ECONOMIA

Por que uma federal não pode comprar da Shopee?

O processo de licitação rege todas as compras governamentais. Conheça alguns de seus modos e também a relação entre os cortes na educação com os investimentos das universidades

Lucas Zanella
Brasil à vista

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A licitação é o processo que rege todas as compras governamentais | Foto: Monstera / Pexels

Na sala de aula de uma universidade federal, o professor abre um vídeo para mostrar a seus alunos, mas a voz que sai das caixas de som é tão indecifrável que a aula precisa ser repensada na hora. Sobre o balcão de um Restaurante Universitário, no teclado numérico em que os estudantes precisam digitar seus números de matrícula, as teclas já estão gastas, fazendo com que as funcionárias tenham que colar post-its com os números sobre elas.

No site de vendas Shopee, em que várias lojas vendem seus produtos em uma espécie de camelódromo online, uma caixa de som e um teclado numérico custam pouco mais de R$ 20. Um valor baixo quando comparado aos R$ 34,82 bilhões gastos com o ensino superior em 2021, segundo dados obtidos pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) no portal Siga Brasil. Por que, então, uma federal não pode comprar da Shopee?

A licitação é o processo que rege todas as compras governamentais, para evitar desvios de verba ou privilégios. José João Maria de Azevedo, diretor do Departamento de Aquisição de Bens e Serviços (Delit) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz haver exceções, mas a lei deixa claro: “Tudo aquilo que for possível licitar, deve-se licitar.”

O mundo das licitações está em fase de transição. Desde 1993, os processos são regidos pela Lei nº 8.666, mas, em abril de 2021, o Governo aprovou a Lei nº 14.133. A nova lei já está em vigor, mas apenas substituirá a antiga em 2023. Até lá, as instituições podem optar por qual delas usar em editais de licitação.

Azevedo diz ter comparado os textos e visto poucas mudanças. “Os métodos da licitação vão continuar sendo os mesmos”, confirma. A atualização apenas une três leis: a original; a Lei nº 10.520, que criou a modalidade de pregão; e a Lei nº 12.462, do Regime Diferenciado de Contratação (RDC), criada em 2011 para ser usada nas construções da Copa e das Olimpíadas.

O caminho da licitação na UFRGS

  1. Não há licitação sem objeto a licitar. Por isso, uma unidade acadêmica precisa receber uma demanda e fazer o pedido. Ela abre um processo detalhando o que é necessário e especificando o estudo técnico, o motivo e de onde sairá o dinheiro para a compra.
  2. A demanda chega à Pró-Reitoria de Planejamento (Proplan) da universidade. Em primeiro lugar, ela analisa o pedido e vê sua conformidade com a legislação.
  3. O edital de licitação é montado de acordo com o pedido.
  4. O edital é analisado pela Procuradoria junto à universidade, que dirá, por exemplo, se a justificativa de compra é convincente e se o estudo técnico está completo.
  5. De volta à Proplan, uma divisão irá operar o pregão, que é feito eletronicamente desde 2005. A fase de lances começa. Os fornecedores entram no portal de compras do Governo Federal e inscrevem seus valores.
  6. Os pregoeiros acessam o sistema, que apenas agora vai mostrar detalhes sobre os lances dados. A proposta mais vantajosa é definida como a ganhadora.
  7. O vencedor do pregão é submetido a uma análise da sua documentação, que precisa estar em conformidade com as leis.
  8. A unidade adquire o bem e o fornecedor agora entra na fila para receber o valor que havia estipulado durante o pregão. Geralmente, não espera mais de uma semana, mas problemas de orçamento podem atrasar o pagamento em até 30 dias.
Não é cada caneta BIC que precisa ser licitada | Foto: Kelly Sikkema / Unsplash

Dito isso

Não é cada caneta BIC que precisa ser licitada. Isto é, cada caneta esferográfica em plástico, com ponta de latão, esfera de tungstênio e corpo transparente — pois as licitações impedem a especificação de marca.

Alguns materiais são comprados em grande lote para o almoxarifado. Acabados os itens, faz-se uma nova licitação. Em seu Plano Anual de Aquisições para 2022, a UFRGS estimou comprar 18.750 canetas esferográficas, como é possível calcular a partir de uma planilha disponível no site da universidade.

Ambas as leis, antiga e nova, dão margem para um processo chamado Dispensa de Licitação para itens de baixo custo. Com a atualização, o valor dessa dispensa, que era de R$ 17.600, sobe para R$ 50.000. Na UFRGS, é o número total para cada campus durante o ano letivo. Ou seja, contanto que a soma de todas as compras não ultrapasse esse montante, o edital de licitação é dispensado. Mesmo assim, cada item adquirido precisa ser orçado três vezes para comprovar a economicidade.

E o dinheiro?

Daqueles R$ 34,82 bilhões investidos no ensino superior em 2021, a maior parte foi usada em despesas obrigatórias, que são os pagamentos de funcionários ativos e aposentados.

Uma parcela menor do valor é destinada a despesas discricionárias — um sinônimo de “opcionais”. Elas são divididas entre de custeio, como contas de luz e canetas, e de capital, para investimento em obras e materiais permanentes. Quando há cortes no orçamento para a educação, essa é a categoria afetada.

Rafael Argenta Tams teve tempo para perceber as mudanças ao longo da década, pois desde 2012 atua no setor financeiro da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da UFRGS. “A questão dos cortes, realmente isso é algo que preocupa, principalmente porque a gente praticamente não tem recurso para bem de capital.” Para o assistente em administração, isso é reflexo da redução de recursos orçamentários para as universidades.

Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), em dado divulgado pelo G1, o orçamento de 2011 para as despesas discricionárias de todas as federais foi de R$ 5,6 bilhões. Corrigido pela inflação, equivale a mais de R$ 11 bilhões, enquanto o valor de 2021 foi menos que a metade, R$ 4,5 bilhões.

Fonte: Andifes/G1

O orçamento para 2023 e além

Tams e Azevedo não esperam receber maiores recursos para despesas de investimento.

“Do Governo Federal, eu não vejo que tenha uma perspectiva de ampliação desse tipo de orçamento para a universidade. Eu acho que o incentivo que está se colocando é de que, para bens de capital, a universidade busque recursos de outras fontes”, diz Tams.

O diretor do Delit concorda. “Existe já há muito tempo uma tendência para que as instituições públicas, em especial as de ensino superior, busquem alternativas para obter recursos financeiros.”

O Congresso, inclusive, tenta criar uma dessas alternativas. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 206, do deputado federal General Peternelli (União/SP), estabelece normativas para a cobrança de mensalidades em universidades públicas — 50% do preço médio das particulares da região. A PEC ainda está em tramitação.

E a lei?

O técnico em audiovisual Mauro Cesar Gonçalves Cavalheiro, quem levanta as demandas para o estúdio de vídeo da Fabico, tem uma relação direta com o processo licitatório.

“Se o Brasil já é problemático em relação a fiscalização, a questões de gasto ou mau uso e desvio de verba, sem uma lei de licitação, seria muito pior. Claro, a vida seria mais simples, mas eu acho que o mau uso de dinheiro público seria muito pior”, afirma. “Sim, é um sistema complicado e ele gera muitos obstáculos, muita burocracia, mas ele é um mal necessário.”

O bom uso do dinheiro público não pode depender da honestidade alheia. Azevedo louva o pregão eletrônico da fase de lances. Com um envelope recebido antecipadamente, seria fácil esquentar o lacre, ver o lance de uma empresa e avisar outra para dar um menor. Para ele, a informatização do processo evitou inúmeras fraudes.

Enfim

Compreender qualquer coisa relacionada ao governo é tarefa hercúlea. É um processo que varia de universidade para universidade. A licitação de outros órgãos, como um hospital, ainda pode seguir por caminhos completamente diferentes, mesmo que regida pela mesma lei.

Seja um teclado ou uma caixa de som que não funciona, há toda uma burocracia para adquirir cada item encontrado em uma universidade federal. Por se tratar de dinheiro público, eles são usados ao seu limite até serem trocados. É uma garantia de que não haverá desperdício financeiro, ainda que essa filosofia possa causar inconvenientes hora ou outra.

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