FAMÍLIA

Com nome e sem amor

O abandono parental afetivo é um assunto pouco abordado no Brasil, mesmo sendo parte da realidade de muitas pessoas e os limites do que é ou não abandono parental afetivo ainda são nebulosos

João Antonio da Silva
Brasil à vista

--

Apesar de sabermos que 5 milhões de crianças não tem o nome do pai na certidão, não existem dados concretos quanto a aqueles que foram abandonados ao longo da infância | Foto: Katherine Chase/(Unsplash).

O pai de Fernanda Alves, 25 anos, faleceu em 2020, mas sempre foi uma figura ausente. Apesar de ter o nome dele na certidão de nascimento, Fernanda foi criada apenas pela mãe, na cidade de Novo Hamburgo. Ela é uma entre muitos casos de quem foi registrado pelos pais e nunca recebeu o carinho esperado de pelo menos um deles — normalmente o pai. Pessoas que compartilham essa situação vivem na imensa zona cinzenta do chamado abandono parental afetivo. De acordo com o IBGE, há 5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai nos documentos, além de 12 milhões de mulheres na condição de mãe solo. Porém, não existem pesquisas que indiquem o número de homens, ou mulheres, que são pais e mães apenas no papel.

Aos 27 anos, Rafael Claycon conta um pouco de sua infância, das histórias que fundamentaram os traumas que ele veio a tratar anos mais tarde na terapia. Ele não tem plena convicção se a experiência dele está dentro daquilo que pode ser considerado abandono parental afetivo. O receio dele é justificado, considerando que não existe proteção legal definida para quem cria ou até mesmo para a criança nessas situações. Existe apenas a garantia da pensão para quem estiver legalmente com a guarda, embora isso sequer seja cumprido em muitos casos.

Foi o que aconteceu com a mãe de Xande**, que precisou acionar judicialmente o pai dele, que não acatava a obrigação de dar pensão ao filho e à ex-esposa. Antes de completar sete anos, o jovem já carregava o desgaste da separação dos pais e a necessidade da cobrança da pensão. Hoje, aos 24 anos, Xande diz que não gostaria de processar a figura paterna pela ausência afetiva ao longo da vida, caso essa questão fosse amparada por lei. “Não gosto dessa ideia. Tenho a sensação que qualquer dinheiro que venha dele é sujo”, explica. Com um processo antigo em aberto contra o pai, tem medo de represálias.

“Nunca era ele que vinha falar comigo”, Vitória, administradora

Existem situações, como a vivida por Vitória, que teve os avós paternos como guardiões sem que tenha havido nenhuma judicialização na separação dos pais. A mãe dela foi uma figura presente e conturbada até os quatro anos dela e quase três anos da irmã mais nova, com quem compartilha laços sanguíneos de pai e mãe. “As palavras foram exatamente essas…minha avó [paterna] lembra até hoje. Minha mãe falou: ‘Ou a senhora fica com as meninas, ou eu vou colocar elas para adoção, vou deixar na porta do conselho tutelar. Era umas 9h da noite e tava chovendo muito. Era verão. Foi em fevereiro, eu acho” conta Vitória, hoje com 26 anos. Após essa ameaça, os avós paternos se mobilizaram e buscaram o que restava dos pertences das meninas na casa da mãe. Depois disso, houve apenas uma tentativa de contato direto durante a infância da filha, quatro anos após o ocorrido. Com receio de alguma retaliação, jurídica ou não, que a mãe possa cometer contra ela, Vitória não tentou nenhuma reaproximação ao longo da vida adulta.

Ainda que morassem no mesmo terreno em que o pai vivia com a nova família, inclusive com a irmã caçula do novo casamento, as meninas não recebiam o afeto dele. Ele, apesar de ser ausente, tentava interferir na vida das filhas. “Ele brigava com a minha avó para que ela viesse falar comigo e me proibisse de fazer as coisas. Nunca era ele que vinha falar comigo”, conta Vitória. Pela falta de judicialização da guarda das irmãs, que seguiu até a vida adulta, mãe e pai nunca tiveram obrigação de pagar pensão, tampouco os avós exigiam isso do próprio filho ou da ex-nora.

O ponto comum entre Fernanda, Rafael, Xande e Vitória, além do abandono por algum dos pais (ou ambos), foi a influência dessa situação de ausência na formação deles como indivíduos.

Traumas e dúvidas

Rute Rodrigues, psicóloga e psicanalista formada na Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica que cada um pode vivenciar essa ausência de maneira diferente. “Isso vai depender do que a pessoa percebe como abandono”. Ela afirma que nem toda pessoa que passa por situações de abandono carregará sequelas e lembra que os traumas surgem de vivências pessoais, mas é possível notar algum padrão entre eles.

“O que a psicanálise vê é que nessa constituição de um genitor estar ausente, seja pai ou mãe, o sujeito acaba sentindo e tendo algumas inseguranças quanto a sua própria origem. Seria como se eles perguntassem a si mesmos ‘Eu fui gerado numa situação de amor?’, ‘Eu fui amado?’, ‘Eu fui desejado?’. Mas não podemos generalizar, já que todos seres humanos vão viver suas situações de uma forma única”, reforça. A psicóloga destaca que existem casos em que as pessoas convivem com pai e mãe e mesmo assim apresentam sintoma de abandono.

Sem resposta

Os entrevistados foram questionados sobre o que falariam a quem lhes abandonou se esses não pudessem lhes responder. Fernanda diz que a ausência do pai prejudicou suas relações afetivas com os homens. Ela espera um dia conseguir perdoá-lo, mesmo não estando mais aqui. “Sinto muita raiva de ti, tento todos os dias te perdoar e espero um dia conseguir fazer isso sem que seja mentira. Que não seja só pra me acalmar”, conta Fernanda. Vitória diria que eles só estiveram presentes nos piores momentos de sua vida e que seu pai ainda não acredita em seu potencial, mesmo com uma trajetória recorrente de superação. Já Rafael, que assim como Vitória, é subestimado pelo pai, diz que a única coisa que ele esperava do pai era que sentisse orgulho dele: “Mas cansei de esperar e resolvi sentir orgulho de mim mesmo”. E é esse o sentimento que todos compartilham, que, apesar do abandono, venceram.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

**Nomes alterados para preservar a identidade dos entrevistados.

--

--