MÚSICA

Ouço, logo existo

O crescimento do rap nacional e da cultura hip hop gera transformações na vida dos jovens brasileiros

Giulia Fogali Moreira
Brasil à vista

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A cultura hip hop engloba inúmeros movimentos, entre eles, o rap | Reprodução: Pexels.com / Ghettoblaster

“Tentamos conversar, tentamos resolver

Eles fingem não escutar, mas agora eles vão ver

Fizemos o inferno subir, fizemos o céu descer.”

Quadros, de Abebe Bikila.

Por muito tempo o rap foi considerado apenas um estilo musical periférico, nada mais, porém, nos últimos anos essa cena vem dominando o público jovem de todo o Brasil, e não apenas a partir da musicalidade, mas com os ideais de revolução e transformação social. Essa é a base do rap nacional, ainda que muitos finjam não escutar, agora tornou-se impossível.

Em julho de 2022, o festival de rap e trap Cena 2k22 reuniu mais de 100 mil jovens no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, durante três dias. O sucesso do evento comprova que esse estilo musical rompeu barreiras territoriais e já atinge um grande público no Brasil.

O estilo musical dos jovens

O rap surge na década de 70 nos Estados Unidos como uma abreviação de “rhythm and poetry”, ou melhor, “ritmo e poesia”, sendo um dos principais movimentos da cultura hip hop. O hip hop tem suas raízes em grupos afro-americanos, englobando não apenas a música, mas também os esportes — como basquete — as danças, o grafite e a moda de seus adeptos. É possível encarar, portanto, o rap como uma consequência do hip hop, pois foi um meio capaz de unir a musicalidade e a poesia desse grupo em ascensão nos subúrbios de Nova York.

No Brasil, o rap surge no final dos anos 80, em São Paulo, onde grupos periféricos se reuniam para cantar em praças e estações de metrô. Atualmente, esse é o estilo musical favorito de 69% dos jovens nas escolas públicas de São Paulo, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Jornal Estadão em colégios da capital paulista.

Aos 20 anos, a artista Vitória Kirch, mulher negra nascida em Veranópolis, cidade da Serra Gaúcha, diz que a música foi um caminho natural para ela. “Quando eu comecei a estudar as questões raciais comecei a me interessar pelo rap, por toda a questão de vivência e de luta. E foi aí que eu comecei a me identificar, porque esse gênero fazia muito mais sentido pra mim, pra minha vida, do que qualquer outro”, conta.

Na busca por si mesma, foi no rap que ela encontrou apoio. “O rap faz uma introspecção, faz você pensar em questões que parecem mínimas, mas que às vezes você só precisa solucionar elas pra si. Fala sobre religião, sobre amor, ódio, raiva, solidão. Tudo isso faz parte da gente”, explica a artista. Conhecida nas redes sociais por suas gravuras, retratos normalmente de pessoas negras, Vitória busca fazer com que outros jovens se identifiquem com sua arte.

Arte feita por Vitória Kirch | Acervo Pessoal

A artista conta que suas principais referências na cultura hip hop são Sabotage e Black Alien. Cita também um verso do rapper brasileiro Don L, na música “Aquela Fé”, “Minha alma é livre e eu não me comporto”.

Vitória relaciona o rap com a liberdade e acredita que ele tem um poder social. “Fala sobre vidas reais e situações reais que quase ninguém pensaria em colocar numa música. Muitos jovens vivem isso e têm as suas vozes mutadas”. Ela é apenas uma entre muitos que se identificam com esse movimento. Após muito tempo, esses jovens sentem que estão sendo ouvidos e compreendidos por um grande grupo do qual fazem parte.

O papel do rap

De fato, o rap atinge grandes massas, assumindo um papel social de transformação. Todas as segundas-feiras, desde 2016, mais de 6000 pessoas se reúnem na “Batalha da Aldeia”, sediada em São Paulo, na Praça dos Estudantes, para realizar batalhas de rap, conhecidas pelo improviso e críticas sociais presentes nas rimas.

“O hip hop é uma atitude além de qualquer coisa”, André Dizéro, rapper.

André Dizéro, rapper formado em artes visuais na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), enxerga o rap e a cultura hip hop como uma ferramenta que está à disposição para fomentar essa mudança. “Alguns vão utilizar, alguns não, mas com certeza tem a capacidade de mudar vidas, transformar realidades e dar um novo sentido pra tudo.”

Quando começou a fazer rap, o músico se inspirou em artistas dos Estados Unidos e, assim, entrou para a cultura com alguns amigos, fazendo uma mistura de poesia e luta que conectava todos. A partir disso, ele chegou à conclusão de qual é, para ele, a real função de um rapper na sociedade: “ É promover paradas coletivas, tentar transformar alguma coisa. Às vezes o artista ganha uma grana legal, não tem tanto compromisso nas letras, mas está fazendo algo por trás dos palcos, isso é hip hop”. André diz que essa proposta de transformação social não está só no conteúdo das letras das músicas, mas em seu comportamento e sua visão de mundo. “O hip hop é uma atitude além de qualquer coisa, e o papel do rapper é ter essa atitude”, descreve.

Rap é compromisso

Luiza Toniolo, de 24 anos, iniciou sua descoberta sobre o rap no terceiro semestre do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). A psicóloga passou a integrar grupos em situação de vulnerabilidade, realizando oficinas com crianças e adolescentes. No rap ela encontrou uma possibilidade de dialogar com esse público e debater situações pelas quais eles estavam passando. Ela também construía histórias e poesias com seus alunos.

“O movimento hip hop é um movimento de resistência e de reexistência”, Luiza Toniolo, psicóloga.

Mais tarde, quando ela começou a fazer um estágio, conheceu um grupo de jovens que fazia “Freestyles”, um subgênero do rap caracterizado por rimas improvisadas. Assim como para Vitória, o rap foi um caminho natural: “Era um momento em que eles ocupavam um espaço, e as pessoas paravam para observar e bater palmas”. Foi assim que Luiza conheceu as batalhas de rima que, para ela, eram momentos de troca de conhecimento.

A temática passou a ser tão importante para ela, que seu Trabalho de Conclusão de Curso foi sobre a importância do rap como mediador de diálogos e de conhecimento de sentimentos que muitas vezes acabam sendo tangíveis apenas pelas rimas. Hoje, Luiza considera que a arte em geral é um instrumento facilitador no processo de formação de opiniões, sendo agregadora de massas e responsável pela estruturação e organização de saberes. “O movimento hip hop é um movimento de resistência e de reexistência, então ele traz junto essa questão do compromisso social, denuncia muitas coisas difíceis de serem tratadas na atualidade em determinados locais, em determinados grupos sociais, trazendo pro debate público assuntos que precisam ser falados pois demonstram que algo não está bem”, conclui.

Como diz Sabotage no título de uma de suas músicas, “O rap é compromisso”. Compromisso comprovado pela cultura hip hop, que provoca mudança de estruturas de pensamentos, trazendo discussões sobre temas essenciais do mundo atual. Ainda assim, há quem não queira escutar. Mas, hoje, muitos jovens carregam a energia de quem pode, em apenas uma rima, transformar realidades.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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