SAÚDE

Não olhe para o campo

A insegurança alimentar atinge mais da metade dos estabelecimentos rurais brasileiros segundo o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil

Bringmannmarta
Brasil à vista

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Do trabalho do agricultor/a vem todo o alimento, e quando falta para quem produz? | Fonte: MPA Brasil

“Pelos campos há fome em grandes plantações” é o trecho da música “Pra não dizer que não falei das flores” composta por Geraldo Vandré em 1979 e que ainda em 2022 expressa uma contradição dolorosa.

Mais de 60% dos domicílios em zona rural no Brasil estão inseguras sobre sua alimentação e 18,6% estão em situação de fome, sendo que o índice nacional de famintos é 15,5%, segundo o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil, organizado pela Rede Nacional em de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).

Laudemar Bringmann viveu seus 64 anos no interior do município de Vale do Sol, no Rio Grande do Sul. Ele viu o esvaziamento e empobrecimento da sua comunidade de Linha Boa Esperança, onde cada vez menos se utiliza a terra para produzir alimentos e tampouco há incentivo para tal ou valorização da produção do camponês. “Aqui o que tem de produção é fumo. Fumo não dá pra comer, mas dá pra vender e comprar comida. Aqui na Região há muitos anos, e até hoje, cada vez mais as famílias deixam de plantar seu feijão, sua batatinha, hortaliças, mandioca, para produzir o fumo. Com o preço que está tudo agora, dá pra comprar bem menos no mercado, ultraprocessados, transgênicos, de péssima qualidade, porque é mais barato”, diz Laudemar.

“Nós, como pequenos agricultores, quando vamos comprar algo, perguntamos ‘quanto custa?’ e quando vamos vender nossa produção perguntamos ‘quanto você paga pelo meu produto?’”, Laudemar Bringmann, agricultor

O aumento do preço dos insumos agrícolas faz o custo de produção aumentar em relação à venda do produto final, diminuindo a renda das famílias rurais muito dependentes desta pequena margem para sobreviverem. Segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), só na produção de tomate e cebola o aumento varia de 27% a 51% em relação ao ano passado.

“Nós, como pequenos agricultores, quando vamos comprar algo, perguntamos ‘quanto custa?’ e quando vamos vender nossa produção perguntamos ‘quanto você paga pelo meu produto?’”, diz Laudemar ao citar a desvalorização da agricultura familiar.

O fim dos mercados institucionais

O aumento da insegurança alimentar no Brasil e em especial no campo é uma consequência da falta de incentivo à produção e comercialização de alimentos somado ao empobrecimento das comunidades rurais e a perda de produção por problemas climáticos. “Nós, como pequenos agricultores, quando vamos comprar algo, perguntamos ‘quanto custa?’ e quando vamos vender nossa produção perguntamos ‘quanto você paga pelo meu produto?’”, diz Laudemar ao citar a desvalorização da agricultura familiar.

Segundo Juliano de Sá, presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul (Consea-RS), o marco do retrocesso é a Proposta de Emenda à Constituinte (PEC) do Teto de Gastos Públicos sancionada em 2016 pelo então presidente Michel Temer, passando pelo esvaziamento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e pelo sucateamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que foram mercados institucionais fundamentais para o incentivo à produção de alimentos, o desenvolvimento da economia e qualidade de vida e alimentação na agricultura familiar.

A Conab é o órgão que tem como papel principal garantir estoque de alimentos para situações de emergência, incentivar a produção de alimentos e regular os preços do mercado interno, porém, teve seu estoque esvaziado antes mesmo da pandemia, conforme o presidente do Consea-RS.

“Aqui estamos e temos que sobreviver lutando. Um pouco melhor que a favela é. Mas é muito trabalhoso, só pra quem nasceu e viveu aqui pra permanecer”, Laudemar Bringmann, agricultor

Com o fim do PAA, acabou a garantia de compra antecipada de alimentos produzidos pelos pequenos agricultores, que passaram a cultivar suas terras com soja e milho (ou tabaco na região de Laudemar). Segundo Leile Teixeira, da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), as aquisições do campesinato eram destinadas ao estoque da Conab, ou então a cestas básicas para doação para famílias em vulnerabilidade social no campo e na cidade.

No Rio Grande do Sul, o PNAE sofreu com a má execução do recurso. Segundo Juliano, 200 mil cestas que deveriam ter sido compradas da agricultura familiar para estimular a economia local, foram compradas do hipermercado Atacadão, e, em 2021, o governo do estado deixou de injetar 26 milhões de reais do recurso destinado ao PNAE.

Somado à perda dos mercados institucionais, segundo Leile, as famílias enfrentam diretamente os efeitos do desequilíbrio ambiental, onde na região sul houve estiagem prolongada entre 2020 e 2021. No sudeste e nordeste houve enchentes e tempestades que comprometeram a produção de alimentos, prejudicando a biodiversidade e as variedades de sementes fundamentais para a reprodução da vida no campo.

Reconhecimento internacional

O Brasil desenvolveu um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) que além de envolver os programas de aquisição e distribuição de alimentos, garante participação ampla da sociedade através dos conselhos e de conferências (nacionais, estaduais, regionais e municipais) num pacto pelo planejamento, execução e fiscalização de políticas públicas voltadas à democratização da alimentação e incentivo à pequena agricultura nacional.

A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece o Sisan como um mecanismo efetivo que tirou o Brasil do Mapa da Fome em 2014, porém, em 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência, extinguiu o Consea nacional em seu primeiro ato e desmontou o sistema.

Os conselhos estaduais continuam articulados, segundo Juliano de Sá, a população brasileira está mobilizada, os Conseas estaduais estão organizados, porém, há uma omissão por parte do Estado, que mesmo convocado a participar dos congressos, não comparece, como foi o caso da ausência do governo do estado do Rio Grande do Sul na 8ª Conferência de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do RS, nos dias 27 e 28 de Julho, na Assembléia Legislativa em Porto Alegre.

Para Laudemar, Leile e Juliano, a saída para solucionar o problema da fome se dá através da retomada do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional com mais intensidade e ampliando cada vez mais o incentivo e subsídio para que a agricultura familiar e camponesa possa produzir alimentos para si e para quem tem fome. “Aqui estamos e temos que sobreviver lutando. Um pouco melhor que a favela é. Mas é muito trabalhoso, só pra quem nasceu e viveu aqui pra permanecer”, afirma Laudemar.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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