O Mundo das Trevas e as Trevas no nosso Mundo.

Sobre monstros e como não nos tornarmos um deles.

Brasil In The Darkness
Brasil na escuridão
6 min readJun 28, 2020

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Por Cristian Abreu de Quevedo, CEO da IS Impérios Sagrados
& Glailson Santos, Administrador da Página Brasil in the Darkness.

No momento em que temos visto o mundo eclodir em protestos e indignação diante da ameaça a nossos direitos mais básicos, como o direito a vida, seja no caso da morte de George Floyd, um homem negro assassinado por um policial branco, no último dia 25 de maio, seja nos clamores e reivindicações pelo direito de podermos nos manter em casa e sobreviver à pandemia, aqui mesmo no Brasil, no contexto do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, perguntamos:

Qual o papel que as narrativas e a ficção, quer por meio da literatura ou do RPG, têm a cumprir neste contexto? Elas servem apenas como uma diversão escapista para evitarmos encarar, mesmo que por alguns instantes essa dura realidade, ou podem servir (ou devem) servir para algo mais?

Quando iniciamos a parceria entre a Império Sagrado e a Brasil in The Darkness para refletirmos sobre a temática LGBTQIA+ através da literatura e do RPG, não imaginávamos a importância que a discussão sobre a luta antirracista adquiria no contexto mundial e de como ela nos abriria a possibilidade de refletirmos sobre a interseccionalidade entre as diversas formas de opressão que vivenciamos na atualidade.

Para nós, que convivemos há décadas no meio “geek/nerd”, não é difícil constatar o quanto o racismo, a LGBTQfobia e o machismo rondam a cena de RPG, como um reflexo da própria sociedade na qual todos nos encontramos imersos. Por mais que poder lúdico do jogo e dos universos ficcionais literários, onde eles se inspiram, ou que são inspirados por ele, possa ultrapassar todas as barreiras e nos permitir calçar os sapatos de pessoas de outros lugares, épocas, culturas, etnias, identidades e afetos, ainda precisamos melhorar muito no trato e no respeito à diversidade entre nós mesmos, que formamos a comunidade que produz e consome essas mídias, para que possamos, não apenas tornar mais inclusiva, diversificada, acolhedora e mais ampla o público dos livros e jogos de ficção, mas promover a mudança que todos precisamos em nosso mundo.

Nota pública de solidariedade ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), divulgada pela Paradox Interactive, empresa detentora dos direitos sobre o Clássico Mundo das Trevas.

Afinal, toda a ficção se inspira, de uma forma ou de outra, na realidade, seja para questioná-la ou legitimá-la. E onde mais poderíamos buscar inspiração para mudar a realidade se não na ficção e na gama ilimitada de possibilidade que ela nos permite vislumbrar?

Este vínculo indissolúvel entre realidade e ficção, mais especificamente, sempre foi um dos principais atrativos do universo ficcional do Clássico Mundo das Trevas. Desde o primeiro momento, Vampiro: A Máscara surgiu com a proposta de abordar a figura mitológica estabelecida no imaginário coletivo mundial a partir da literatura de horror gótico, ainda no século XVIII, e conquistou grande relevância ao introduzir, na cena mundial de RPG, hegemonizada desde sempre por homens brancos e heteronormativos, uma importante presença feminina.

Muitas mulheres foram apresentadas ao RPG, a partir dos anos 90, por intermédio de Vampiro. Infelizmente o ambiente com o qual elas se depararam não foi muito acolhedor, e na maioria dos casos pode ainda não ser, mas esse passo foi fundamental para tornar a cena de RPG menos hostil às LGBTQIAs e outras minorias políticas. E não restam dúvidas de que isso foi decisivo para tornar o jogo um sucesso de público e de crítica.

Mesmo assim, o jogo, como todo o universo que ele deu origem nas mais diferentes mídias, não esteve isento de deslizes no campo da inclusão, sobretudo no que diz respeito à forma de representar outros povos e culturas fora do eixo EUA-Europa. Infelizmente, reproduzindo um censo comum, ainda bastante racista, a Camarilla, que no universo ficcional do Mundo das Trevas, costumava representar os vampiros que tentavam se agarrar à humanidade, manipula os mortais nos países mais ricos e desenvolvidos, formando uma sociedade pungente e complexa, ao passo que, as demais regiões e culturas do mundo eram representadas, de forma bastante genérica e desrespeitosa, por clãs étnico-temáticos que encarnavam a visão mais constrangedoramente estereotipada que se poderia imaginar: Ravnos não passavam de ciganos trabiqueiros; Assamitas, árabes terroristas; Tzimisces, eslavos demoníacos, Lassombra, latinos profanadores; Giovanni, mafiosos italianos; Seguidores de Set, norte-africanos que cultuam entidades obscuras; e assim por diante. Fugir de velhos estereótipos preconceituosos, aliás, parece ser um dos maiores desafios dentro de universos de ficção.

Outro exemplo emblemático, ainda no contexto de Vampiro, é o da personagem Sascha Vykos, sem dúvidas, a mais popular representação e uma personagem trans/não binária no universo do jogo, descrita como “demoníaca e sem traços de humanidade”, reforçando um velho estereótipo, onde Vilões Queer representam o mal absoluto, como se o fato de serem LGBTQIA+ fizesse parte de suas “credenciais” como os seres mais desprezíveis e alheios a qualquer senso de moralidade que se poderia imaginar. Para sermos justos, exemplos semelhantes não faltam na “Cultura Pop”: Scar (em Rei Leão), Jafar (em Alladin), Hades (em Hércules), Úrsula (em A Pequena Sereia), só para ficarmos nas animações da Disney.

Ainda assim, alguém ainda poderia dizer: “Mas são todos vilões em Vampiro!”. Sim, o Mundo das Trevas não é sobre “mocinhos” e “vilões”, e também por isso nós o amamos, porém, “Civilização x Barbárie” e “Moralidade x Imoralidade” são temas fundamentais no jogo e em todo esse universo de ficção, o que nos leva à pergunta: Quantos fãs de Vampiro são capazes de recordar de uma única personagem canônica trans que não seja descrita em linhas gerais como “demoníaca e sem traços de humanidade” no universo de WoD?

Postagem comemorativa pelo Mês do Orgulho LGBTQIA+, divulgada pela Paradox Interactive, empresa detentora dos direitos sobre o Clássico Mundo das Trevas, em suas redes sociais.

Felizmente, apesar da terrível gafe envolvendo a forma desrespeitosa como a perseguição às LGBTQIA+ na Chechênia foi abordada pelos desenvolvedores, em um suplemento da mais recente edição de Vampiro, o V5, ficamos aliviados pelo fato da empresa detentora dos direitos sobre o jogo ter atendido ao clamor dos fãs e vindo a público se desculpar, além de efetivamente retirar o conteúdo de todas as cópias impressas do livro, arcando com todos os custos envolvidos no processo, em nome do respeito aos seus consumidores.

Além disso, as mudanças que já vinham sendo propostas no cenário do jogo: ao estender a Camarilla para além o “Ocidente”, incorporando a suas fileiras os Lasombra e Banu Haquim (versão reformulada e muito mais respeitosa dos antigos Assamitas); ao dar muito mais destaque à América Latina, inclusive propondo não apenas um, mas toda uma sociedade de “Clãs nativos” com poder suficiente para desafiar os Clãs Tradicionais de origem estrangeira (os misteriosos Legados Afogados); e, mais recentemente, ao se manifestar em suas redes oficiais apoiando a luta dos negros nos EUA e o público LGBTQIA+ que consome seus produtos. Essas ações concretas indicam o compromisso do universo do Mundo das Trevas de avançar na direção correta e enchem-nos de esperança e alegria por ver, mais uma vez, este universo de jogos que todos amamos e que marcou a história do desenvolvimento de mídias narrativas, se manter relevante e consciente de seu papel como fonte de diversão de qualidade, integração entre as pessoas e reflexão sobre nossa realidade.

Como disse a própria empresa responsável pelo Mundo das Trevas em sua recente nota oficial:

“WoD sempre foi sobre explorar o monstruoso sem nós mesmos nos tornarmos monstros. E usando a nossa imaginação e criatividade para melhor entender nosso mundo e uns aos outros”.

Não precisa ser negro ou LGBTQIA+ para lutar contra o racismo, o machismo ou transfobia, basta ser humano e não se omitir diante de demonstrações machistas, racistas, ou preconceituosas de seus amigos ou colegas de jogo. Reveja as personagens e tramas em sua mesa de jogo. Fuja dos estereótipos que reforcem preconceitos. Sejamos nós, parte da mudança que todos queremos ver em nosso próprio mundo!

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