MODA

Escolher o que se veste, vestir o que se sente

Entendendo o papel que as roupas desempenham na autoestima feminina

Maria Fernanda Freire
Brasil à vista

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Roupas desempenham papel importante na autoestima feminina | Reprodução: Pexels

Em 2021, enquanto trabalhava como estagiária na Defensoria Pública do Estado no Foro Regional do Partenon, em Porto Alegre, a bacharel em direito Luciane Soares, 33 anos, decidiu organizar um bazar de roupas femininas. Acostumada com a dinâmica dos brechós tradicionais, como já havia sido proprietária de um, ela tinha agora uma proposta diferente: seu bazar, voltado para mulheres em situação de vulnerabilidade social, não visava o lucro. O projeto tinha como missão principal auxiliar seu público a reconstruir a própria autoestima, que, em vários casos, havia sido prejudicada por conta de alguma situação traumática.

“Eu não queria que funcionasse como uma doação. Queria que elas tivessem o prazer de escolher o que iriam vestir, como se faz em uma loja” Luciane Soares, bacharel em direito

O acervo do bazar foi construído a partir de arrecadações, e o foco principal era permitir que as mulheres contempladas pela iniciativa escolhessem suas roupas de forma autônoma. “Eu não queria que funcionasse como uma doação. Queria que elas tivessem o prazer de escolher o que iriam vestir, como se faz em uma loja. Boa parte do nosso público estava passando por alguma situação delicada. Algumas eram ex-detentas, outras haviam saído recentemente de relacionamentos abusivos”, explica Luciane. Para ela, a possibilidade de escolher as próprias roupas era parte fundamental do processo. “Acredito que isso fortalece o empoderamento, resgata a vaidade e a autoestima dessas mulheres”, afirma.

Um estranho poder

A percepção das roupas como algo que transcende o vestuário e opera como ferramenta de construção da autoestima e do empoderamento não é exclusiva de Luciane. Já no século XX, o escritor polonês Isaac Bashevis Singer tornou célebre a frase: “Que estranho poder existe nas roupas”. De fato, é curioso. Especificamente entre as mulheres, esse poder que a vestimenta desempenha na autoimagem e no senso de valor próprio fica evidente nos hábitos de consumo do público feminino.

De acordo com um estudo realizado pelo Programa de Administração do Varejo (Provar), em parceria com a Fundação Instituto de Administração (FIA), mulheres realizam, em média, uma compra no setor de vestuário por mês. Essa frequência é o dobro da dos consumidores do sexo masculino. Para além disso, dados publicados pelo Grupo Kantar apontam que 13% das brasileiras consideram sua autoestima baixa. Na mesma pesquisa, esse público afirmou que marcas de moda são as que mais auxiliam em uma construção positiva dessa autoestima. Essas análises não são as únicas — nem mesmo as primeiras — a evidenciar a importância da vestimenta para o comportamento de um indivíduo.

A relação do comportamento humano e da indumentária — o chamado poder das roupas — também é analisada no estudo “Enclothed Cognition”, de 2012, de autoria de Hajo Adam e Adam D. Galinsky, pesquisadores da Northwest University. Para a publicação, foi realizada uma série de testes cognitivos, nos quais os participantes utilizavam diferentes tipos de vestimenta. Com a pesquisa, Adam e Galinsky concluíram que a influência que a roupa exerce sobre um indivíduo não se limita à sensação física que ela fornece. Apesar de o sensorial da peça e o conforto que ela proporciona serem relevantes, e de fato terem a capacidade de alterar a maneira que alguém age, a roupa desempenha outro papel fundamental: o de influência simbólica. Essa influência diz respeito ao significado que se atribui a uma determinada roupa, ao tipo de sensação emocional e psicológica que vestir uma peça proporciona ao indivíduo.

A roupa como muleta

A pesquisadora Débora Elman, professora do Curso de Moda do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), em Porto Alegre, acredita que o vestuário pode auxiliar na recuperação da autoestima feminina, especialmente após eventos potencialmente traumáticos. “A roupa sempre tem um componente emocional de transformação. Quando entramos em uma roupa, também vestimos um personagem. Às vezes as pessoas vão precisar dessa muleta para fugir um pouco de sua realidade”, explica.

Porém, Elman ressalta que apesar das roupas funcionarem como uma ferramenta que auxilia a moldar uma autoestima saudável após situações de abalo psicológico, a moda não cura, nem é a solução de todos os problemas de autoestima. “Não acho que seja uma forma de resolução para, por exemplo, depressões profundas, mas é algo que pode auxiliar de certa forma”.

“É como um encolhimento de si, da própria feminilidade, do seu empoderamento”, Débora Elman, pesquisadora

A professora também afirma que, como a roupa é uma forma de se comunicar com o mundo, tipos específicos de vestimenta podem ser representações físicas de alguma situação traumática que a pessoa vivenciou. Como exemplo, ela cita mulheres vítimas de assédio que passam a utilizar roupas mais largas. “É como um encolhimento de si, da própria feminilidade, do seu empoderamento”, conclui.

Foi o caso da porto-alegrense Carolina Braga, estudante de Serviço Social. Aos 20 anos, ela considera que dilemas relacionados ao seu vestuário a acompanharam durante a vida toda. Quando atingiu a pré-adolescência, a jovem, até então acostumada a priorizar seu conforto, sentiu necessidade de buscar peças que fossem mais parecidas às usadas pelas suas amigas e colegas de escola, ou seja, roupas tradicionalmente femininas. “Passei a usar muitos shorts e croppeds. Eu não me sentia incomodada, mas achava desconfortável”, relata.

A estudante lembra que, nessa época, passou a sofrer assédios constantes, o que fez sua forma de se vestir mudar radicalmente mais uma vez. “Comecei a usar roupas extremamente largas para cobrir meu corpo, esperando que isso resolvesse o problema, o que não aconteceu”, comenta. Nenhum desses estilos, entretanto, fazia com que ela se sentisse plenamente contemplada, o que gerava um paradoxo: ao mesmo tempo em que buscava roupas de determinado estilo para se sentir mais confiante e segura, o fato de não acreditar que essas roupas a representavam fazia com que ela tivesse problemas na sua autoconfiança. Se Carolina estava precisando de algo no que se apoiar, a moda era, naquele momento, uma muleta quebrada.

“Sinto que escutei muitos comentários que não precisava ouvir”, Carolina Braga, estudante

Foi então que a jovem buscou encontrar roupas que de fato a representassem, e, nesse processo, enfrentou mais uma série de dificuldades. “Sinto que escutei muitos comentários que não precisava ouvir. Quando passei a me vestir da forma como faço hoje, peças que tem o estilo skater, isso não era muito popular entre as mulheres como é hoje em dia”, relembra. Ela acredita que essa vivência moldou uma relação ambígua entre si própria e as peças que escolhia. Ao mesmo tempo em que se sentia forte e empoderada por utilizar algo diferente, havia uma forte sensação de julgamento, causada pelas coisas que lhe eram ditas. Seu maior receio era o julgamento das pessoas próximas.

Para ela, um momento marcante e libertador foi sua formatura do Ensino Médio, na qual ela decidiu usar, ao invés do tradicional vestido longo, um terno azul royal. Ela se emociona ao lembrar da coragem que foi necessária para trajar algo que fugia do tradicional, mas que condizia com seu estilo e a deixava muito confortável. Carolina finaliza afirmando que, apesar de sua relação com as roupas ainda ser complexa e multifacetada, ela se sente melhor atualmente, pois busca se vestir para agradar a si mesma, e não aos outros.

O papel da roupa para a autoestima feminina parece ser de fato esse: permitir que, mesmo após situações traumáticas, mulheres busquem, através de escolhas autônomas do que vestir, o próprio empoderamento. Para além da chance de se comunicar e se expressar através da vestimenta, a possibilidade de retomar a própria autonomia através da escolha de o que comunicar, o que vestir e como se sentir.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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