POLÍTICA

A fome tem nome

O que é “nutricídio” e qual a sua relação com o aumento da insegurança alimentar no Brasil

Ana Terra Firmino
Brasil à vista

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A arte de rua expressa e trás visibilidade para as problemáticas sociais. | Reprodução: Flickr

Maria da Graça de Souza tem 28 anos, é mãe de dois e atualmente é moradora de rua na Praça Saens Peña, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Gracinha, como é carinhosamente chamada pelos frequentadores da praça, se viu desamparada há três anos, quando o pai de seus filhos fugiu de casa e não voltou mais. Com duas crianças para cuidar — Mateus, de cinco anos, e a caçula, Maria Eduarda, com três anos recém completados — ela precisou se virar sozinha.

No primeiro ano ela conseguiu “segurar as pontas”, deixava as crianças com a vizinha enquanto trabalhava de caixa no mercadinho próximo de casa. O dinheiro não era muito, mas dava conta das demandas financeiras da família. Porém, quando a pandemia de covid-19 chegou, o mercado onde ela trabalhava precisou fechar. Foi então que Graça, como muitos outros brasileiros, ficou desempregada.

A mãe tentou de tudo para não precisar expor as suas crianças ao mundo das ruas, mas acabou vencida pelas circunstâncias. Sem dinheiro e sem onde ficar, já faz quase dois anos que ela e seus filhos vivem na Praça Saens Peña. Durante o dia, a família conta com a bondade de quem passa por ali para os ajudar com certa quantia em dinheiro ou alimento; enquanto à noite, eles dormem no “chalé” erguido na área central da praça.

A história de Maria da Graça e sua família representa a realidade de muitos brasileiros que viram piorar a condição financeira — e consequentemente a alimentar — em decorrência da pandemia de covid-19.

De acordo com o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) em 2022, cerca de 125,2 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar e, desses, 33 milhões passam fome.

Insegurança alimentar é o termo utilizado para definir a falta de acesso da população à alimentação em quantidade e qualidade adequadas. Segundo a nutricionista Eliziane Ruiz, professora de nutrição e saúde coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a insegurança alimentar é analisada a partir de uma escala que “mede” a fome desde o nível leve, passando pelo moderado e atingindo o grave.

“Na prática insegurança [alimentar] leve quer dizer que as pessoas já têm uma preocupação em passar fome, ou já diminuíram a qualidade da sua alimentação. A insegurança alimentar moderada também remete à fome, mas no sentido de que já foi alterado o número de refeições que as pessoas fazem ao dia. E a grave já é então um estado mais crítico da fome: é quando as pessoas já deixaram de comer um ou mais dias da semana”, explica a pesquisadora.

A fome tem cara

Os resultados do Inquérito revelam os impactos diretos da pandemia de covid-19 na alimentação do povo brasileiro. Mais do que isso, mostram quem são as pessoas que estão comendo menos e pior.

A nutricionista Isabella Ubatuba, que pesquisou sobre os impactos da pandemia na alimentação dos brasileiros no seu trabalho de conclusão de curso (TCC) pela UFRGS, afirma que a fome no Brasil tem cor, gênero e localidade. “Os lugares mais afetados foram no Norte e no Nordeste, e, dentro desses lugares e do resto do Brasil, as pessoas que passam mais fome são as com baixa escolaridade, pretas e normalmente em lares chefiados por mulheres”, explica.

“É um fenômeno que vem da nossa história também. [Essas] foram as populações mais afetadas pelas desigualdades sociais, econômicas e estruturais. A gente está falando da população negra, vem dessa nossa herança escravocrata baseada em monocultivo, oligarquias”. Elziane Ruiz, pesquisadora de Saúde Coletiva.

Outro dado revelado pela pesquisa da Rede Penssan expõe a desigualdade racial vivida no Brasil: seis em cada dez domicílios cujos responsáveis se identificavam como pretos ou pardos vivem com algum grau de insegurança alimentar, enquanto nos domicílios cujos responsáveis se diziam de raça ou cor de pele branca, mais de 50% têm segurança alimentar garantida.

Fonte: Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil | Rede Penssan

De acordo com a pesquisadora Eliziane Ruiz, nos últimos 60 anos, os estudos vêm reforçando que são as populações periféricas, rurais, negras, de mulheres e com baixa escolaridade as que mais sofrem com a fome no Brasil. “É um fenômeno que vem da nossa história também. [Essas] foram as populações mais afetadas pelas desigualdades sociais, econômicas e estruturais. A gente está falando da população negra, vem dessa nossa herança escravocrata baseada em monocultivo, oligarquias”, explica.

Desde 2020, o agravamento da insegurança alimentar e da fome, reforçado pela publicação de estudos que relacionam essa situação às desigualdades sociais e raciais, um novo termo passou a aparecer com mais força nas pesquisas acadêmicas e até nas redes sociais: o nutricídio.

O que é nutricídio?

Nutricídio é um termo criado pelo médico norte-americano Llaila Afrika e apresentado em 1995 na obra “Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race”, ainda não traduzido para a língua portuguesa. O conceito refere-se ao que o autor chama de genocídio alimentar da população negra por meio de uma alimentação compulsória e de baixo valor nutricional. Esse processo é considerado por Afrika uma herança da colonização europeia.

“O livro do doutor Llaila Afrika fala justamente da destruição racial através da alimentação. A gente tá falando de uma população específica que está mais exposta a esses tipos de alimentos: produtos industrializados, ultraprocessados, agrotóxicos”, explica Marina Meirelles, nutricionista e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa de Saúde da População Negra (Harambee) da UFRGS.

O termo engloba também outros fenômenos sociais, como os desertos alimentares. Esse conceito se aplica a lugares onde a oferta de alimentos ultraprocessados é muito maior do que a de alimentos in natura, ou seja, aqueles obtidos diretamente de plantas ou de animais sem nenhuma alteração. Consequentemente, as populações que vivem nesses desertos têm uma alimentação pobre em nutrientes.

Desertos alimentares

Gráfico sobre desertos alimentares | Fonte: Alimentando Política — Divulgação

“A gente não escolhe simplesmente comer industrializados e ultraprocessados, é o que está mais perto da gente, o que é mais acessível”, pontua a nutricionista Marina Meirelles. “Por isso também que, junto do nutricídio, a gente traz o conceito de desertos alimentares. A gente está falando desse povo que vive nessa periferia e que não consegue acessar outros tipos de alimentos.”

Ampliando ainda mais o debate, a pesquisadora Eliziane Ruiz reforça que esse problema não pode ser visto apenas como uma discussão política sobre a falta de alimentos, ou como uma falha do sistema. “Genocídio pela comida não é só uma morte de um corpo que não está comendo nutrientes adequados, é uma morte da identidade, uma morte econômica e uma morte social”, afirma.

Invisibilidade e redes sociais

Se hoje é possível perceber uma maior visibilidade sobre a situação alimentar dos brasileiros, até alguns anos atrás o conceito de nutricídio era desconhecido da maioria da população. O termo ganhou notoriedade no Brasil após a pandemia de covid-19, quase 30 anos depois de ser criado pelo médico Llaila Afrika.

Até pouco tempo, conforme observado por Marina Meirelles, muitos alunos se formavam no curso de Nutrição sem nunca terem ouvido falar sobre nutricídio. “Eu ingressei na faculdade em 2012 e nunca ouvi sobre o termo do nutricídio. Acho que é algo que está sendo pautado agora em função da pandemia, então, nós estamos falando mais ainda sobre insegurança alimentar, os níveis dela e sobre a fome”.

Marina recorda o quão precárias são as informações sobre nutricídio. A primeira vez que ela escutou esse termo foi quando uma amiga apresentou o conteúdo de uma influencer e perguntou se ela já tinha ouvido falar daquele assunto. Ou seja, foi pelas redes sociais que a pesquisadora teve o primeiro contato com o tema.

Falar sobre nutricídio é uma forma de entender a razão de tanta gente viver com fome ou em condição de insegurança alimentar no Brasil, um país que, de acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), é o quarto maior produtor de grãos e o maior exportador de carne bovina do mundo.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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