SOCIOEDUCAÇÃO

A Prioridade Absoluta

Conheça a realidade da juventude criminalizada e o trabalho do G10, grupo da UFRGS que luta para garantir os direitos desses jovens

Anselmo Berté
Brasil à vista

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G10 reunido em frente ao Centro de Internação Provisória Carlos Santos (CIPCS), durante o Coletivo Fila | Foto: Anselmo Berté

É dever da família, da sociedade e do poder público garantir, com absoluta prioridade, os direitos de crianças, adolescentes e jovens, como diz o artigo 227 da Constituição Federal de 1988. O texto se repete no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, aprovado de forma unânime no Congresso Nacional. Ou seja, 32 anos atrás o Brasil decidiu que assegurar, entre outros, o direito à vida, à saúde, à educação e à dignidade dessa população era o objetivo mais importante do país. Hoje, no entanto, ainda existe uma realidade de descaso e omissões, em especial com a juventude criminalizada, como atesta o G10, um grupo voluntário que presta assessoria jurídica e psicossocial gratuita para adolescentes em conflito com a lei.

Criado em 2011, o G10 integra o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (Saju) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, o grupo acompanha o processo de seis jovens e, a cada 15 dias, realiza o Coletivo Fila, uma oficina em que os voluntários escutam e orientam as famílias de jovens internados provisoriamente. A ação acontece aos sábados, em frente ao Centro de Internação Provisória Carlos Santos (CIPCS), em Porto Alegre.

“Não é só um defensor, a gente quer acolhimento”, Sara, familiar de um jovem internado

De acordo com José Henrique Salim, advogado que atua no G10 há 11 anos, a ação ajuda a informar as famílias sobre os direitos que possuem. “Muitas vezes não sabem quanto tempo os adolescentes vão ficar internados, não sabem que têm direito à passagem para visitação.” Guilherme Ulema, psicólogo voluntário no grupo, ressalta a importância de se colocar ao lado da família e do adolescente, construindo um olhar “para além do processo”.

“Vocês não sabem o quanto me fez bem”, diz Sara*, uma das pessoas atendidas durante o Coletivo Fila, ao agradecer pela conversa com os membros do G10, que se estendeu por uma hora. “Não é só um defensor, a gente quer acolhimento”, complementa.

O ECA reconhece crianças e adolescentes como sujeitos em desenvolvimento físico, psíquico e social. No entanto, jovens em conflito com a lei sofrem com um estigma social de criminalização. Para Ana Paula Motta, coordenadora do G10, doutora em Direito, professora e ex-presidente da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (FASE/RS), é importante entender o contexto em que os adolescentes estão inseridos. “É um processo de violação de direitos desde que nascem.”

“A perspectiva é de um subemprego, de trabalho infantil, de morte”, Ana Paula Motta, professora e coordenadora do G10

Segundo dados do Perfil da FASE/RS realizado no dia primeiro de junho de 2022, existem 437 jovens cumprindo medida socioeducativa com restrição de liberdade no estado. Desses, 60% não completaram o Ensino Fundamental e 91% possuem atraso escolar de dois anos ou mais. “Muitas vezes os adolescentes só têm acesso a um dentista, um colégio, quando estão internados”, diz o advogado Salim. “Até então, eles não tinham esses serviços do Estado ao seu alcance.”

Apesar de o artigo quinto do ECA definir que crianças e adolescentes não podem sofrer negligência, discriminação ou violência, esse é precisamente o cenário encontrado pela maioria dos jovens atendidos pelo G10. A falta de acesso aos direitos fundamentais impede que eles enxerguem alternativas para o próprio futuro. “A perspectiva é de um subemprego, de trabalho infantil, de morte”, afirma a professora Ana Paula.

Para a ex-presidente da Fase/RS, o sistema socioeducativo sozinho não é suficiente para assegurar todos os direitos negados. “O que a medida pode fazer é fortalecer o sujeito, fazê-lo entender o contexto em que está inserido”. Ana Paula explica que, ao sair da internação, os jovens voltam para a mesma comunidade, sem a garantia de muitos dos seus direitos básicos.

Racismo e juventude

O último levantamento anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), realizado em 2017, aponta que 63% dos adolescentes e jovens que cumprem medida socioeducativa com restrição de liberdade no Brasil são pretos ou pardos. Já no Rio Grande do Sul, mesmo que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identifique pretos e pardos como apenas 18,9% de toda a população do RS, eles respondem por 42,8% do total de adolescentes e jovens internados no sistema socioeducativo do estado, de acordo com os dados da FASE/RS.

No Brasil, a população preta está mais exposta socialmente à violência e tem menor acesso aos seus direitos. Um jovem preto no país tem quase três vezes mais chance de ser assassinado do que um jovem branco, de acordo com o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência. Já o Mapa do Trabalho Infantil mostra que crianças pretas representam 66% das vítimas dessa prática. De acordo com a professora Ana Paula, a maior criminalização de adolescentes pretos é causada pelo racismo estrutural e institucional. “O racismo no Brasil é fundante da estrutura social.”

“O direito da criança e do adolescente serve para proteger”, José Henrique Salim, advogado que atua no G10

Apesar dos avanços na proteção integral de crianças e adolescentes proporcionados pelo Artigo 227 da Constituição Federal, o Projeto de Lei (PL) 3387/2019, de autoria do deputado Coronel Tadeu (PL/SP), que tramita na Câmara de Deputados, pretende incluir os agentes socioeducativos no Sistema Único de Segurança Pública (Susp), tornando-os uma categoria de natureza policial. O estado de Santa Catarina chegou a aprovar, em 2009, um projeto que autorizava o porte de armas para agentes socioeducativos, decisão que foi anulada em março de 2021 pelo Superior Tribunal Federal (STF).

“Permitir o porte de armas para esses agentes significaria reforçar a errônea ideia do caráter punitivo da medida socioeducativa, e não o seu escopo educativo e de prevenção”, disse Edson Fachin, ministro do STF, ao justificar seu voto. Mesmo assim, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul discute, atualmente, o PL 108/2019, proposto pelo deputado Capitão Macedo (PL), que autoriza o porte de armas pelos agentes socioeducativos fora do local de trabalho.

Além disso, tramita no Senado Federal a proposta de emenda constitucional (PEC) 115/2015, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. A PEC foi aprovada na Câmara dos Deputados, por 320 a 152 votos, em 2015. Para o advogado Salim, essas propostas são frutos de uma cultura punitivista. “O direito da criança e do adolescente serve para proteger”, destaca o advogado do G10.

A linha de frente

“Fui totalmente abraçada pelo grupo e pela causa”, Rachel Vasconcelos, estudante de direito, voluntária do G10

Mesmo com todos os desafios que enfrenta, o G10 da UFRGS busca ser um espaço de acolhimento, tanto para os adolescentes e as famílias atendidas quanto para os novos voluntários. É o caso de Rachel Vasconcelos e Fernando Gonzales, estudantes de direito que se juntaram ao G10 no primeiro semestre de 2022. “Fui totalmente abraçada pelo grupo e pela causa”, diz Rachel. Por sua vez, Fernando destaca o bom relacionamento com os adolescentes internados. “Eles criam um vínculo muito forte com o grupo.”

Atualmente, o G10 conta com advogados, advogadas, estudantes de direito e um psicólogo. É uma equipe interdisciplinar e semestralmente abre processos seletivos por meio do Saju, buscando voluntários das áreas do direito, psicologia, comunicação social e serviço social, entre profissionais e estudantes.

O grupo atua na linha de frente da luta para fazer valer os direitos conquistados no Artigo 227 da Constituição Federal e no ECA para crianças e adolescentes brasileiros, definindo como absoluta prioridade aqueles que nunca foram priorizados.

*Nome fictício, para preservar a identidade da familiar.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

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Anselmo Berté
Brasil à vista

Estudante de Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).