ESPORTE

Pressão desde o primeiro tempo

As barreiras na formação de um jovem jogador de futebol

Gabriel Silveira Dias
Brasil à vista

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Jovens enfrentam dificuldades antes mesmo do início do processo de se tornarem jogadores de futebol | Foto: Raw Pixel

Ser um jogador profissional de futebol é ou já foi um desejo de muitos jovens. A chance de ser reconhecido e adorado por milhões de apaixonados pelo esporte, a glória de vitórias e dos recordes quebrados ou até mesmo o prestígio e o luxo, que os grandes nomes da modalidade ostentam, são sonhos que povoam o imaginário de crianças e adolescentes de vários cantos do país. Jogar nos grandes palcos nacionais e mundiais é uma tentação, mas a realidade é bem menos glamorosa.

Segundo dados divulgados pela CBF em 2019, em parceria com a Ernest & Young, são mais de 360 mil atletas registrados na confederação, mas apenas 88 mil deles são profissionais. Desses jogadores, apenas 12% ganham mais de 5 mil reais por mês, sendo que 55% de todos os profissionais, atuando no Brasil, têm salários inferiores a mil reais. Fazer parte da elite não é tarefa fácil. Em um segmento tão disputado, colocar o sonho em prática exige sacrifícios que vão além do talento. Num contexto de poucas possibilidades, jovens de todo o Brasil lutam todos os dias para fazer parte desse grupo seleto. Quase como um funil, quanto mais próximo da meta, maior é a pressão, e ela deixa muitos atletas pelo caminho. Se quiser seguir em frente com o objetivo, o jogador precisa render desde muito cedo para não ser substituído ou descartado.

Formado em Psicologia pela UFCSPA, Heiner Heidrich juntou o seu conhecimento com a formação complementar em Análise de Desempenho Avançado no futebol para enxergar o esporte com o olhar direcionado para a condição psicológica. Segundo ele, muitos fatores influenciam na formação e na performance de um jovem atleta, com diferentes exigências e expectativas. O psicólogo explica que, na busca da profissionalização, o processo pelo qual o jovem jogador de futebol passa pode impactar na sua saúde e futuramente nos seus resultados. “Já se fala muito sobre isso no esporte, de como um contexto de competição é muito prejudicial para um atleta de alto rendimento”.

Heiner destaca que os meninos têm uma rotina de treinos muito corrida, tendo que suportar as exigências do treinador e as que eles mesmos se impõem para superar os concorrentes. Pensando mais especificamente no futebol brasileiro, ele considera que a pressão é ainda maior, pois existe também a cobrança da mídia e de pessoas que acompanham esse esporte. Heiner observa ainda que, no vôlei ou no basquete, por exemplo, a demanda não é tão grande. Isso acontece porque esses “não são mercados que envolvem tanta gente quanto o futebol”.

“Eles são forçados a ter uma vida de trabalho desde os 11, 12 anos de idade, o que não acontece com a criança média”, Heiner Heidrich, psicólogo

A pressão pode começar desde muito cedo. Diversos clubes têm sistemas próprios de captação de jogadores. As crianças podem começar a ser observadas por volta dos dez anos, uma idade em que os interesses por uma carreira ainda não estão consolidados e podem mudar drasticamente com o tempo. No entanto, é quando se começa a alimentar uma expectativa muito grande em relação ao pequeno atleta.

“Eles são forçados a ter uma vida de trabalho desde os 11, 12 anos de idade, o que não acontece com a criança média”, explica o psicólogo. Segundo ele, os adolescentes que participam de projetos de categoria de base, com o objetivo de se tornarem atletas de alto nível, vivenciam uma cobrança desde muito cedo, em alguns casos envolvendo pagamentos em dinheiro. “Dependendo da sua progressão e da situação econômica da família, esse valor sustenta a sua casa”, destaca Heiner.

Mulheres pressionadas

Se a concorrência no futebol é grande, no futebol feminino é ainda maior. Segundo a FIFA, a estimativa era de apenas 15 mil jogadoras registradas na CBF em 2019. Recheado de um preconceito histórico, o futebol feminino encontra barreiras que vão além das quatro linhas do campo. No Brasil, a modalidade vem ganhando espaço, com as divisões de base sendo o seu grande expoente. Nas categorias sub-20 e sub-17, o país é referência no desenvolvimento de atletas na América do Sul. Apesar de estar em um momento de consolidação, o futebol feminino é um movimento recente, o que gera uma pressão injusta por sua constante comparação com o masculino.

Professora da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), Mariane Pisani desenvolve pesquisas na área da Antropologia do Esporte. Com mestrado e doutorado em Antropologia Social, Pisani dedicou-se a olhar para o futebol feminino, desde as suas origens até o atual estado desse esporte. Ela explica que existe uma diferença histórica entre o desenvolvimento das modalidades masculina e feminina no Brasil. “Devemos pensar na história única que se conta sobre a origem do futebol no Brasil. Ele chega como uma modalidade das classes média e alta. O futebol se popularizou no Brasil na década de 30, junto de outros movimentos na busca por um nacionalismo”, esclarece.

Segundo a antropóloga, havia uma mobilização para construir uma identidade do que seria o Brasil daquele momento. “Em 1941, surge o decreto-lei que proibia a prática de modalidades esportivas entre mulheres, e que só foi revogado em 1979. A partir da década de 80, começam a surgir organizações e campeonatos voltados para o futebol feminino”, conta Mariane.

Por ter começado bem mais tarde, o “fut-fem” ainda sofre com a falta de representatividade e as comparações com a modalidade masculina. Aos poucos essa imagem vai sendo contornada. Com a nova apresentação de campeonatos e com as atletas mais próximas do público, o futebol entre mulheres ganhou as vitrines televisivas, atraindo mais pessoas e diminuindo a pressão de serem comparadas com um sistema já estabelecido. “É um fenômeno recente, com pouco menos de 40 anos. Já o masculino é sistematizado há quase 100 anos. A gente tende a comparar, mas é algo incomparável. A figura do homem esportista está em desenvolvimento há quase um século. Nós almejamos apenas o que podemos alcançar. O fenômeno do futebol feminino televisionado, de forma sistemática, não tem dez anos. Como o povo vai gostar do que não conhece?”, questiona a antropóloga.

Menina Olímpica

Com o objetivo de ressaltar essa representatividade no futebol, foi criada, no Ceará, a Associação Menina Olímpica. O objetivo da instituição é colocar as mulheres no papel de protagonistas do esporte, fornecendo estrutura tanto para as iniciantes quanto para aquelas que almejam voos altos.

Atletas e comissão tecnica da Associação Menina Olimpica, junto da Atleta Pepê, ex-jogadora do clube, que atualmente defende a Ferroviária-SP
Atletas e comissão técnica da Associação Menina Olímpica, junto da atleta Pepê, ex-jogadora do clube, que atualmente defende a Ferroviária-SP | Foto: Associação Menina Olímpica

Idealizada por Chagas Ferreira em 2006, a Associação é referência na formação de atletas, com 16 jogadoras que passaram pelo projeto vestindo a camisa da Seleção Brasileira. Chagas foi jogador profissional entre 1981 e 1994, atuando em equipes da elite do futebol cearense na época. Além da experiência no campo, ele é graduado em Educação Física e especialista em Educação Física Escolar. Com o conhecimento adquirido no campo e a formação acadêmica, o professor e ex-jogador sabe quais são as dificuldades que um jovem pode enfrentar.

“Nós não preparamos as meninas para serem jogadoras de alto rendimento, nós preparamos as meninas para a vida”, Chagas Ferreira, coordenador do projeto Associação Menina Olímpica

Apesar de ser também um clube competitivo, pela natureza do esporte e por já ter conquistado importantes títulos na sua história, o projeto prioriza a formação humanística das meninas. Ferreira afirma que não se pode exigir responsabilidade de uma criança de 10, 11 anos como se ela já fosse adulta. “Você primeiro educa, para depois cobrar. A responsabilidade precoce é muito perigosa. Nós não preparamos as meninas para serem jogadoras de alto rendimento, nós preparamos as meninas para a vida, para serem inseridas na sociedade com segurança”, diz Ferreira.

Sabendo da imprevisibilidade da carreira de um esportista, a Associação Menina Olímpica incentiva as garotas a seguirem inseridas no contexto educacional, independente da situação no futebol. Chagas explica que hoje metade da comissão técnica é formada por mulheres, muitas delas com passagem anterior pelo clube. O plano é que em breve a comissão seja totalmente formada por elas, posicionando as mulheres no comando da atividade. O professor relembrou uma conversa que teve com a goleira Mirian Paixão, que jogou a Copa do Mundo Feminina de 2011 pela seleção de Guiné Equatorial e também passou pelo clube: “Já disse para ela buscar formação acadêmica porque eu quero ela aqui, sendo a minha sucessora. Meu sonho é esse”.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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