POR QUE O MUNDO DAS TREVAS?

Reflexões sobre nossa paixão pelo WOD na comemoração do aniversário da página no Dia Nacional do RPG.

Brasil In The Darkness
Brasil na escuridão
6 min readFeb 20, 2021

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A Brasil in the Darkness surgiu em 27 de fevereiro de 2018, nas vésperas do lançamento da quinta edição de Vampiro: A Máscara (V5) e após a publicação do nosso Livro da Linhagem Tlacique, em dezembro de 2017, a partir do incomodo de um grupo de fãs do Mundo das Trevas com a forma como a cultura brasileira e latino-americana vinha sendo representada em nosso universo de jogos favorito, tanto em suplementos oficiais, quanto por produtores de conteúdo já estabelecidos entre a Fandom do jogo no Brasil.

Nossos anseios por sermos representados de uma forma mais profunda, complexa, fidedigna e respeitosa foi o que nos fez agarrar a oportunidade oferecida pela própria White Wolf, através do Storytellers Vault, para buscarmos produzir e estimular a produção de conteúdo para o Mundo das Trevas com uma abordagem diferenciada, de valorização de nossa identidade e diversidade preta, indígena, LGBTQIA+, nordestina, amazônica e feminista. Anseios que podem ser expressos em três palavras: Inclusão, Representatividade e Protagonismo.

Por uma feliz coincidência, neste histórico ano de 2021, em meio ao caos da Pandemia e à ansiedade pela vacinação, nosso aniversário coincidiu com o Dia Nacional do RPG, uma grande celebração de nosso hobby em escala nacional, que possui um vínculo estreito com o Mundo das Trevas, uma vez que o evento surgiu como referência ao aniversário de Douglas Quinta Reis, um dos fundadores da Devir, a Editora responsável por produzir as edições nacionais dos jogos deste universo até o início dos anos dois mil. Nos sentimos honrados em poder comemorar nosso aniversário dentro deste grande evento, promovendo um Bate-papo com representantes do Grupo Camarilla México e Chile en Tinieblas com o tema “Perigosa, exótica e misteriosa: representação e representatividade latino-americana no Mundo das Trevas”, cujo registro em áudio você pode conferir clicando AQUI.

A América Latina sempre foi representada no Mundo das Trevas como uma região “perigosa, exótica e misteriosa”, uma descrição bastante superficial e genérica, que no contexto de seus jogos serve a qualquer outra região fora do eixo América do Norte/Europa. Consideramos essa uma visão colonial, que retrata como simplório e inferior tudo que esteja na periferia do “Ocidente Civilizado”, mas que está longe de ser um problema específico do Mundo das Trevas, na verdade é “apenas” a reprodução da perspectiva dominante em nosso mundo, o senso comum de nossa época.

Equipe Brasil in the Darkness

Diante de tais críticas, questionamentos legítimos que costumam surgir são: Por que insistir no clássico Mundo das Trevas? Por que não apostar um universo ficcional original, focado no Brasil, no lugar de um universo ficcional gringo, cheio de estereótipos e preconceitos contra nós mesmos?

Primeiro, o óbvio: Somos fãs deste universo! Entendemos que ser fã não significa necessariamente estar cego aos seus problemas e limitações. O amor não precisa ser cego, na verdade, acreditamos que o melhor é que não seja assim. E não nos contentamos com um jogo ufanista, queremos ser universais a nossa própria maneira. Afinal, quem delegou à Europa ou aos EUA o monopólio da pretensão de universalidade?

Consideramos incoerente com a própria proposta do Mundo das Trevas, um universo de ficção que se que propõe a lançar um olhar cínico, sombrio e distorcido sobre nossa realidade, se deixar limitar por uma única cultura ou perspectiva. Por isso nosso compromisso em tentar “corrigir” esse viés eurocentrado do jogo, valorizando outras perspectivas em nossos materiais, sobretudo aquelas oriundas de contribuições das diferentes culturas indígenas e afro-brasileiras, de maneira respeitosa, ouvindo e, preferencialmente, incorporando membros destas culturas em nossa equipe, nos subsidiando com muita pesquisa e buscando estarmos sempre muito conscientes de nossas próprias limitações e das generalizações que inevitavelmente nos veremos obrigados a fazer, em relação a algo tão vasto e diversificado.

Como, no fim das contas, trabalhamos com ficção e não com tratados acadêmicos, nossa preocupação é muito mais em seremos respeitosos com as representações destas culturas do que com a precisão, até porque, quando o tema é cultura sempre existem diversas perspectivas e permanente transformação.

O que amamos no Mundo das Trevas é sua proposta de um universo que oferece entretenimento combinado à possibilidade de reflexão crítica da realidade. Para quem busca apenas entretenimento, o Mundo das Trevas é uma brincadeira divertida com as criaturas que espreitam a humanidade das sombras desde tempos imemoriais, mas para quem quer ir mais fundo neste universo, tais criaturas se revelam como poderosas metáforas sobre os aspectos mais sombrios de nós mesmos e de nossa realidade.

O Mundo das Trevas é um mundo de ficção muito parecido com o nosso mundo real, só que ainda mais cínico, sombrio e desesperador. A proposta aqui é exagerar para tornar mais óbvias as contradições e os absurdos em nossa realidade. O nacionalismo ingênuo tende a ir em direção diametralmente oposta, querendo “consertar” o que há de errado no Brasil do cenário do jogo, mas isso vai contra a proposta deste universo.

O Mundo das Trevas é aquele lugar onde o individualismo e a ambição são elevados à enésima potência para dar origem a sede de sangue dos vampiros, que literalmente drenam a vida das daqueles a sua volta e os manipulam com seu ardil e truques sobrenaturais; onde a frustração e a indignação com os males do mundo e da modernidade são tão amplificados que se convertem em uma fúria assassina que ameaça nos reduzir à criaturas animalescas e trágicas fadadas a se tornarem aquilo que juraram combater; onde nosso orgulho e ousadia em questionar as convenções e os próprios limites da realidade nos tornam capazes de despertar para as infinitas possibilidades invocando a Mágika verdadeira e, talvez, sermos consumido por nossa própria arrogância; onde a nossa ânsia por nos livrar de todas as pressões e cobranças do mundo apático e opressor, com seus prazos, horários e boletos a vencer, que drenam nossos sonhos e nossa capacidade de nos deleitarmos com os prazeres da existência, para dar origem a uma realidade alternativa, caótica e feérica que se impõe sobre tudo isso, enquanto ameaça nos alienar da realidade mundana; onde nossas culpas e rancores são superdimensionados para nos transformar em fantasmas atormentados às margens do mais absoluto esquecimento.

O Brasil e a América Latina do Mundo das Trevas não devem ser a realização dos nossos sonhos e do orgulho ufanista e nacionalista ingênuo, mas, sim, uma versão ainda mais sombria e distorcida de uma realidade que ansiamos por transformar. Um lugar ainda mais caótico, violento, desigual e impiedoso que o real. Um espelho sombrio e distorcido que nos ajude a recuperar a capacidade de perceber nossas contradições, absurdos cotidianos e de nos indignar com eles. Neste ponto, a caricatura que os materiais oficiais estabelecem ao representar a região como um lugar repleto de perigos e mistérios acerta. Embora falhe em compreender quais são nossas peculiaridades em relação às demais regiões do planeta, quais são nossas questões e temas mais urgentes e relevantes para serem abordadas pelas lentes do Mundo das Trevas e em relação a como e quais aspectos sombrios de nós mesmos, como brasileiros e latino-americanos, deveríamos abordar, que demônios internos precisamos exorcizar nesta parte caótica e ensolarada do planeta.

O extermínio dos povos indígenas; o legado nefasto de séculos de escravidão; o complexo de vira-latas que se reflete em nossa baixíssima autoestima e no desprezo que costumamos nutrir sobre nossa própria cultura; nosso lugar como parte periférica da ordem imposta ao mundo contemporâneo; e a brutal desigualdade social que gera nossa própria versão de um Apartheid velado, ou nem tanto assim. Nada disso nos parece abordado apropriadamente nos jogos deste universo. E é isso que tentamos consertar.

Ninguém é obrigado a narrar suas crônicas no Brasil ou na América Latina apenas por ser brasileiro ou latino-americano. Ninguém é obrigado a seguir a proposta original do jogo em suas mesas. Não há problema algum em ambientar suas aventuras em cenários na América do Norte ou a Europa, ou em África, Ásia ou Oceania. Você sempre poderá escolher substituir o horror próprio do Mundo das Trevas pela Fantasia Urbana descompromissada que mais lhe agradar. Só acreditamos que se você, jogador nativo ou estrangeiro, deseja explorar cenários fora do padrão estabelecido pelo jogo (EUA e Europa), sem deixar de lado a proposta relevante e inovadora de seus desenvolvedores, deveria ter subsídios para fazê-lo de forma apropriada e é isso que nos esforçamos em tentar oferecer aos interessados.

Convidamos todas e todos a conhecer nosso trabalho e nos seguir em nossas redes sociais para ampliarem seus olhares sobre toda a diversidade e riqueza que, ao nosso ver, só amplia o potencial do Mundo das Trevas como fonte de diversão e reflexão. Obrigado por seguir e incentivar nosso trabalho.

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Textos, artigos e material de jogo para o universo do Mundo das Trevas de RPG de Mesa.

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Fanpage brasileira do universo clássico de RPG de Mesa, Mundo das Trevas (World of Darkness).