Mundo Trevoso

ou como todos ainda estamos aprendendo a não ser babacas

Aline Silva
Brasil na escuridão

--

Eu confesso que não sabia direito como começar esse texto quando sugeriram que eu desse meus dois centavos sobre o assunto. Inclusão é um assunto que vem sendo tratado de forma cada vez mais importante dentro da comunidade do RPG e não dá pra falar disso sem trazer pra discussão as mesas seguras e o contrato social do RPG, mas pra não me estender muito eu vou supor que todos fizeram a lição de casa e sabem do que eu tô falando, então bora lá que hoje vai ter textão.

Começando do começo

Na sua definição mais simples, Inclusão Social reúne uma série de ações e medidas que tem por objetivo o de combater a disparidade de oportunidades que uma pessoas pode ter em função de seu gênero, orientação sexual, educação, idade, necessidades especiais de qualquer natureza ou preconceitos. Ilustrando de uma forma bem simples e óbvia, é uma ação de inclusão social quando um estabelecimento dispõe de elevadores, rampas e outras adaptações que facilitem o acesso de cadeirantes ao ambiente. Ou quando uma palestra disponibiliza um intérprete de LIBRAS para que todo o público possa ter acesso ao conteúdo discutido.

O prédio adaptado para cadeirantes não significa que pessoas sem dificuldade de locomoção vão perder as escadas de acesso, ou que os ouvintes da palestra vão ter que se virar pra entender os gestos de LIBRAS. Essas ações só oferecem a oportunidade para que MAIS pessoas tenham acesso às mesmas coisas que a maioria da população tem. Me acompanhou até aqui? Ok. Seguindo.

É fácil tratar de inclusão quando estamos lidando com questões físicas e bem evidentes. Quando a gente leva a questão pro campo psico-social, o debate se intensifica porque ainda existe muita dificuldade em reconhecer certas disparidades. Ninguém questiona quando dizemos que um cadeirante não consegue subir escadas e por isso precisa de auxílio externo, mas é comum ver todos os poréns e questionamentos sendo levantados quando afirmamos que o meio RPGista (e gamer mesmo, em geral) ainda é muito hostil com mulheres e LGBTs. Por que isso acontece? Porque o nosso senso comum ainda é muito marcado por presunções levianas, simplistas e muitas vezes preconceituosas.

Senso branco, hétero e masculino

Nosso senso comum é construído a partir de várias coisas: costumes locais, tradições familiares e todo tipo de conteúdo midiático que temos acesso, de literatura à filmes. Como a maior parte dessas coisas é de autoria majoritariamente masculina, hétero e branca, nosso senso comum é construído a partir desse viés. Isso é ruim? Não necessariamente. Mas com certeza é bastante limitado.

O problema só começa mesmo quando observamos o senso comum mais atentamente e percebemos como ele trata — ou destrata — tudo que foge à norma. E por norma eu me refiro ao homem branco e hétero mediano padrão. Segura essa ideia porque ela vai caminhar juntinho com outro conceito importante: a praxis humana.

Zona de Conforto

Tinha um Austríaco muito louco aí, o Mises, que dizia que a praxis do ser humano — a lógica pela qual norteamos nossas ações — tende à busca pelo conforto. Ou seja: se uma pessoa está numa situação onde ela se sente desconfortável, sua próxima ação vai buscar reverter esse quadro da forma que for necessária.

Lembra do nosso amigo, o senso comum?

Então. Ele é a nossa zona de conforto, onde tudo é certeza e não temos dúvidas. E quando estamos jogando RPG e temos que criar uma história do nada, nosso cérebro safado e carente de referências vai logo correndo pro senso comum. A coisa é tão louca que Joseph Campbell, nos anos 50 (!!!), escreveu sobre como a humanidade tem contado a mesma história sem parar — que ele chama de monomito. Essa estrutura narrativa vem desde a antiguidade e se mantém inalterada desde então. Não vou entrar no mérito sobre sua eficiência ou não porque isso não vem ao caso, mas esse conceito é bem importante aqui porque essa estrutura é tão, mas TÃO presente na nossa vida desde muito cedo que ela invariavelmente acaba moldando a forma como nos percebemos e, obviamente, jogamos RPG.

Tudo isso pra dizer que quando criamos uma personagem feminina que é o estereótipo da mulher louca e histérica, não estamos necessariamente afirmando que realmente acreditamos que toda mulher é louca e histérica. Na realidade, a primeira coisa que isso diz sobre nós é que precisamos de mais referências e referências mais diversas sobre personagens mulheres, pra alimentar nosso cérebro. E isso vale para todos os tipos de representação que temos na sociedade, posto que o mundo é feito de muito mais que apenas homens brancos e heterossexuais.

Tá, mas e o RPG?

Juro que eu não esqueci disso aqui, mas eu precisava dessa digressão toda pra tratar sobre como o (antigo) Mundo das Trevas foi um dos cenários de RPG mais progressistas em seu tempo e o senso comum dos jogadores simplesmente engoliu uma parte considerável disso. O que é perfeitamente entendível considerando a cacetada de material publicado, informações desencontradas entre volumes e cenários além do número absurdo de autores envolvidos com o projeto, mas não justifica em nada a praxis dos narradores e jogadores que usam o cenário pra fundamentar seus próprios preconceitos.

É a fábula do jogador de D&D que defende seu direito de narrar cenas de estupro em nome da acuidade histórica quando na verdade o jogo não tem a menor intenção de ser um paralelo verossímil da realidade.

Que atire a primeira pedra quem nunca ouviu de outro jogador ou narrador de World of Darkness que o cenário é violento e bruto e ruim e por isso ele tem o direito de ser violento e bruto e ruim com as outras pessoas.

Exceto que não tem porra de direito nenhum.

Mundo das Trevas, mas pra quem?

Sim, o tom de jogo do Mundo das Trevas é pesado. Ele conta sim a história sobre como o heroísmo é engolido pelo mal e os bons morrem cedo demais, com a única esperança de serem um exemplo positivo pra próxima geração que vai aparecer levando a mesma bandeira. Ele aborda questões morais e sociais bastante modernas para RPG — ainda que hoje em dia sejam datadas — mas em momento algum o cenário dá licença para que o jogador aja como o monstro que ele jurou combater.

O cenário é uma denúncia contra os males do mundo, não um estímulo para perpetuá-los, principalmente com a sua mesa.

E é realmente complexo dosar isso dentro de Mundo das Trevas, particularmente porque ele é muito bom em se afastar da máxima do RPG que é a de ser um jogo coletivo. Quando os livros básicos de cada um dos jogos ressalta os pontos de discordância entre cada clã, tribo, tradição e kith, ele acaba estimulando os jogadores a carregarem isso como a parte mais importante de cada jogo, criando um sem número de intrigas e discordâncias que, no fundo, não tem nenhum motivo lógico pra acontecer.

Eu nunca vou esquecer quando, num EIRPG em São Paulo, eu estava jogando uma mesa de Vampiro — A Máscara e uma outra jogadora (que era uma completa estranha) decidiu que sua personagem iria matar a minha. A aventura consistia num one shot onde todos deveriam colaborar entre si numa espécie de labirinto para encontrar um artefato relacionado à Cain e essa jogadora transformou a mesa numa espécie de battle royale, eliminando um jogador após o outro das formas mais absurdas, só porque ela queria. Ainda me lembro, em detalhes, da forma como a jogadora interpretou sua Ravnos dançando pela cena e “sem querer” esbarrando na minha vampira, fazendo-a cair numa das armadilhas do labirinto: um poço com um tipo de ácido. Eu me lembro de ficar chocada, porque essa ação foi totalmente gratuita — nossas personagens não tinham interagido em nada na mesa, portanto não tinham nenhum tipo de desavença — e de ficar ainda mais chocada quando o narrador se omitiu de qualquer intervenção para impedir o fato, sob a prerrogativa de se permanecer neutro. Tinha me preparado para jogar uma tarde inteira, mas acabei saindo da mesa depois de 15 minutos de jogo.

E daí você mistura isso com o senso comum e pronto: é a receita certa para criar muitas e muitas mesas de RPG extremamente tóxicas.

Na época em que o Mundo das Trevas foi lançado, entre 1991 e 2004, o debate sobre o que era o RPG e mesas seguras ainda estava bem longe de começar. Mesmo hoje, embora haja sim muitos avanços sobre o tema, existem RPGistas que não veem isso como uma discussão necessária ou relevante. Foi só ano passado, durante o lançamento da quinta edição de Vampiro, que White Wolf & Paradox pareceram perceber como o material do jogo poderia causar situações desconfortáveis em mesas e decidiram lançar um suplemento com formas de lidar com esses problemas— mas ainda separado do livro do básico.

Por isso, é necessário que o bom senso e o respeito aos outros participantes da mesa seja uma regra de ouro universal. Se você tem dúvidas sobre como aplicar isso de forma prática em seu grupo de jogo, existe muito material rico na internet que pode ajudar com isso (vou deixar alguns links no fim do texto).

Leia, converse com seu narrador/jogadores/companheiros de mesa.

Deixe bem claro quais coisas você não gostaria de ver explorado num jogo de horror pessoal, quando houver algum gatilho. Lembre-se: no final do dia, RPG ainda é só um jogo. Sua saúde mental e seu conforto (e o dos outros participantes da mesa) é muito mais valioso do que 6h de uma narrativa supostamente hardcore.

  • Contrato Social — trazendo bom senso pra mesa
  • Sangramento — quando você sente as emoções do seu personagem como sendo as suas

--

--