CULTURA

Dançar para existir, resistir para dançar

A ausência do corpo negro no ballet clássico, séculos depois do seu surgimento, denuncia um racismo ainda muito enraizado na cultura dessa prática

Cecilia Martini
Brasil à vista

--

Carlos Araújo, bailarino e coreógrafo | Reprodução: Cássio Conde

Criado na Itália renascentista do século XV, o ballet clássico é conhecido por seu rigor e pela disciplina que demanda. Sapatilhas e meias calça cor de rosa, cabelos bem presos e maquiagem impecável são alguns dos aspectos estéticos marcantes associados a uma bailarina. Além disso, o corpo idealizado deve ser longilíneo e magro e, em grande parte das vezes, com a pele branca e os olhos claros. Tudo isso mostra que, séculos depois de seu surgimento, o ballet ainda mantém padrões eurocêntricos que excluem corpos negros de suas práticas.

Para o bailarino Carlos Araújo — paulista de 27 anos que hoje ajuda a dirigir a Dois Rumos Companhia de Dança — , o racismo que permeia o ambiente da dança clássica está cada vez mais disfarçado. “Eu digo que o racismo hoje está muito sofisticado. Tudo é sempre velado, a gente escuta ‘não é que você é negro, é que não está no perfil’.” Em sua trajetória, um dos obstáculos que Carlos precisou encarar mais de uma vez foi o de prender o cabelo de alguma forma que disfarçasse seu black power. “Eram essas sutilezas que na época eu não lia como racismo, eu pensava que era verdade, um príncipe não podia ter um cabelo assim”, conta, lembrando de uma de suas experiências na escola de dança do Theatro Municipal de São Paulo ao conseguir um dos papéis principais.

A democratização da dança a todos os corpos

Como o primeiro professor negro nos dez anos do curso de Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luciano Tavares percebe a oportunidade de trazer novas epistemologias para a universidade. Em um ambiente onde se tinha majoritariamente abordagens hegemônicas eurocêntricas, o bailarino não apenas busca resgatar sua ancestralidade, mas também tem como objetivo democratizar o ensino da dança clássica. De acordo com ele, é necessário ressignificar o que é a técnica no ballet, de forma que o aluno sinta em seu corpo a forma acontecendo, independentemente de seus aspectos físicos e de suas limitações. “Não é questão de ter perna alta ou fazer grandes saltos. A técnica é aquilo que eu consigo sistematizar no meu corpo, isso torna o ensino da dança clássica mais democrático.”

Luciano Tavares, bailarino e professor do curso de Dança da UFRGS | Reprodução: acervo pessoal

No Brasil, o bailarino e coreógrafo mineiro Klauss Vianna foi precursor ao questionar, em seu livro A Dança, o ensino tradicional do ballet clássico devido à exclusão de determinados corpos. O autor destaca na obra a contradição em seguir moldes europeus levando em consideração a realidade brasileira, onde o corpo negro é muito mais comum. Além disso, para ele, assim como para o professor Luciano, as limitações físicas não deveriam impor a impossibilidade de dançar, visto que a dança é muito mais do que apenas uma técnica fria e inflexível. Reconhecendo a importância desse trabalho, Carlos lembra, no entanto, que ele ainda não está terminado. “Klauss Vianna começa a pensar em abordagens que favoreçam o corpo brasileiro, mas era um homem branco falando sobre isso”, pondera o bailarino paulista.

Uma estrutura excludente

Para além das limitações físicas impostas, o ballet clássico também possui um impeditivo financeiro. Com mensalidades que não costumam estar abaixo da faixa dos 200 reais, as escolas de dança mais reconhecidas e conceituadas de Porto Alegre, por exemplo, ainda são muito elitistas. Alunos e alunas pretos tendem a ser exceções nesses ambientes, ingressando apenas como bolsistas. O investimento na dança também contempla outras despesas somadas à mensalidade, como sapatilhas, acessórios para cabelo, roupas de ensaio e figurinos, dificultando ainda mais o acesso, mesmo com o recebimento de bolsas.

Malu Goulart (à direita), bailarina | Reprodução: acervo pessoal

“Por que fazer ballet? Essa dança não é pra gente preta.” Essa foi uma das frases que mais marcou Maria Luiza Goulart, a bailarina e estudante de educação física na PUCRS de 24 anos, em sua caminhada no ballet. Para Malu, ouvir isso ainda criança, vestindo as roupas que usava para as aulas de ballet, soou estranho, afinal sempre contou com o incentivo da família para dançar. Hoje a estudante percebe que o meio do ballet clássico é, na verdade, quase exclusivamente destinado a uma classe média alta e branca. “Por não ser uma dança urbana, não é acessível para crianças em vulnerabilidade social, que muitas vezes fazem parte da população negra do país. É uma atividade com um valor de investimento muito alto”, comenta ela.

“Não tive referências negras na dança. Eu senti muita falta e hoje vejo como faz diferença”, Flávia Gonçalves, bailarina, professora e coreógrafa

A ausência de pessoas pretas nesses ambientes implica em uma menor formação de bailarinas e bailarinos negros e, consequentemente, um menor número de figuras de referência para esses bailarinos. A pouca representatividade pode ser um fator determinante no desencorajamento, principalmente de crianças que estão iniciando na dança. A bailarina e professora da Biodance Escola de Dança, Flávia Gonçalves, hoje assume o papel de modelo para seus alunos, algo que ela mesma não teve durante sua formação. “Não tive referências negras na dança. Eu senti muita falta e hoje vejo como faz diferença”, relata. Flávia ainda conta sobre não se identificar com suas colegas por ter nascido em um contexto muito diferente. “Eu não sofri racismo escrachado, mas talvez aquele de não ser incluída no grupinho, por ser pobre e morena”, relata.

Hoje, meninas negras que ingressam no ballet clássico já têm fortes figuras femininas em quem se inspirar. Contudo, a ocupação desses espaços ainda é uma exceção, além de ser algo muito recente. A conquista da estadunidense Lauren Anderson, por exemplo, como a primeira bailarina a conseguir uma posição no elenco principal de uma grande companhia, o Houston Ballet, só foi alcançada em 1990.

Flávia Gonçalves, bailarina, professora e coreógrafa | Reprodução: acervo pessoal

No Brasil, o cenário ainda é muito diferente. Pouco mudou desde o tempo em que Mercedes Baptista, primeira bailarina negra a integrar o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 1948, dançava. Sua história, apesar de inspiradora, não deixa de ser triste: para ser selecionada, fez o teste com os homens, porque não foi avisada quando a seleção feminina estava sendo realizada. Mesmo depois de ela entrar na companhia, eram poucos os coreógrafos que selecionavam-na para o elenco dos espetáculos. Para a carioca Ingrid Silva, renomada bailarina da contemporaneidade que hoje dança no Dance Theatre of Harlem, em Nova York, o ambiente do ballet brasileiro também não foi acolhedor. Depois de inúmeras tentativas de ingressar em companhias nacionais, incluindo uma na qual ouviu que seu quadril era muito grande para dançar, Ingrid resolveu deixar o país em busca de oportunidades.

A potencialidade de estar em todos os lugares

Mesmo com todos os obstáculos e adversidades, o amor pela dança faz com que bailarinos e bailarinas negros continuem tentando conquistar o seu lugar no ballet. Para Carlos Araújo a razão é clara: ele precisa continuar porque não vê pessoas como ele nesses espaços, e sabe que muitos já desistiram justamente por isso. “Eu sinto que é um lugar de resistência, no sentido de me fazer uma pessoa presente. Assim eu mostro que, sim, é um espaço para se habitar. As pessoas brancas já dominaram, se a gente não ocupar não estamos presentes.”

“Até por ser uma cultura na casa dos homens e mulheres de pele preta, o ato de dançar é quase imprescindível”, Rui Moreira, diretor de arte do Ballet da UFRGS

Já para o bailarino e coreógrafo Rui Moreira — proprietário da Rui Moreira Companhia de Danças e diretor de arte do projeto de extensão Ballet da UFRGS — o ato de dançar qualquer tipo de dança já é, por si só, um ato marginal, sendo esse um dos poucos ambientes em que se permite a presença das classes mais baixas. “Até por ser uma cultura na casa dos homens e mulheres de pele preta, o ato de dançar é quase imprescindível.” Diante dessa reflexão, percebe-se o elitismo do ballet e a contradição de se restringir uma ação tão inerente ao ser humano.

Rui Moreira, bailarino e diretor de arte do Ballet da UFRGS | Reprodução: acervo pessoal

Luciano Tavares ressalta que o caminho para democratizar o acesso a esse tipo de dança é o engajamento por parte dessa comunidade na luta antirracista, e segundo ele, isso também está em prestigiar as pessoas negras no campo das artes. Para Luciano, isso depende de as pessoas brancas reconhecerem o seu privilégio e usarem isso para participar ativamente de um movimento de mudança e enfrentamento do racismo estrutural para, também, reverter o processo de desumanização dos corpos pretos que se iniciou no colonialismo. “Nós, negros e negras, temos a potencialidade de estar em todos os lugares e fazer tudo o que quisermos, não somente o que nos dizem que podemos fazer. A gente simplesmente tem que ter a possibilidade de existir”, reflete.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

--

--