Educação

Um ensino para liberdade

O Núcleo de Educação de Jovens e Adultos Novos Ventos existe há apenas cinco anos na penitenciária de Osório, mas já mudou a vida de mais de mil detentos através da educação

Nikelly de Souza
Brasil à vista

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Detentos buscam na escola uma oportunidade para mudar de vida I Foto: Júlio Estevan

Uma característica comum da maior parte das penitenciárias é seu afastamento da área urbana. Grande parte das prisões estão localizada no meio rural, completamente isoladas. O subterfúgio aceito é de que esse isolamento dificulta a fuga dos detentos, mas — há quem diga — que é apenas mais uma tentativa falha de esconder o fracasso social que está atrelado ao sistema penitenciário.

O Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo, sendo composta por 61,6% de pretos e pardos, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.

Muitos jovens que vivem nas periferias veem seus direitos básicos sendo negligenciados diariamente. Em uma rotina de fome, violência e discriminação, o caminho mais próximo é o do crime.

Para romper com esse ciclo de exclusão, a educação pode ser um caminho.

Foi com a intenção de tornar possível a ressocialização dos detentos que o Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos (Neeja) Novos Ventos foi implementado na Penitenciária Modulada de Osório, região litorânea do Rio Grande do Sul. A escola foi inaugurada em 2017 com quatro turmas, uma de alfabetização e três de Ensino Fundamental. Passados cinco anos, a instituição já conta com 12 turmas que abrangem toda a Educação Básica. Ao todo, mais de mil detentos passaram pelo projeto.

Na escola penitenciária não há critérios de seleção. Qualquer detento que queira estudar, terá essa oportunidade. Entre professores e funcionários, o lema é o mesmo: ressocializar através da educação e do trabalho.

A atual diretora da escola, a pedagoga Rejane Dotto, foi uma das idealizadoras do projeto. Portanto, pôde acompanhar de perto a fundação da instituição. Notava que a dificuldade em ler e escrever afetava a autoestima dos detentos. Por isso, a notícia de que seria possível a alfabetização, foi bem recebida por eles.

No início, foi difícil atender a tantos pedidos de matrícula. “Houve mais detentos na lista de espera do que em sala de aula. Eles realmente queriam estudar. Muitos entraram aqui semianalfabetos e saíram com diploma de Ensino Médio completo”, orgulha-se a diretora.

As aulas são ministradas no interior das celas. Mesas e cadeiras são organizadas em fileiras, uma forma encontrada para trazer a sensação de estar em uma sala de aula convencional. Todos os dias aprendem sobre as disciplinas tradicionais, mas também participam de grupos de leitura e recebem aulas sobre jardinagem. Além da oportunidade de receber uma nova capacitação, os estudos tornam o período de pena menos ocioso.

“O que nós fazemos é mostrar para eles que há um outro caminho que pode ser trilhado”. Vitor Oliveira, professor de geografia do Neeja.

Tomado pela sensação de incerteza, Vitor Oliveira ingressou como docente na penitenciária de Osório. Essa foi sua primeira experiência dando aulas a estudantes pertencentes ao sistema prisional. A notícia foi recebida com insegurança, resume.

Professor há mais de dez anos, Vitor se considera um docente experiente. Contudo, revela que a experiência na Penitenciária de Osório foi como aprender a lecionar do zero. “Não é o mesmo tipo de aula convencional, apesar de serem os mesmos conteúdos”, comenta.

Segundo ele, os primeiros meses foram os mais difíceis. Habituado a lidar com crianças e jovens, precisou aprender a dar aulas para um público mais velho. “Tive medo da violência no início, talvez até um pouco de preconceito, mas na prática é bem diferente. Eles são ótimos ouvintes e adoram aprender”.

Vitor se define como um entusiasta da educação carcerária. Hoje, diz que não se vê trabalhando em outro local. Acredita no potencial transformador que suas aulas de geografia podem gerar na vida dos detentos. “O que nós fazemos é mostrar para eles que há um outro caminho que pode ser trilhado”.

A educação abre portas e destrói muros

“Eu rezava para chegar cada minutinho para poder ir para sala de aula.” João, ex-detento da penitenciária de Osório

A falta de oportunidade atrelada às dificuldades financeiras da família, fizeram com que o ex-detento *João procurasse uma alternativa na criminalidade. Ainda com 12 anos de idade largou os estudos e fugiu de casa. O crime o acolheu. Começou como a maioria dos jovens da periferia: tornou-se “aviãozinho”, levava drogas de um ponto ao outro. Ganhava pouco, mas o suficiente para sobreviver.

Foi amadurecendo e crescendo no mundo do crime. Cometeu delinquências que o deixaram por mais de uma década atrás das grades. Sua primeira passagem foi no Presídio Central. Ao invés de encontrar uma possibilidade de ressocialização, aprimorou seu conhecimento no crime. Após alguns anos, voltou às ruas. Não demorou muito para ser novamente detido, dessa vez na Penitenciária de Osório, local em que esteve preso por cinco anos.

Conta que sempre teve vontade de completar os estudos, mas nunca houve oportunidade. Para João, o NEEJA Novos Ventos foi um divisor de águas em sua vida. Revela que se não fosse a escola penitenciária, provavelmente nunca conseguiria formar-se no Ensino Médio.

Ter um diploma era algo impensável em sua realidade. Para ele, o local também era uma espécie de refúgio daquele ambiente de criminalidade. “Eu rezava pra chegar cada minutinho pra poder ir pra sala de aula. Eu aprendia tantas coisas legais nas aulas e, também, me afastava do clima violento do presídio”.

Após o cumprimento da pena, João foi liberto. Agora, havia um outro desafio: o de reconstruir a sua vida lá fora. Ele relembra com tristeza os momentos de angústia em seus primeiros dias de liberdade, em que não conseguia encontrar um trabalho para sustentar a família. “Ninguém dá emprego pra ex-presidiário. Eu achava que com o diploma iria conseguir rapidinho, mas não foi bem assim”, relata.

A dificuldade era tanta que João cogitou, inclusive, retornar à ilegalidade. Mas foi através do empreendedorismo que encontrou uma alternativa para manter uma vida digna. No Litoral, construiu uma lancheira que fez sucesso na região. Hoje, com seu negócio ampliado, orgulha-se de dizer que já gerou emprego para 12 famílias que vivem no local.

Com a vida reestabelecida, João foi além: buscou o diploma de ensino superior. Agora, está prestes a se formar em Administração. Todos os anos, é convidado à palestrar em penitenciárias da região litorânea do Estado. Com sua história, leva mensagens de esperança aos apenados, mostrando que é possível ter a vida transformada pela educação.

  • O nome foi trocado para preservar a identidade do entrevistado.

*Reportagem produzida na disciplina de fundamentos da reportagem no curso de jornalismo da FABICO/UFRGS.

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Nikelly de Souza
Brasil à vista

Estudo jornalismo na UFRGS e trabalho como produtora na UFRGS TV. Também escrevo para a editoria do leitor do Diário Gaúcho.