Episódio 24

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brainstormfell
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6 min readOct 8, 2021

Corpo fechado

“Eu vi um camaradinho
Na região do cacau
Zombar de um corpo fechado
De reza e de ritual
Cordão de ouro dizia
Com jeito mais natural
Quem guarda o santo de guarda
Adia o juízo final.”*
Paulo César Pinheiro. Toque de Amazonas (2010).



Era dia de festa. Seu Besouro comia um pedaço de torta, desconfiado, enquanto os cinco companheiros ― Ligêro Sagaz, Cimiano, Arkar, Billi e Dwarféclison ― agiam conforme o ímpeto de seus espíritos. Até que avistaram um velho muito ferido em meio à multidão. Os mais antigos ― não em idade, mas em vivenciar o local ― reconheceram-no como Seu Chico, uma personalidade importante deveras; o porquê Seu Besouro desconhecia e tampouco podia a cabeça pensar em tais motivos, pois eram as chagas que cobriam Seu Chico de ponta a ponta um lampião alaranjado no negro da noite sem estrelas. Seu Besouro terminou o pedaço de torta, bateu as mãos nas calças e agarrou a medalha de São Bento Pequeno que lhe pendia do pescoço. Se aquele sujeito tivesse fechado o corpo com um retrato na medalha dessas, pensou… Era impossível, uma vez que a necessidade da briga antiga de Angola não lhe tingia o cenho.
De toda maneira, os companheiros de Seu Besouro assistiram o velho ferido, levando-o até a guilda d’A Última Morada. Lá, o grupo de aventureiros inquiriu Seu Chico e o tratou, testemunhando as marcas da tortura que ele sofrera. Também encontraram um cubo exótico reprimido nas costas do velho, mas logo o removeram para prestigiar o brilho dourado do objeto com mais clareza. Assim, foram informados por Seu Chico de que o artefato se tratava de um teleportador abastecido por pedras de enxofre, além de lhes ser revelada uma nova trama política envolvendo toda a região. Por ser caminheiro de muitas léguas e estar buscando aventura e dinheiro fácil, Seu Besouro não se ateve ao evento; mas notara que o tema interessava a Cimiano, a Arkar e a Billi deveras, pois o trio choveu perguntas sobre Seu Chico quando da revelação. Um acordo fora firmado. Seu Chico permitiu que os aventureiros tomassem o cubo dourado de empréstimo ― e nele estavam pedras de enxofre. Então o grupo, liderado por Cimiano e Arkar, teleportou-se para a Ilha Flutuante.
Contudo, a liderança mostrou-se frágil depois de guiar os demais por florestas e bosques no rastro de uma torre imensa. Quando lá chegaram, os aventureiros perceberam marcas de tiros de catapulta (ou até mesmo de canhões, quem sabe?) na superfície da construção e, quanto mais se aproximavam tanto mais percebiam que o tempo ao redor da torre era distorcido por forças escusas. Seu Besouro já segurava firme a medalha de São Bento Pequeno, repetindo para si mesmo que fechara o próprio corpo naquela insígnia com um retrato seu havia muito; mas o restante dos companheiros mostrou-se inteiro culhões, pois pisaram na plataforma de pedra que jazia diante da porta de entrada da torre. Foi então que Seu Besouro assustou-se deveras: exceto Dwarféclison, que compartilhava com ele o temor, todos os seus companheiros ― Ligêro Sagaz, Cimiano, Arkar e Billi ― desapareceram diante da construção ferida num piscar de olhos.
Seu Besouro rezava baixinho para São Bento Pequeno quando Dwarféclison sugeriu contornarem a torre em busca de nova passagem, pois a dupla não desejava o futuro incerto dos companheiros. Hão de ter morrido, pensou Seu Besouro, não é fruto da mão de Santa Virgem essa loucura! Foi nesse momento em que ambos, mago e Anão, perceberam estar sob efeitos místicos de deformação temporal: caminhavam a vera e só percorriam légua risível, até houve permuta entre o nada e a existência em relação ao referencial de seus olhares (Dwarféclison desaparecia e aparecia diante de Seu Besouro como se encantado fosse). Diante disso, a dupla decidiu parar e até refletiram em pisar na plataforma de pedra diante da entrada da torre ― Seu Besouro começava a desconfiar que ficar ao relento era pior do que aquilo que o aguardava se desaparecesse de vez.
Dito e feito!
Num rompante, Seu Besouro e Dwarféclison ouviram a trompa de homens-feras e sentiram no solo o tremor causado pela sua marcha incessante. Ao mirar a floresta, a dupla viu que um pelotão de humanóides monstruosos ― todos com aço na mão ― se aproximava muito rápido; talvez fosse a distorção temporal ao redor da torre, talvez fosse a passada larga dos homens-feras, mas era certo que o bando vinha em corrida aterradora e não se cansava. Dwarféclison partiu na direção dos monstros, acompanhado por Seu Besouro, já que o mago acreditava que os homens-feras poderiam ser algum tipo de ilusão ou habitantes de outras linhas temporais das quais falam os livros. Contudo, as criaturas se mostraram bem reais e logo mataram Dwarféclison enquanto Seu Besouro tomava a postura dançarina do toque de cavalaria. O sobrevivente desviou de machados deveras e encantou um dos homens-feras, forçando-o ao sono mágico, mas os outros não se intimidaram e Seu Besouro não viu alternativa fora a fuga desesperada pela vida: travou a imagem da entrada da torre em sua mente e seguiu naquela direção, deixando dois dos três perseguidores para trás. O terceiro também pisou na plataforma de pedra diante da entrada da torre… Desapareceu junto com Seu Besouro.
Cimiano, Arkar, Billi e Ligêro Sagaz deram logo cabo do homem-fera, enquanto Seu Besouro surgia entre eles. Ave Mestre Pitanguinha!, exclamou Seu Besouro, tudo o que aconteceu até agora foi desafio às leis do homem e do mundo deveras! Uma vez reunidos novamente, os cinco começaram a investigar a escuridão na qual estavam,, descobrindo várias estátuas de quase três metros no salão. As efígies eram estranhas e sobre elas pesava o desconforto do maligno, pois estavam cobertas por imagens de relógios e emitiam um tic-toc desgovernado. Então notaram Misteryéclison, que com o seu canto agudo de pássaro atraiu monstros enormes para aquele salão. Eram todos corpulentos, carregando hastes de ferro e faces ferozes. Ligêro Sagaz começou a escalar uma das estátuas para atacar de posição privilegiada, enquanto Cimiano e Arkar colocavam-se diante dos humanóides, impedindo-os de avançar. Seu Besouro instalou um pavio em uma de suas ânforas de óleo e a arremessou no rosto de um dos monstros, deixando-o em chamas. Billi e Misteryéclison fizeram o mesmo.
Após peleja desesperada, um dos monstros foi morto. Contudo, Seu Besouro sabia que não se usa balança de pesar ouro para se pesar metal, e um dos monstros partiu Misteryéclison ao meio. O grupo fora abalado pela morte cruel, e Cimiano também tombou enquanto Ligêro Sagaz, Seu Besouro e Billi se escondiam atrás das estátuas cobertas por relógios. O esconderijo foi certeiro, pois os monstros esperaram por muitos minutos e não conseguiram farejar o rastro dos aventureiros, até que desistiram da matança e voltaram ao seu covil. Daí, Snarf juntou-se ao grupo junto com um Elfo cujo nome terminava com “-éclison”. Todos conversaram a vera, mas aos sussurros, e dessa vez se aproximaram esqueletos reanimados pela necromancia. Uma nova batalha iniciou-se.
Snarf combateu, o Elfo arremessou frascos de água benta sobre os mortos-vivos, Bili voou em seu tapete mágico, atingindo as criaturas a distância, Seu Besouro se escondeu atrás de uma estátua e Ligêro Sagaz, ainda de cima de uma estátua, persistia em golpes aéreos. Arkar Stoneheart, porém, encontrou o além-túmulo cedo demais. O clérigo foi alvejado pelos esqueletos e morreu, sendo seguido de perto por Ligêro Sagaz, que caiu do esconderijo quando uma pedra o atingiu na cabeça. Seu Besouro lançou-se ao piso, atrás da estátua na qual seu companheiro Pequenino há pouco estava trepado, e se cobriu com uma lona para se camuflar corretamente. Depois das baixas, juntou-se ao grupo um Elfo e um Homem e por bem todos decidiram abandonar aquela torre maldita e voltar ao mundo lá embaixo. Chegando nas bordas da Ilha das Nuvens, Billi decidiu por descer com o auxílio de seu tapete mágico e cedeu uma de suas poções de Pouso Leve ao companheiro carente. Quando todos tomaram as suas providências para pousar no mundo lá embaixo, porém, novo perigo os surpreendeu: era um pterodátilo, um predador dos ares dos Dias Antigos!
No último momento, a besta-fera disparou suas patas contra Seu Besouro, tentando içá-lo ao céu além do próprio céu. Contudo, Seu Besouro era capoeirista do cais da Bahia antes de quebrar a perna e, por isso, lançou um giro de São Bento Grande de Angola para se esquivar do ataque. Funcionou: as patas do pterodátilo agarraram o nada enquanto ele voava sem levar nenhuma carga consigo.
Foi assim que Seu Besouro e seus companheiros chegaram à Cidade do Limiar (onde foram informados que Seu Chico estaria!) depois de topar com uma caravana mercante na estrada do mundo lá embaixo. E também foi assim que Seu Besouro restaurou a sua fé em São Bento Pequeno, lembrando-se do acordo firmado entre ambos há décadas.

Texto por Matheus Correa de Sousa Heleno

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