser assim — separado — ou junto: paratodos, de uma vez só — como na canção que revela que meu era pai paulista, meu avô pernambucano e homenageia o nosso maestro soberano, Antonio Brasileiro. Há uma natureza particular no Parque Olímpico que se assemelha a este canto. É a sua capacidade de propagar vozes distintas, em línguas e tons diferentes, mas que misteriosamente se sobrepõem de forma harmônica, afinadas, num só tom. Essas vozes são ecos de todos nós.

Olhei para Melissa durante vários minutos, de longe, sem que ela me percebesse. Na frente do Estádio Aquático Olímpico, sob um sol que nos presenteava com quase 40 graus, a moça falava sem parar. Eram instruções, dicas, orientações para que o público soubesse exatamente o que precisava ser feito para acessar o espaço, transitar, ficar a par dos horários, acelerar o passo se as competições estivessem começando, ir com calma porque havia tempo, não precisa correr, pessoal. Nos raros momentos em que ela não falava, entretanto, não era o silêncio que aparecia. Melissa deixava o megafone numa mão e seu celular na outra — e quando parava para respirar um pouco, colocava uma música no celular e o posicionava de forma que o megafone propagasse o som. Organizava um baile ali mesmo, Rio 40 graus, cidade maravilha, e ela — sorridente — começava a dançar, fazia coreografias não ensaiadas com quem passava, conversava mais de perto — sem o megafone — com o público que se aproximava da sua simpatia, esse ímã poderoso. Esperei uma pequena brecha na sua agenda vocal intensa e perguntei se poderia falar um segundo com ela. Claro, respondeu. Só preciso dar uns avisos no meio do nosso papo, tudo bem? Tudo bem, vamos um pouco para o lado, para aliviar esse calor? Vamos, mas não muito, porque, olha lá, essa hora tem muita gente querendo entrar aqui para ver as competições. Tem muitos brasileiros brilhando na natação, sabe? Sei, sim. Hoje a gente vai ganhar umas medalhas, você vai ver. Concordo com seu otimismo. Pois então, vem muita gente ver, fica lotado sempre. E gesticula repentinamente com as mãos para mim, pede tempo, pede para que eu espere um pouco antes de continuar a conversa. Puxa o megafone e: atenção, o acesso para quem já está com ingresso é ao lado da rampa, por aqui, por favor, as provas vão começar em quinze minutos, vamos lá, gente, torcer pelos atletas brasileiros — e ganha aplausos, uns gritos, ganha a companhia de uma menininha que imita seus passos com a dancinha que faz depois do aviso, a música no celular, no megafone, a simpatia. Voltamos, sem megafone, à conversa. Ser voluntária é uma missão aqui. Tem muita gente envolvida nos Jogos, imagina se não houvessem essas vozes para receber, dar as boas vindas, saudar os estrangeiros, indicar os caminhos, falar dos horários, trazer as pessoas para perto, ajudar cada um que passa aqui para viver o espírito que esse lugar tem, vivo, presente em cada um e ainda mais poderoso em todos nós aqui, juntos, a minha voz é só para ajudar nesse caminho — ela encerra assim e volta para o megafone. Peço para fazer uma foto, peço um abraço, peço — apenas em pensamento — para que aquela moça não cale.

Luandeh, que também é voluntária, está de folga, sem uniforme. Ah, hoje você não está trabalhando? Não. E veio para cá? Ah, eu estava em casa e fiquei com saudade daqui. Aí vim ver uns jogos, torcer, gritar, cantar. Acredita que o Brasil ainda vai ganhar muitas medalhas. Ela é a voz da esperança.

Luandeh, voluntária nos Jogos Paralímpicos Rio 2016/Foto: Pedrinho Fonseca

Cláudia e Fabiano estavam eufóricos. Representantes da torcida incansável, que nem lembra que dia é hoje — quinta?, quarta?, não sabemos, mas viemos ontem e viremos amanhã também. Eles são as vozes da alegria.

Cláudia e Fabiano/Foto: Pedrinho Fonseca

Quando a tarde começa a dar sinais de que vai se despedir — e penso que talvez seja a hora de eu também partir, escrever este texto, ouço duas vozes irmãs. Gustavo e Guilherme não estão ali por acaso. O caminho deles cruza o meu caminho porque era preciso ouvi-los. Essa cadeira de rodas aqui ainda não é a ideal, preciso de uma preparada para o treino mesmo, sabe? Digo que sei, mas não sei. Preparada para que? Preparada para cair, esbarrar nos adversários, correr mais rápido na quadra — é que estou treinando basquete e acho que consigo estar pronto para disputar em Tóquio. E vou conseguir disputar, você vai ver. Vou ver, já estou vendo: ele é a voz da determinação.

Nossa conversa se estende por um longo tempo. O sol se despede, a temperatura baixa um pouco, acho que agora é hora de me despedir desse dia, desses encontros com gente tão rara. Penso que esse dia inteiro, esse intervalo entre despertar e dormir é justamente o tempo — e a nossa possibilidade — de realizar algo. Esse tempo longo (quando se pensa apenas no dia) ou tão curto (quando se pensa na vida inteira), quando podemos usar ou não a chance de transformar algo, de viver uma aventura como se não houvesse amanhã, subverter quaisquer verdades absolutas que nos foram ensinadas, questionar, amar, combater, conquistar. Esse intervalo entre despertar e dormir é quando podemos usar a nossa voz. Passo pela frente do Parque Aquático e Melissa avisa: já ganhamos uma medalha de ouro hoje, mas ainda temos mais uma chance, vamos torcer, o acesso para quem já está com ingresso é ao lado da rampa, por aqui, por favor. Ela é a voz que vai ecoar nas minhas lembranças desse lugar.

Gustavo e Guilherme/Foto: Pedrinho Fonseca

--

--

Bradesco
bradesco

Este é mais um espaço pra gente se conectar. Siga com a gente! ❤