Sobre crossover no multiverso de World of Darkness e suas perspectivas para a Quinta Edição.

Glailson dos Santos
Brasil na escuridão
6 min readOct 25, 2021
Ilustração da HQ World of Darkness: Crimson Thaw. Arte: Julius Ohta; Cores: Addison Duke.

Com o lançamento da celebrada quinta edição de Vampiro: A Máscara (V5), que acaba de desembarcar no Brasil através da Galápagos Jogos, e a recente confirmação de que teremos pela frente novas edições de outros jogos do Mundo das Trevas clássico, como Lobisomem: O Apocalipse e Caçador: A Revanche, algumas questões sobre as necessárias mudanças para ampliar o alcance e o apelo destes jogos para um novo público têm sido alvo de discussões e preocupações por parte do fandom, com níveis variáveis de pertinência.

Algumas delas, podem não passar de preciosismos e anacronismos: como as inevitáveis polêmicas sobre tradução de termos de jogos (sempre restritas à pequeníssima parcela de fãs veteranos acostumados a consumir produtos em inglês, que obviamente não são o público alvo de edições traduzidas), ou a já superada polêmica sobre a radical reformulação da identidade visual do jogo (que obviamente busca atrair o público mais jovem, que simplesmente parece já se cansado o visual trevoso caricato dos anos 90).

Outras, porém, me parecem ainda não ter sido devidamente discutidas e evidenciadas. Neste artigo, “remando contra a maré”, me proponho a abordar a mais controversa e espinhosa de todas: a “Questão do Crossover”.

Mesmo antes do lançamento do V5, como parte do anúncio de uma nova edição, veio a declaração dos desenvolvedores de que “facilitar o crossover” seria uma das diretrizes dessa nova encarnação dos jogos desse universo. Tal declaração foi amplamente celebrada entre os fãs e apontada como mais um elemento que viria aproximar o Mundo das Trevas Clássico (World of Darkness) do seu coirmão, o universo de Crônica das Trevas (Chronicles of Darkness), o antigo “Novo Mundo das Trevas”, uma aproximação com o potencial para acirrar as contendas entre os fãs mais radicais dos dois universos.

Restrições para Crossover: Falha de Design ou uma Escolha Deliberada?

Desde sempre, a queixa sobre as dificuldades de implementar o crossover entre os diferentes jogos que compõem o Mundo das Trevas Clássico (WoD) têm sido uma constante entre os fãs. É um fato que a demanda reprimida por esse tipo de possibilidade narrativa sempre esteve presente entre os fãs e não parece ter sido aplacada pelo advento posterior dos jogos de Crônicas das Trevas (CofD), construídos desde o início com a proposta de facilitar esse tipo de abordagem. Diante desse quadro, considero apenas razoável questionar: Qual deve ser o papel do crossover no Clássico Mundo das Trevas? A dificuldade em se promover o crossover é uma falha de design ou uma escolha deliberada dos desenvolvedores? É mesmo uma boa ideia “facilitar o crossover” entre os jogos deste universo?

Primeiramente, não é meu objetivo aqui ditar como cada narrador deve conduzir suas mesas, isso cabe apenas ao seu próprio bom senso e à disposição de seus colegas jogadores, meu intuito é apenas de refletir sobre como o crossover é proposto no core de World of Darkness, partindo do pressuposto de que até mesmo para subverter “as regras” se faz conveniente conhecê-las.

O crossover entre as diferentes criaturas sobrenaturais que assolam o Mundo das Trevas sempre foi um dos pilares deste universo, nunca é demais lembrar. E aqui não estou falando de suplementos obscuros e pontuais que focam em crossover e que jamais viram a luz do dia em edições oficiais traduzidas, como os infames: The Chaos Factor; Dark Alliance: Vancouver; Blood Treachery; The Red Sign; etc. Falo, sim, de elementos canônicos presentes desde a origem de tais jogos, como o vínculo entre o Vampiros do Clã Tremere e os Magos da Casa de Hermes, entre os Fianna e as Fadas Kithain, entre os Peregrinos Silenciosos e as Aparições, entre os Oradores dos Sonhos e o Mundo Espiritual de Lobisomem, etc.

A questão, porém, é que o crossover padrão no Mundo das Trevas clássico sempre se deu, preferencialmente, entre personagens jogadores e NPCs. O que costuma ser desestimulado é o crossover entre personagens jogadores, por boas razões, como veremos a seguir.

Os jogos de World of Darkness não foram projetados como um todo unificado, embora compartilhem um sistema-base comum e partam de uma mesma premissa geral, a de explorar os monstros clássicos do horror popular como metáforas para abordar diferentes aspectos e nuances da natureza humana. De fato, não é possível falarmos em um “universo” do clássico Mundo das Trevas, mais correto seria defini-lo como um “multiverso”, onde cada jogo é seu próprio universo e cada um deles é uma espécie de “realidade alternativa” em relação aos demais, com cada tipo de criatura das trevas se alternando no protagonismo de seu próprio jogo e relegando às demais a um papel de coadjuvante. Assim, apesar de, superficialmente, de cada jogo parecer se passar em um mesmo universo, quanto mais fundo se vai em cada um deles, mais evidente ficam as discrepâncias entre eles.

É daí que surge a recomendação padrão de sempre se eleger qual o título que servirá de base para o crossover , tal escolha define o “universo nativo” da interação, ou seja, nas mãos de qual perspectiva repousará o protagonismo da narrativa. Um exemplo especialmente interessante é o das diferentes formas de se abordar as Aberrações, interseções entre vampiros e lobisomens, nos diferentes contextos de cada um destes jogos.

Enquanto na perspectiva de Vampiro uma Aberrações é descrita como uma “criatura é extremamente poderosa, implacável em suas atividades, violenta e impetuosa”. Na perspectiva dos Garou, “até mesmo o mais depravado Dançarino da Espiral Negra não está inclinado a sacrificar voluntariamente sua condição mais elevada em troca dos poderes do além túmulo”. Tais diferenças se fazem sentir não apenas em termos narrativos, mas até mesmo em termos de mecânica. Enquanto na perspectiva de Vampiro, abominações são tratadas como Vampiros com um kith suplementar de poderes natos que rivalizam com disciplinas de nível 5 ou mais em troca de uma versão um pouco mais limitante do defeito de clã Brujah; na perspectiva de Lobisomem, ser uma Abominação é abrir mão de parte significativa de status e poder. Como é possível conferir nos trechos traduzidos de suplementos que tratam do tema nos respectivos jogos, disponíveis nos links abaixo:

Abominação — A Perspectiva de Vampiro: A Máscara.

Abominação — A Perspectiva de Lobisomem: O Apocalipse.

Tais diferenças, que muitas vezes são apontadas como uma “falha de design”, me parecem apenas coerente com a proposta de explorar em profundidade a temática de cada jogo e garantir o protagonismo das criaturas nas quais cada um deles se foca. Assim, ao priorizar o crossover, em detrimento desse tipo de profundidade temática e protagonismo, o que se põe em jogo é a restrição e não a ampliação das possibilidades narrativas, na exata medida em que, ao unir todos os títulos do Mundo das Trevas clássico em um único universo, significa destruir todo um leque de possibilidades de um Multiverso proposto por essa linha de jogos em nome de uma síntese, quase sempre mais genérica e superficial e que tende ao Player versus Player, no “melhor” estilo rinha de criaturas sobrenaturais.

Cuidado com o que deseja!

Os diferentes tipos de criaturas das trevas no multiverso de World of Darkness jamais deveriam ser tratadas como meras classes de D&D, até porque para esta finalidade já existem os diferentes Clã, Tribos, Tradições, Kiths, etc. Sem falar de outras alternativas erigidas sobre tal premissa, a da necessidade de balanceamento e intercambialidade, como, aliás, já é próprio do já citado universo de Crônica das Trevas.

Em World of Darkness, contudo, cada jogo têm sua própria identidade, escopo, clima e temática, que só costumam ser devidamente exploradas, em toda a sua potencialidade, mantendo-se um bom grau de independência. Esta liberdade entre os títulos desse universo é, na minha opinião, um dos maiores acertos dessa linha de jogos, e uma das maiores fontes de riqueza do multiverso do Mundo das Trevas.

Assim, resta-nos torcer para que a anunciado intensão de “facilitar o crossover” não signifique apenas uma rendição dos desenvolvedores às pressões super-simplificadoras e formulaicas do “Deus-Mercado” ou ao clamor de fãs que, talvez, apenas não tenham refletido detidamente sobre as escolhas e razões por trás das restrições em relação ao crossover no clássico Mundo das Trevas. Afinal, como já alertava Alan Moore, uma das mais aclamadas mentes criativas de nosso tempo:

“O trabalho de um artista não é dar ao público o que o público quer. Pois, se o público soubesse o que quer, ele não seria o público e, sim, o artista. O trabalho de um artista é dar ao público o que o público precisa.”

E nós precisamos do bom e velho Mundo das Trevas. Com uma nova roupagem para se adequar a um novo tempo, sim. Afinal, “é preciso correr para se manter no mesmo lugar”, mas buscando preservar a essência que tornou este o mais amado e sombrio dos multiversos de jogos de RPG de Mesa. Agora e para sempre!

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