Episódio 23

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brainstormfell
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12 min readOct 8, 2021

De cabeça para baixo

Mais um dia em Thatchum, e todos aguardam para o desjejum na taverna do Salto. E aguardam. Já passava da hora e nada ocorria. A porta não abria, ninguém dava nenhuma satisfação, embora o cheiro de comida já fizesse todos salivar, o senhor Ligero Raiz estava emburrado, no condado de Terraplana atrasar refeições é ofensa pessoal, as vezes até resolvida em duelos.

O grupo conjectura sobre o que pode ter ocorrido, já que isso nunca aconteceu, pelo menos não que pudessem lembrar. Coice, um sutil homem como o nome indica. Merry e Ligero, que apesar de serem Pequeninos não tiveram oportunidade de conversas informais nem de ascender seus cachimbos com o tanto de coisa que vai acontecer, como vocês poderão ver. Dwarflecson veio somar sua sutileza anã ao grupo, e Billy, que sempre lembra a todos a brevidade da vida. Cerca de 30 pessoas já se amontoam em frente a taverna do Salto.

E nada.

“Só pode ter acontecido alguma coisa, algo assim nunca aconteceu!” “Ele só pode estar doente” “Será que morreu?” “Passaram o seu Saulo, será?”

O grupo ouvia tudo isso, e comentaram entre si: “É pessoal, isso nunca foi visto por aqui.” dizia um. “E o pior é que a cabeça dele tava a prêmio, não?” dizia outro “Não sei se tinha prêmio, mas que tava jurado, ahh isso tava” respondeu ainda outro. Mas falar não leva a nada e decidiram agir. Ligero e Coice se aproximam na porta da frente, Dwarflecson, Billy e Merry vão pela porta dos fundos. Ao chegar na porta dos fundos, com menos burburinho são capazes de ouvir a voz do senhor Saulo, não era a voz dele na verdade, mas era muito parecida. As palavras não eram claras e apenas duas puderam ser identificadas: pagamento feito, e depois um barulho de algo caindo no chão.

As pessoas começam a gritar, ansiosas pela abertura da taverna.

Dwarflecson com seu olho de anão das profundezas entrevê por entre uma fresta, uma mesa arrumada como se pessoas estivessem, ainda a pouco, sentadas nela.

Tentam abrir a porta dos fundos mas sem sucesso.

Nesse meio tempo o senhor Saulo abre a porta da frente e fica ainda mais claro que há problemas ocorrendo: um corte que se inicia no braço e termina no pescoço adorna o corpo do velho homem, e seu tez apresenta sinais de fraqueza.

“Olá a todos!” diz ele, “sei que muitos estão famintos mas hoje não haverá expediente. Sinto muito pelos senhores mas tive um grande imprevisto, e hoje a taverna do Salto não funcionará.”

A multidão reclama, mas percebe que não há muito a ser feito. Nesse meio tempo o pequenino Ligero tenta passar furtivamente pelas pernas do senhor Saulo e adentrar na taverna, mas o homem está preparado “Pequeno, acho que não entendeu, hoje não haverá experiente”. O pequenino sai para rondar o local, mas todas as janelas estão fechadas e não há nenhuma brecha que ele possa encontrar. Coice se aproxima do homem e diz: “Ora senhor Saulo, sei que hoje deve ser um dia difícil, mas tome, tenho que entregar este pacote ao senhor, é um pedido de Snarf e eu não quero problemas com ele, você sabe, temos negócios da guilda da Arca de Noé, então tenho que resolver essa pendência e…” Enquanto isso entrega ao senhor Saulo um saco com algumas moedas e fala discretamente: “Saulo, se algo estiver errado dê um sinal para que possamos ajudar”, e em voz alta continua “então como você bem sabe, receba esse pagamento e se o velho snarf o questionar sobre isso você, por gentileza, diga que o entreguei e tudo o mais” O senhor Saulo aponta discretamente para o prédio da guarda, e faz um sinal de negativo. Coice compreende que a guarda deve estar causando problemas ao dono da taverna, e o grupo se reúne em um local discreto para discutir.

Coice conta o ocorrido e também fala da guarda da cidade. Sobre a sua corrupção e sobre como ela causa problemas com várias pessoas, já tendo sido problema até para guilda Arca de Noé. O problema foi tão grave que foi necessária a intervenção de um tal de Ablico, um misterioso ser que interveio causando óbito aos obstáculos da guilda.

Enquanto discutem Merry pode ver, em uma torre conhecida entre eles, a torre de Vanistol, uma silhueta de humanóide. Vestia negro, possuía cabelos longos loiros, e inesperadamente começou a voar, a flutuar. Foi flutuando, flutuando, enquanto Merry dizia: “olhem, olhem!” Todos olharam o ser que flutuava, e o povo ao redor também ficou extremamente apreensivo “Aí meu deus! De novo não!” “Olha lá no céu mamãe, o que é aquilo?” “Entra já em casa menino, não olha pro céu não senão vai apanhar vice”. Os aventureiros se olham muito desconfiados. Nada está fazendo sentido. O bicho flutuante vai em direção a famosa loja do seu Chico, e pousa em seu topo. Como os aventureiros precisam comprar algumas coisas, decidem que Ligero e Coice vão para a loja de Seu Chico, e Billy, Dwarflecson e Merry vão para a torre de Vanistol. Billy insiste que precisa ir lá para tentar algum dinheiro, pois sua vida depende disso, sempre nos lembrando sobre a brevidade da vida.

Antes de se separarem, no caminho para seus destinos, interpelam os populares sobre a apreensão que eles apresentam com a visão desse homem voador pela cidade: “Senhor do céus e da terra! Esses são os mascaras pretas, há muito tempo atrás, mais ou menos 100 anos, houve uma invasão desses mascaras pretas, eles esculacharam com tudo! Pegaram a riqueza da cidade, invadiram as casas, deram tapa na cara de trabalhador e tudo! Ai minha nossa senhora, não sei nem o que fazer caso eles retornem! Eu? Não eu não vi né, foi o que meu vo me contou né, que teve que vir um mago muito poderoso que não mora mais aqui, e que ele que deu um jeito na cidade. Mas dá licença viu, que eu já vou defumar a minha casa, por que nunca se sabe, vocês não estão vendo como o tempo está mudando? Olha, o céu já está cinza, o sol não está mais visível! Da licença, tenho que ir. Ah e cuidado com os vagabundos. Que vagabundos? Esses aventureiros ai, que ficam subindo e descendo da ilha voadora, tudo safado, trabalhar que é bom ninguém quer, só querem a vida boa, e não vão nem a igreja. Se cuidem!”

Coice e Ligeiro, ao se aproximarem da loja do seu chico ficam aliviados por ela ainda estar aberta, afinal, é um sinal de normalidade. Mas se aproximando verificam que tudo está diferente: as prateleiras não estão organizadas, as tapeçarias, antes bem expostas e cuidadas, jaziam quase jogadas. Atrás do balcão um homem atarracado, careca, com naipe de guerreiro, atende as pessoas. Mais atrás no balcão, uma madame muito bem vestida e bonita tem os pés lavado por uma criada, enquanto lixa as próprias unhas da mão sem se atentar com o que ocorre em voltar. Há também dois outros homens, todos cópias parecidas: careca-vandiesel-cota-de-malha.

“Ora homem, bom dia” diz Coice ao careca do balcão. “O que vai querer?” responde o careca. “Ora homem, como vão as coisas? Muitas mudanças por aqui, não?” O sujeito olha a ele com a expressão de uma pedra, em silêncio. “Então, homem, o que temos para hoje, há alguma promoção?” O van-diesel diz “Homem, veja a fila que há atrás de você. Diga logo o que quer, não me atrase” “Pois bem meu caro” responde Coice, “eu e o Seu Chico tínhamos uma pendência, ele deixou um pacote no jeito aí para mim, eu preciso pegar, e claro pagar”. O homem olha embaixo do balcão, pergunta o nome de Coice, e pega um pacote, colocando-o no balcão.

Enquanto isso Ligero se aproxima do outro careca-van-diesel: “Olá grande homem como estão as coisas por aqui? Muitas mudanças hâ? Parece que aqui as coisas mudaram de figura, tem uma nova dona aqui é? E o seu Chico o que aconteceu com ele? Você sabe se ele tá bem?” Os dois outros carecas olham ao mesmo tempo para o pequenino, de maneira rígida e inexpressiva. E como construtos finamente alinhados em seu encantamento, retornam o rosto e olhos na mesma direção de outrora, com sincronia suíça. Ligero resolve ficar quieto.

Coice põe as moedas no balcão, e o homem ao contá-las de olho, empurra o pacote ao guerreiro e diz: “vaza daqui”. Coice entende o recado, pega o pacote e sai falando alto “Muito obrigado homem! E madame, bem vinda, com todo respeito a senhora está muito bonita hoje, até mais pessoal” Eles saem de lá, e comentam entre si mais uma vez: como as coisas estão estranhas.

Coice decide ficar pela praça olhando o movimento, enquanto que Ligero vai atrás dos outros que seguiram para a torre de Vanistol. Chegando lá, Merry, Billi e Dwarflecson não notam nada de diferente. Com a irreverência típica dos pequeninos Merry o aborda: “Oi seu Vanistol, tudo bem? Seu Vanistol, como estão as coisas? O senhor viu como tá diferente a cidade hoje?” “Pois não pequeno, se apresse no seu pedido pois hoje estou muito atarefado. O que vai querer?” “Então seu Vanistol, eu queria saber quem é o outro mago que esteve aqui cem anos atrás quando os máscaras pretas apareceram?” “Do que está falando pequeno? Que besteira é essa de outro mago? O que você andou bebendo?” Merry insiste “Mas o povo comenta aí poxa, que teve outro mago que veio pra ajudar porque os mascara preta tava tocando o terror e esculachando todo mundo aqui e” Vanistol interrompeu grosseiramente “Pequeno, saí da minha frente! Hoje estou muito atarefado! Vai!” Ao ver os olhos vermelhos, e quase ter tido certeza de que chifres se insinuaram na testa do mago o pequenino escafedeu-se como fazem sempre muito bem. Billy então aborda seu Roque, o gerente do local: “O seu Roque tudo bem com o senhor? Sabe, ouvi dizer que o senhor faz uns trabalhos por fora ai, de identificação de itens mágicos, armadilhas e coisas do tipo.” “Ora sim sr Billy, pois não.” Billy apresenta um baú no balcão “É esse baú aqui. Tenho quase certeza de que ele possui uma armadilha, e gostaria de verificar se é isso mesmo” “Ora veja o que temos aqui” responde o seu Roque. “Serão 400 po para a análise” os aventureiros contam suas moedas, e verificam se conseguem fazer algo, mas não… infelizmente não têm a quantia suficiente. Billy tira uma de suas cartas da manga “Senhor Roque, eu tenho aqui um ser humaninho.” Os olhos do gerente do local se abrem sobremaneira e ele diz “Fale baixo meu amigo! Isso é algo muito raro que não deve ser negociado em voz alta!” “Sim tudo bem senhor Roque, mas vamos lá, quanto você paga nele?” “Bom, eu pago 1000 po”. Depois de algumas tentativas de negociação, o preço permanece. Com dinheiro em mãos Billy paga pelo serviço de análise do baú. Em meio a uma fumaça meio física, meio fluídica, laços luminosos dançam feito aura ao redor do objeto. Seu Roque diz “Sim amigo elfo, esse baú possui uma armadilha, vamos ver o que está dentro dele.” Ao abrir o baú existia uma grande quantidade de moedas, além de um item muito especial. Um item capaz de transformar a aparência de uma pessoa algumas vezes. “Muito útil e poderoso, sim! Muito poderoso!” Diz seu Roque.

Merry não estava contente com o desenrolar das coisas, e resolver inquirir o seu roque sobre coisas que o próprio Vanistol o censurara anteriormente: “Senhor Roque, o senhor não quer negociar uma informações não?” “Certamente Pequenino, o que o senhor deseja?” “Pouca coisa, queria saber se o senhor sabe do nome do mago que esteve aqui a cem anos, quando a cidade teve problemas com os mascaras pretas” “Ora, não tem outro mago, se teve não sei…” Nesse momento sente que está sendo observado, e ao olhar sobre os ombros Vanistol o fuzila com os olhos, arcanicamente, de modo que Merry percebe estar abusando da sorte. Terminada as negociações, os aventureiros dali saem e vão para a praça, encontrar Coice.

Estando todos devidamente abastecidos, e aprendida a lição de Billy sobre a brevidade da vida, com todo o cenário caótico que se abate sobre a cidade, e com pouca ou nenhuma pista do que pode estar ocorrendo, e ainda com o grande risco e grande agentes que parecem estar envolvidos neste caos, decidem ir para Highfell, para tentar algum ouro, pois hoje o dia estava muito complicado.

O dia já ia avançado, e pouco tempo tiveram, sequer contrataram mercenários, mas ainda sim, outro contratempo os alcançou. Ao sair da cidade se deparam com um sacerdote que conhecia o anão Dwarflecson. O sacerdote se apresenta, e apresenta também uma demanda que possui: precisa encontrar um padre desaparecido de sua igreja, e precisava de aventureiros. Coice logo o indaga sobre o pagamento, ao que padre responde “Da minha parte não posso oferecer nada, mas vocês têm minha palavra de que pleitearei uma justa recompensa junto á igreja”. A proposta não parecia muito atrativa, mas tendo em vista as alternativas disponíveis para os aventureiros, eles aceitaram. Coice reclamou do súbito ataque de bondade que acometeu o grupo, lembrando a todos que eram aventureiros atrás de ouro e não outra coisa. Ainda assim o grupo aceita.

O sacerdote Arkar tem a direção de onde foi seu amigo desaparecido, e ali seguem saindo da cidade. Logo encontram pegadas que confirmam ser mesmo de algum membro da igreja, pois eram iguais ao do padre ao do clérigo que acompanhava o grupo, junto com um carrinho de mão jogado e legumes caídos no chão. Ao seguir as pegadas veem que outras pegadas se juntam à trilha seguida: bípedes de pés de cascos fizeram o mesmo caminho do padre desaparecido. A tensão acomete a todos. Ao longe, cerca de uma centena de metros, verificam uma cena bizarra. Parece que acharam o padre, mas em uma posição não muito confortável. Billy manda seu tapete mágico buscar o corpo, mas o pobre item não consegue a façanha, então eles mesmos precisam fazer isso.

Billy sobrevoa a região com seu tapete buscando possíveis ameaças e mira ao longe andando no mesmo sentido que seguiam os aventureiros um grupo de uns 14 seres, que provavelmente eram os autores das pegadas de cascos bípedes. Retorna com a situação e parece seguro resgatar o padre. O fazem. Ao chegar próximo do sacerdote abatido a cena é terrível: encontrava-se o pobre padre empalado, de cabeça para baixo, com a cabeça enterrada e as pernas para cima. O corpo de pé sustentado pela estaca. Retiram o corpo, e o colocam no tapete. Seguem de volta para Thatchum. Ao se aproximar percebem a aproximação da guarda da cidade. O aviso anterior sobre podridão dessa guarda os deixa receosos, e caminham então num cortejo fúnebre: o corpo do padre, nu, com hematomas ferimentos e ainda escorrendo um pouco de sangue, liderado pelo sacerdote Arkar, ladeado por todos os outros.

“Sinto muito pela perda do seu amigo, meus sentimentos. Mas devo perguntar, o que é isso, e o que os traz à Thatchum?” Arkar que liderava o cortejo diz “Olá seu guarda. Esse é um padre da igreja da cidade, e estava desaparecido. Fui enviado em missão para buscá-lo, e infelizmente o encontrei nesta deplorável situação. Esses são os aventureiros que me acompanharam para minha segurança” “Muito bem, podem passar então.” O cortejo segue, e mais a frente um guarda, de maneira discreta diz: “Tem gente aí que se mete sempre em problema. Agora isso. Vocês fica ligeiro que a gente tá de olho viu” Os aventureiros ignoram, por prudência, e seguem com o cortejo.

Chegando à igreja notam uma grande movimentação: cerca de oitenta cavalos, com muitos sacerdotes e pessoas a serviço da igreja estão se preparando para alguma coisa. Talvez uma viagem. Arkar decide levar o corpo por um local mais discreto, e nesse meio tempo eles já são a principal atração deste dia atípico: pessoas os seguem, chorando, clamando misericórdia, lamentam a morte do padre. Ele era bem quisto na cidade, e o cortejo está bem maior agora, com muitos fiéis. Param, e os aventureiros aguardam Arkar entrar e retornar da igreja. Quando retorna, traz a eles um saco com moedas de platina! O dia fora bom afinal das contas, apesar de todos os contratempos.

A multidão começa uma fila para se despedir do padre, que permanece no tapete. Um sujeito mais exaltado se agarra ao corpo, e um soldado, que vigiava de um local mais elevado enfia rapidamente o pé revestido de uma grossa bota nos dentes do coitado. O homem chora ainda mais.

Dirigem-se à taverna para comemorar a platina ganha. Menos Arkar, que está taciturno e introspectivo. Apesar do senhor Saulo ter dito que não haveria expediente, ela encontrava-se aberta, com ainda mais uma surpresa: outro responsável. Os aventureiros torcem o nariz, mas não têm muita escolha, a cidade está de cabeça para baixo. Pedem bebidas, comida, o tradicional coelho com batatas. Bom, sejamos sinceros, não era a mesma coisa, a receita era a mesma, mas faltava a mão do senhor Saulo ali.

Conversam sobre as possíveis conexões existentes entre os poderes dos magos que dominam a cidade, o que trouxe os máscaras pretas, que eram na verdade Volsektuns, à cidade, no passado e atualmente, por que todos agiam como se nada tivesse acontecendo, um arkano de rosa com muitos poderes, novas famílias movendo seus pauzinhos pela cidade… era como se todos fossem meros peões de jogadores muito maiores que estavam escondidos.

Um bando de bardos chega na taverna, pouco depois da mesma madame que estava na loja do chico, acompanhada de outras mulheres do mesmo naipe. Elas pedem coisas caras, e levantam-se sem pagar, sem nenhum protesto do novo dono da taverna. Os bardos começam a encantá-las, e muitas pessoas a esta altura estão a dançar sob a vibração das cordas dos artistas boêmios. Os aventureiros, alguns já calejados de bardos boêmios, decidem se retirar. Enquanto saem da taverna, uma criança que acompanhava a trupe dos artistas itinerante pergunta a seu pai o que são as estrelas, ao que ele responde: cada estrela é um antepassado nosso, guerreiros, rezadores, cantador, andarilho, que fez o melhor nesta terra para que pudéssemos hoje estar aqui, e ali de cima, hoje eles ainda olham por nós.

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