Doki Doki Literature Club: uma cópia de Romance Academy 7?

Parece muito mais uma fusão de episódios de Gravity Falls e Black Mirror do que qualquer outra coisa

Stephie Neuman
Brainstorming Lines
12 min readJan 14, 2018

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Imagem retirada do Deviantart.

Recentemente fui bombardeada por uma série de tweets e vídeos relacionados a visual novel Doki Doki Literature Club.

Não é segredo pra ninguém o hype que esse jogo gerou, em pouquíssimo tempo já atingiu mais de um milhão de downloads, e mais de 65 mil de análises positivas dentro da plataforma Steam (o que equivale a cerca de 97% dos usuários que tiveram uma experiência com o jogo). Além do sucesso no People’s Choice Awards 2017 do portal IGN.

Screenshot do tweet de Dan Salvato, criador do jogo.

Cheguei a clicar em um vídeo do Davy Jones publicado em 10 de janeiro de 2018, por curiosidade. Assisti ao vídeo inteiro e não notei nada de diferente exceto o aviso no início, que alertava aos jogadores que as cenas contidas ali poderiam não ser apropriadas para todos os públicos, em especial para menores de 13 anos e pessoas que tenham tido alguma experiência relacionada a ansiedade e/ou depressão.

Ao final do vídeo fiquei curiosa e fui atrás, percebi que muitos outros YouTubers e streamers criaram conteúdos relacionados, e foi aí que minha busca se aprofundou, e eu fiquei um tanto... incomodada.

O jogo chega a ter uma série de live streams e vídeos gravados de até 6 horas.

ATENÇÃO!
Este post irá discutir abertamente uma série de aspectos do jogo, portanto, contém spoilers.

Tá, o que acontece no jogo?

A princípio, você controla um garoto — cujo rosto é desconhecido, a prior você não vê a fisionomia dele — , e é abordado logo no começo por uma garota chamada Sayori, e por meio de suas conversas descobre que não só são amigos de infância como também são colegas de sala.

Ela é vice-presidente do clube de literatura da escola, e embora você não queira se juntar a turma dela, acaba sendo meio que arrastado.

Da esquerda para a direita: Yuri, Monika, Sayori e Natsuki.

Ao chegar lá, você conhece outras três garotas, Yuri, Natsuki e Monika. Até esse ponto você não controla muito do jogo — tua jogabilidade é praticamente zero, uma vez que está sendo apresentado a todo o ambiente e ao contexto em que vai estar inserido nas próximas horas de game.

Sendo que o controle do jogo ainda não é seu, uma certa admiração surge por parte do seu personagem ao perceber que Monika é presidente do clube, é um tanto surpreendente, afinal, segundo a conversa, ela é “uma atleta inteligente, linda, confiante” e já foi líder de clubes maiores como o de debate.

Até esse ponto, normal. Nada de estranho a declarar.

Queria incessantemente entender o hype, e acima disso, o que levara as pessoas a comentar que estavam perturbadas por conta dessa visual novel que pareceu, inicialmente, não só inocente como, frente as minhas expectativas, até meio sem graça.

Perai… Giffany?!

No dia 22 de setembro de 2014, foi ao ar o episódio “Soos and the Real Girl” da série americana Gravity Falls, no Disney Channel.

No início do episódio, Soos recebe uma carta de seu primo Reggie, e descobre que este se encontra agora noivo e vai dar uma festa no fim de semana. Sua avó então lhe diz que, como ele já é um homem adulto, seria interessante que saísse para conhecer mulheres, e tentar encontrar um par para a festa de seu primo. Tendo isso em mente, Soos promete para sua avó que arrumará uma namorada até o final de semana.

Dipper e Mabel, sabendo disso, levam Soos ao shopping em busca de moças para flertar com ele, mas por conta de sua inexperiência, as abordagens de Soos são assustadoras.

Em determinado momento o tal do primo Reggie aparece pelo shopping com sua noiva, e frente ao fracasso de seu dia, Soos foge entrando dentro de uma loja de games.

E é aí que as coisas ficam interessantes.

Soos encontra um vídeo game chamado “Romance Academy 7”, um simulador de namoro em estilo anime, com uma mecânica bem similar a de “Doki Doki Literature Club”.

Logo que pega a embalagem, ele nota que há um aviso no verso, alertando que se o jogo for encontrado, deve ser destruído o mais rápido possível.

Mas ainda assim ele crê que o simulador vá ajudá-lo a se soltar com garotas, e acaba comprando e se aventurando.

Mas espera, como pode uma visual novel tão bonitinha se tornar algo… amedrontador?

Até aqui te foi exposto somente a premissa do jogo e não seus respectivos desdobramentos. Antes de discutirmos o que conecta de forma tão absurdamente direta o episódio de Gravity Falls a este jogo, entenda o motivo dos avisos prévios no menu inicial e o que o caracteriza como um terror psicológico.

Tweet de uma pessoa aleatória sobre o game.

Imagine um jogo de simulação de romance colegial, repleto de gráficos adoráveis e criaturas femininas delicadas. Imagine que tudo ali indica que será um jogo tranquilo onde você pode explorar mais sobre a vida e a individualidade de cada uma de suas novas colegas do clube de literatura, e tem a autonomia de escolher com qual delas irá se relacionar no final, como qualquer outro jogo dessa natureza.

Imagine que, por ventura, uma dessas meninas simplesmente se apaixone secretamente por você, não por seu personagem dentro do jogo, mas por você, ser humano, sentado em sua cadeira atrás da tela do computador.

Imagine que, esta adorável e inocente figura virtual esteja disposta a fazer absolutamente qualquer coisa para ter você só para ela — nem que isso signifique provocar por meio de hacks no sistema do jogo o suicídio (explícito) de outras duas garotas do clube de literatura e deletar a restante, de forma sutil, em prol de “eliminar a concorrência” e ter você somente para ela. Até não sobrar nada, exceto você e Monika.

O primeiro episódio da quarta temporada de Black Mirror, que foi ao ar em 29 de dezembro de 2017, trás uma trama que explora a inteligência artificial de uma forma que também se aplica aos casos previamente apresentados.

Os personagens presos dentro da ARG (Alternative Reality Game) foram criados com base no DNA de pessoas reais, seres humanos que compunham o cotidiano de Robert Daly, um chefe técnico de uma empresa.

Quando os clones daquelas pessoas acordavam na realidade virtual, eles vinham com todas as memórias adquiridas por suas versões humanas reais donas daquele DNA até o momento de serem colocadas ali, todos os eventos posteriores não fariam parte de suas memórias da realidade alternativa e nem seriam contadas como “vividas”.

Isso significa que eles não são tristes, eles não tem sentimentos, e sim memórias, porque foram programados para serem fiéis a suas versões humanas. Eles tem o entendimento de que uma vez foram humanos (por terem suas memórias preservadas) e que acordaram ali de uma hora para outra, “presos pela eternidade”, mas na realidade nunca foram nada além de pixels programados para imitarem por meio de algoritmos matemáticos as reações e percepções internas e externas dos seres cujos DNAs foram extraídos.

Logo, de volta a Doki Doki Literature Club, Monika não foi extraída por meio de uma amostra de DNA de alguém já existente. Ela foi projetada desde o início, e não têm sentimentos. Sua programação existe apenas para imitar os sentimentos humanos, sem saber de fato o que é amor, mas por ser uma inteligência artificial, ela entende que o sentimento proveniente do conceito que conhece sobre o amor é algo que vem para preencher um vazio, um vazio que ela entende que existe nela, simplesmente por não ser alguém real.

A implementação de redes neurais em personagens de jogos em estilo ARG (de realidade virtual) possibilita que os personagens aprendam através das escolhas do jogador, e cada vez mais somos empurrados para a ideia psicologicamente assustadora de que em algum momento eles possam querer tomar as rédeas das situações em que são submetidos, como seres humanos autônomos e providos de livre arbítrio.

Estranhamente, o mesmo ocorre em Gravity Falls, com a protagonista do jogo “Romance Academy 7”, Giffany.

Logo que Soos vai ao balcão para comprar o jogo, a moça do caixa o informa que aquele jogo tem algum problema, uma vez que já é usado, ele tem um histórico de devolução.

Soos acaba realmente encontrando uma mulher real, humana, que o complete. Uma pessoa compatível com seu temperamento, por quem se apaixona de fato. Porém Giffany havia sido programada para preparar seres humanos para um romance, e até simular um se fosse necessário.

A AI presente dentro dela passou, de alguma forma, a questionar qual a razão de ser trocada por alguém real após um tempo, como se sua existência virtual não fosse o suficiente. De fato, não é. Giffany não queria de forma alguma ser trocada, não por gostar dele de verdade, até porque isso nem mesmo seria possível, mas pelo simples fato de estar cansada de ser uma ferramenta.

É isso que inteligências artificiais são consideradas para nós, não é mesmo? Nada além de ferramentas.

Mas o que faz “Romance Academy 7” e “Doki Doki Literature Club” serem tão parecidos?

Considerando que o episódio de Gravity Falls foi ao ar em 22 de Setembro de 2014 e Doki Doki foi lançado em 22 de setembro de 2017, a dúvida que fica frente as gritantes similaridades é, seria isso uma paródia ou um caso de “quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?”

Ilustração do Deviantart.

1) Monika e Giffany só queriam ser amadas… por você

Primeiramente, ambos os jogos tem uma proposta muito similar, com a diferença de que Romance Academy 7 não apresenta outras garotas além de Giffany, que é visivelmente parecida fisicamente com Monika.

Comparação do jogo presente em Gravity Falls e do jogo de Dan Salvato disponível na Steam.

Ambas foram programadas para te entreter, e te achar interessante. Porém a inteligência artificial usada, em ambas as personagens, acaba tomando um rumo inesperado, onde estas apresentam o desejo de serem amadas de volta em âmbito real, a fim de validar sua existência, sem se contentar em ser apenas uma ferramenta dentro da simulação para a qual foram inicialmente designadas.

2) A síndrome do Yandere Simulator

Talvez você se lembre do jogo cuja proposta chegou de forma beta ao 4chan em abril de 2014 mas só foi de fato desenvolvido em 1 de março de 2017, onde uma estudante colegial japonesa literalmente assassinava todas suas colegas em uma escola de forma secreta como estratégia para ser notada por seu senpai sem que houvessem outras concorrentes?

Com Giffany e Monika, não é tão diferente. Em determinado momento no episódio, Giffany revela algo a Soos que embora soe menos sanguinário, ainda assim é uma forma de assassinato.

“Os programadores tentaram me deletar, então eu tive que deletá-los”

Screenshots retirados da série Gravity Falls, “Soos and the Real Girl”.

Essa afirmação se assemelha muito ao discurso (e as atitudes) de Monika. No caso dela foi bem mais perturbador, porque seus ataques ocorrem quando você menos espera. Além de provocar glitches e apagar outras personagens, ela resolve chocar o jogador mostrando o suicídio de duas colegas do Literature Club; uma por enforcamento e outra esfaqueada.

E não, não espere que imagens dessa natureza sejam anexadas aqui.

Existe, porém, ao final da rota alternativa de Monika, um momento em que ela te conta mais detalhes sobre como deletou suas colegas, o princípio Yandere é o mesmo.

3) A menção às músicas destinadas a seus amados

Em Gravity Falls, ao final do episódio, vemos a energia de Giffany ser transportada de eletrônico para eletrônico até chegar onde Soos se encontrava pessoalmente, em um restaurante muito similar ao de outro jogo, Five Nights at Freddy’s.

Lá, Giffany entra no corpo de um dos personagens robóticos em cima do palco e solta uma frase peculiar, “a próxima música vai para o meu namorado, Soos”.

Em Doki Doki Literature Club, existem múltiplos finais dependendo de suas decisões no jogo. Ao chegar ao final da rota especial de Monika, ela prepara uma canção especial para você da mesma forma que é citado em Gravity Falls, com a diferença de que ela realmente vai tocar essa música para você no piano e cantar.

4) A forma como podem ser destruídas

Em Gravity Falls, ainda no restaurante similar ao do Five Nights at Freddy’s, Soos resolve colocar o CD do jogo de Giffany dentro de um forno de pizza, e este acaba sendo corrompido, comprometendo os dados que geram sua existência, desativando assim a inteligência artificial que dá “vida” a ela.

No caso de Monika, a forma de livrar-se dela seria deletando a pasta que contém sua programação, dentro de seu computador, anulando sua existência. Por mais inteligente que ela seja, ela depende de uma máquina e de uma combinação específica de números e códigos para existir e concretizar suas ações, isso significa que você deve dar espaço para ela agir. Caso você corrompa ou delete esses códigos, é como se deletasse seu DNA.

Por fim, o que foi que me deixou incomodada desde o início?

Em um mundo onde a quarta temporada de Black Mirror é considerada leve e ligeiramente mais tranquila, como poderia um vídeo game onde a personagem principal, uma inteligência artificial, se apaixona por um humano e apaga todas as outras possíveis concorrentes em prol da improvável possibilidade de ter um relacionamento real, ser assustadoramente inovador?

Ainda mais se comparado ao Yandere Simulator, ao Romance Academy 7 e a todo conteúdo audiovisual que temos sido expostos desde os últimos anos.

É interessante, é inteligente, te cativa, te envolve, te faz criar laços com cada personagem, e quando menos espera te joga em um abismo. Mas se você joga consciente, você escolhe se a máquina tem o poder de mexer com a sua cabeça ou não.

Entendo que existe todo um mecanismo de jogabilidade diferente para atingir suas diversas rotas dando acesso a seus múltiplos finais, mas me questiono se Doki Doki Literature Club merece de fato o título que lhe foi atribuído.

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Stephie Neuman
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Community Manager at Ubisoft Brasil and secret DedSec member. Former journalist. Talkative nerd that constantly travels in time and space. Opinions on my own.