PANDEMIA

Despedidas solitárias e incompletas

Como as famílias que foram destruídas pela covid-19 viveram o luto e o que fizeram para seguir em frente

Danielly Barbosa
Brasil à vista

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A falta da cerimômia de despedida potencializou o luto |Foto: Henryk Niestrój /Reprodução: Pixabay

“Eu não esperava que fosse ao mesmo tempo e tão rápido, não assim, os três em oito dias. Até cair a ficha foi difícil”, conta Angela Maria de Souza, 54, sobre a perda dos pais e de um dos seus irmãos, vítimas de covid-19, em março de 2021. Essas foram apenas três das mais de 680 mil mortes causadas pela doença no país. Por trás de cada morte, há uma família que foi destruída pela dor da perda, que, muitas vezes, aconteceu em um curto período de tempo e sem uma despedida adequada.

O fechamento de um ciclo

Apesar de a morte ser uma condição inerente à vida, falar sobre o luto ainda é um tabu. Ele pode ser entendido como reação a uma perda significativa e é um processo extremamente individual. Cada pessoa enfrenta essa situação de uma maneira.

“O luto é um estado emocional onde o indivíduo está enfrentando uma perda. Esse processo não é linear e passa por várias fases: a primeira é a negação, onde há uma rejeição do fato. A segunda é a raiva, que pode ser expressa de várias formas e intensidades. A barganha é a terceira, uma fase de auto negociação com o intuito de aliviar a dor. Um grande sofrimento aparece na quarta fase, chamada de depressão. A última fase pode levar meses ou anos, é a aceitação”, explica a psicóloga clínica Fabiana Fetzer.

A dor de quem ficou sem poder se despedir da pessoa que partiu é potencializada pelo fato de não conseguir viver o luto por completo. Em uma cultura que valoriza os rituais, a cerimônia de despedida é uma parte importante para a elaboração do luto e ajuda os indivíduos a expressar emoções diante da perda. Segundo Fabiana, o velório tem uma função importante no fechamento desse ciclo e a falta dele potencializa o sofrimento, as angústias, as ansiedades e também, a depressão. Justamente porque ajuda a concretizar a elaboração da perda.

Para muitas pessoas, o contexto da pandemia trouxe, além das mortes, outras perdas importantes, a exemplo da privação do contato físico. Angela, que morava junto com os pais e o irmão na cidade de Alvorada, conta que a mãe foi a primeira a descobrir que havia sido infectada e, do momento da descoberta até o seu falecimento, não sem passaram nem 48 horas. Oito dias depois, o irmão Moisés e o pai, respectivamente, morreram pelo mesmo motivo. “Até certo tempo, eu olhava para a porta e tinha a sensação de que a qualquer momento um deles iria entrar, porque a gente não viu eles dentro do caixão”, explica. Isso porque essas mortes ocorreram num momento em que a pandemia no Brasil apresentava picos diários de crescimento no número de vítimas fatais e não era permitido fazer velórios nem qualquer cerimônia com o caixão aberto, fato que segue ocorrendo.

Angela e os pais, Marcolino e Lícia, que morreram na pandemia | Reprodução: arquivo pessoal

“Minha avó era muito vaidosa e eu não pude arrumar, não pude tocar, não pude ver porque o caixão era lacrado. Tornou o luto mais horrível”, Leticia Santos da Rosa, taróloga

Leticia Santos da Rosa tem 40 anos e mora na cidade de Guaíba. Ela perdeu a avó, que considerava como mãe, e o tio para a covid-19. A avó foi a primeira a se infectar e passou 15 dias internada antes de morrer, em 28 de janeiro de 2021. Algumas semanas depois, em 17 de fevereiro, o tio dela faleceu em decorrência do vírus, apenas sete dias após ter sido internado. “A parte do enterro foi tenebrosa, não teve velório. Minha avó era muito vaidosa e eu não pude arrumar, não pude tocar, não pude ver porque o caixão era lacrado. Tornou o luto mais horrível”, conta Leticia.

Leticia e a avó, que morreu de coronavírus, eram muito próximas| Reprodução: arquivo pessoal

A vacinação contra a covid-19 foi iniciada em 17 de janeiro de 2021 no Brasil, mas os familiares de Angela e Leticia não chegaram a ser imunizados. Ainda que as experiências de perda dessas duas brasileiras tenham sido semelhantes, ambas lidaram com o luto de diferentes formas. “Eu sou espírita kardecista, me segurei muito na fé, e foi o que me manteve em pé”, revela Leticia. Já Angela encontrou no trabalho uma maneira de seguir em frente. Manter a rotina é o que está ajudando a superar a situação. Em muitos casos, o apoio psicológico também se torna essencial para o enfrentamento.

A busca por ajuda profissional

Foi nesse contexto que as psicólogas Claudia Santos e Simone Abdalah se uniram ao Projeto Acolher, no município de Guaíba, no Rio Grande do Sul. O projeto era formado por um grupo de psicólogas e seu objetivo inicial era atender, de forma voluntária, servidores da prefeitura enlutados pela covid-19. Com o passar do tempo e o aumento do número de casos, começaram a atender, também, outras famílias que foram atingidas pela doença.

Segundo elas, a pandemia e os lutos coletivos desencadearam diversas questões emocionais até mesmo naqueles que não tiveram suas famílias atingidas, e isso levou muitas pessoas a buscarem o serviço. “Foram mortes em massa. As fases do luto não são diferentes, mas, com a pandemia, tiveram outros agravantes: as incertezas que permeavam a doença e a falta de respostas da ciência geraram um abalo emocional. Toda a estrutura de atendimento foi modificada devido a essas mortes tão emergentes. Era como se estivessem sendo vividos vários lutos ao mesmo tempo”, esclarece Simone.

As psicólogas explicam que houve a sensação de que a vida parou com a pandemia. Por outro lado, o tempo continuou a passar. “A gente não parou, só não seguiu o mesmo ritmo, mudamos algumas coisas e vivenciamos outras que mexeram muito com cada um de nós”, recorda Claudia.

Elas esclarecem que agora estamos passando por um novo momento, um período de reinvenção, algo que temos conhecido como um “pós-pandemia”, e acreditam que existe um novo normal, que está trazendo à tona novas demandas na área de saúde mental. “Os atendimentos triplicaram, aumentou muito [a demanda], porque a covid, de certa forma, mexeu até mesmo com quem não se infectou. Ela alterou a sociedade como um todo e, agora, estamos continuando a vida a partir dessa situação vivenciada”, explica Claudia.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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