EDUCAÇÃO

Das telas para a sala de aula

Crianças que tiveram aulas presenciais adiadas por conta da covid-19 enfrentam dificuldades de aprendizagem; professores têm adoecido devido à sobrecarga de trabalho

Caroline Rosil
Brasil à vista

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Na Escola Estadual Julio Brunelli, há professores que não conseguiram retornar ao ensino presencial por esgotamento psicológico | Foto: Caroline Rodrigues

Você se lembra do seu primeiro dia de aula, aquela expectativa e ansiedade de conhecer o novo? Agora imagina esse sentimento levando um balde de água fria. Foi isso que aconteceu com muitas crianças em março de 2020. Devido à pandemia de Covid-19 e ao fechamento das escolas, foi preciso adiar o início das aulas presenciais.

Crianças entre 6 e 7 anos, que começavam naquele ano a vida escolar, foram apenas 14 dias para a escola. O restante do ano letivo aconteceu através das telas de aparelhos digitais, de forma remota, passando para o modelo híbrido em julho de 2021. O retorno das aulas totalmente presenciais ocorreu somente em fevereiro deste ano.

O ensino a distância acabou gerando desvantagem para muitos alunos de escolas públicas, municipais e estaduais, já que parte deles não tinha acesso à internet ou contava com apenas um aparelho para ser compartilhado com outras pessoas da casa. “A gente aqui da escola entendeu que alguns alunos não teriam condições de fazer as atividades online, então disponibilizamos também para que os pais viessem buscar as atividades impressas”, conta Vanice Loose, diretora da escola estadual Júlio Brunelli, localizada no bairro Rubem Berta, zona norte de Porto Alegre. Outro agravante foi a falta de estrutura dos responsáveis para auxiliar as crianças, seja porque passavam parte do dia trabalhando fora ou pelo fato de terem baixa escolaridade. Agora, o grande desafio é a adaptação desses alunos ao ensino presencial.
Com a pandemia, vieram também outros prejuízos para meninos e meninas dessa faixa etária, que, além de terem a convivência com outras crianças cessada, o que nessa fase é tão importante, foram alfabetizados de forma precária. Muitos conteúdos básicos das séries iniciais não puderam ser ensinados. “Como é que a gente vai conseguir completar essa lacuna que fica? Porque o 1º e o 2º ano são tudo pra uma criança”, questiona Jupira Soares, professora do 2º ano da escola Gentil Machado de Godói, localizada na periferia de Alvorada, município gaúcho.

A principal preocupação dos profissionais da educação, atualmente, tem sido com a alfabetização dessas crianças. Aqueles que entraram no 1º ano no início da pandemia, agora estão no 3º ano, porém, não sabem ler nem interpretar textos simples, coisa que, segundo os profissionais, já era pra estar acontecendo. De acordo com Jupira, algumas crianças do 2º ano ainda não conseguem escrever o próprio nome, algo que se aprende nos primeiros meses do 1º ano. Alessandra Silveira, professora do 3º ano do ensino fundamental da escola Tenente Almáchio, em Florianópolis, conta que dividiu a turma em dois grupos: os que conseguem ler, interpretar e têm mais facilidade para fazer as atividades propostas no plano de ensino, e aqueles que ainda são pré-silábicos, ou seja, que não compreendem a correspondência entre o falado e escrito. “Estou tendo trabalho dobrado, mas foi o jeito que encontrei de tentar retomar [a alfabetização] e não deixar ninguém pra trás”, comenta.

Abandono escolar

Outra preocupação entre os profissionais do ensino é a evasão escolar. Há alunos que não voltaram para a escola, e passou a ser comum alguns irem vez ou outra. “A educação não é prioridade. As famílias se reorganizaram [pós pandemia], mas a educação não está entre as prioridades”, argumenta Vanice.

Um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que o abandono escolar entre crianças de 5 e 9 anos passou de 1,4% para 5,51% entre os últimos trimestres de 2019 e 2020. A pesquisa apontou também que, no último trimestre de 2021, a evasão nessa faixa etária é cerca de 128% mais alta do que aquela registrada no mesmo trimestre de 2019, alcançando xx%.
Na avaliação da professora Jupira, parece que as crianças perderam o interesse nas aulas presenciais, que nada chama a atenção delas, e que os pais também parecem não se interessar em levar os filhos para a escola. Para ela, o desinteresse pode estar associado ao fato de que, em julho de 2020, o Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu uma orientação sobre não reprovar alunos de escolas públicas e privadas ao longo da pandemia. Segundo a professora, os pais parecem não entender a importância dos primeiros anos escolares na formação das crianças. “É nas séries iniciais que se forma a aprendizagem de uma criança. A alfabetização é a base para todas as outras etapas. Se tu te perdes aqui, isso vai te causar impacto pro resto da vida”, afirma a professora.

É preciso olhar para o professor

Com a alfabetização prejudicada e o nível de evasão escolar elevado, sem contar as outras dificuldades enfrentadas no cotidiano de uma escola pública, os professores precisam se desdobrar. É o caso de Alessandra, que dividiu a turma em duas — outros educadores têm seguido o mesmo caminho. Além disso, algumas turmas ainda têm alunos com alguma necessidade específica, e nem todas as escolas contam com um educador assistente em sala, o que acaba tornando o docente ainda mais sobrecarregado. “O desgaste é porque não é só alfabetizar. Além de professora, tu és psicóloga, cuidadora”, desabafa Alessandra.

A diretora Vanice, diz que muitos professores da escola onde é gestora estão afastados por licença saúde desde o retorno às aulas presenciais. Segundo ela, as principais causas são depressão, ansiedade e síndrome de burnout, o que indica esgotamento profissional, com sintomas resultantes de situações de trabalho desgastante. “A gente tá adoecendo”, resume a professora Jupira.
Por meio de entrevistas com professores de todas as regiões do Brasil, uma pesquisa realizada pelo Instituto Península revelou que, para lidar com as questões sociais e emocionais dos alunos, as escolas têm tomado algumas providências na tentativa de minimizar os efeitos deixados pelo ensino remoto no pós-pandemia. Por outro lado, os professores — que também estão inseridos neste contexto — não recebem a mesma atenção. Ainda de acordo com a pesquisa, de maio de 2020 a julho de 2022, saltou para 30% o percentual de professores que se sentem sobrecarregados.

Na Escola Estadual Julio Brunelli, há professores que não conseguiram retornar ao ensino presencial por esgotamento psicológico | Foto: Caroline Rodrigues

A retomada para os pitocos

Mesmo com uma série de dificuldades, a volta do ensino presencial se tornou uma grande experiência para os pequenos. Em especial para aqueles que mal chegaram a conhecer a escola, como é o caso de Aline Neques, 8 anos, aluna do 3º ano da escola estadual De Muquem, em Florianópolis. “Eu amei a minha escola, ela é bem grande e tem pracinha. Já sou amiga de todo mundo”, comemora a menina.
Diferente de algumas crianças, durante as aulas remotas, Aline teve o auxílio e a supervisão da mãe, Michelle Neques, que também é educadora em uma escola de Florianópolis, e da irmã, que está alguns anos à frente na escola. “A gente procurou estar em cima para o que fosse necessário, mas também pra entender as necessidades dela, já que uma aula online não é a mesma coisa que estar frente a frente com a professora”, avalia Michelle.

Para Aline, é tudo novidade. Todos os dias ela chega em casa contando sobre os novos aprendizados e as amizades que fez na escola. A mãe-educadora conta que Aline não falta aula por nada e, ainda que não seja obrigatório o uso da máscara em Florianópolis, a pequena faz uso por receio de contrair Covid e ter que ficar em casa.

Aline (à direita) e a irmã Jade no primeiro dia de aula, em fevereiro de 2022 | Foto: Dih Neques/Arquivo pessoal

Resgatar da pandemia

Vanice vai mais longe e se preocupa com o futuro das crianças, diz ser preciso fazer um grande resgate desses alunos da pandemia. “Se não fizermos nada com urgência e efetividade, o risco de diminuir cada vez mais o ingresso ao mercado de trabalho por falta de estudo e acesso às universidades é gigante”, avalia a gestora escolar.
De acordo com o relatório feito pelo Fundo das Nações Unidas pela Educação (Unicef), em decorrência da crise sanitária, o país corre o risco de regredir duas décadas no acesso da população entre 6 e 17 anos à educação. Diante desse cenário, questiona-se como será o futuro dessas crianças se as lacunas apontadas não forem preenchidas.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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