Leobaldo Prado
5 min readApr 13, 2015

Prólogo:

Nos meus anos oitenta havia dois tipos de meninos de 10 anos: os que faziam gols e os que colecionavam quadrinhos. (Acho que hoje as categorias são outras, os que gravam tutoriais de videogame e os que assistem a eles…).

Eu queria ser Zico ou Platini, mas minhas pernas não. Logo entendi que ignorar as leis da física Newtoniana seria burrice, então comecei a ler gibis. Em pouco tempo minhas pernas já estavam bastante ocupadas, percorrendo sebos e bancas da cidade em busca de finais interrompidos pela ausência de uma certa edição, descobrindo novas ‘sagas’, novas revistas e personagens, enfim:

cumprindo o roteiro ingênuo de quem imagina que o mundo se resume a planos sequenciais cheios de cores porcamente impressas em papel jornal, heróis e vilões, alienígenas e codinomes constrangedores (Mulher-maravilha? Capitão América? sério??).

É 2015 agora, e não leio mais quadrinhos. Ocasionalmente, alguma coisa me interessa, mas quase tudo tornou-se pretensioso e supostamente realista, e quando você tenta tornar um gibi ‘realista’, está a dois centímetros da idiotia plena. Basta acrescentar que poucos criadores conseguem bons resultados.

Por outro lado, nem tudo está perdido! Na verdade, esta é uma era feliz para ex-leitores, já que a TV resolveu transformar quadrinhos em novelas, o que nos leva à Netflix e à primeira temporada de “Demolidor”. Eis uma forma simples de descrever a série em 13 capítulos:

Matthew Murdock é um advogado cego que ouve batimentos cardíacos sem estetoscópio e é capaz de saber se você comeu cebolas no almoço — da semana retrasada. É um pouco mais complexo que isso, claro, mas esse coitado vive num mundo em que o mau hálito é como o sertanejo pop: está em todos os lugares e não adianta fechar a janela.

Uma série policial despretensiosa e cativante.

Nova Iorque, crimes e viciados por todo lado, bairros decadentes, corrupção, desigualdade, violência doméstica, corporações inescrupulosas… Não há nada de novo aqui, nada que você não tenha visto em uma centena de outras séries policiais. Por que ver, então? É que graças ao desempenho de ótimos atores (alguns excelentes), ‘Demolidor’ vale a maior parte de seus 689 minutos.

Paradoxalmente, as exceções (quase decepcionantes) ficam por conta das cenas em que o protagonista veste seu uniforme, para tristeza dos adultos que passaram muitas horas de sua infância virando páginas em papel jornal.

A tecnologia ainda não evoluiu a ponto de fazer com que um ser humano vestido de capeta não pareça ridículo. Aliás, é por isso mesmo que nunca haverá heróis de verdade saltando prédios, nem em 2059. O problema não são os super poderes, esses a ciência consegue fácil, fácil. Mas cadê a coragem de usar uma fantasia colante? Não dá, amigos! Um Clovis Bornay musculoso e atlético ainda será, irrevogavelmente, um Clovis Bornay...

Voltando ao ‘Demolidor’, o grande mérito da produção da Netlix/Marvel é colocar as pessoas certas nos papéis certos. E dar tempo para que desenvolvam suas personalidades, exponham suas motivações e cativem os espectadores. Todas as escolhas são acertadas, quando se trata dos atores que vivem o elenco principal.

Demolidor: Charlie Cox nos oferece um Matt Murdock fragilizado, mas resoluto. Ele sabe que a parte do “fui-atingido-por-um-tambor-de-lixo-tóxico-direto-nos olhos” é embaraçosa e deve ser deixada de lado o mais rápido possível, em favor daquilo que torna a personagem crível: sua raiva, seus princípios, sua determinação e suas falhas.

Wilson Fisk — futuro ‘rei’ do crime: se eu fosse a Marvel, assinaria um pré-contrato com Vincent D’onofrio agora mesmo para mais 05 temporadas, três longas, duas séries derivadas e talvez um musical. Muito provavelmente isso já foi feito. O homem é perfeito e faz você se esquecer, por alguns episódios, que está diante de um psicopata capaz de fazer Hanibal Lecter parecer um católico praticante, quem sabe um coroinha. Humanizar um animal feroz é tarefa para poucos, se não estamos falando da Disney, e D’onofrio faz isso sem caretas, maquiagem ou cabelo. Um mestre.

Foggy Nelson: Elden Henson é o “Robin” ideal: não usa uma cueca verde com escamas, não faz perguntas idiotas e não diz “santa criminalidade!” a cada cinco minutos. Ele é divertido, inteligente, coração mole e meio pateta. Aquele amigo e parceiro a quem você contaria tudo, exceto o fato de ser um ninja que detecta diferenças sutis na pressão atmosférica do ambiente.

Karen Page: Deborah Ann Woll é uma atriz esperta e entrega aquilo com que muitos leitores das HQs de Frank Miller sonharam: uma Karen Page linda, esquisita e adorável, com talento único para envolver-se em eventos trágicos. Sua participação deixa os fãs mais antigos torcendo para que algumas profecias não se realizem… Ou sim, dependendo do seu grau de crueldade.

Ben Urich: Vondie Curtis Hall interpreta o últimos dos grandes repórteres, perdido num tempo em que as boas histórias já não importam — e nem vendem mais. Tudo que resta a Ben Urich é seu faro profissional, capaz de rivalizar com o do Demolidor, é verdade, mas será o bastante para fazer a diferença? Isso você vai descobrir depois de assistir à série, e só dá pra adiantar que Curtis Hall é um vencedor, qualquer que seja o resultado.

Não deixe o que eu disse sobre o uniforme te desencorajar. Talvez seja um problema para a próxima temporada, mas na primeira esse é um mal menor… O que importa é que a série tem ritmo e mostra que os produtores não têm a ilusão de revolucionar nada, só querem oferecer entretenimento e escapismo honestos.

Afinal, ninguém consegue viver só de Kant, cinema autoral e Game of Thrones, certo? Dê uma chance ao Demolidor.

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Written by Leobaldo Prado

Jornalista, locutor / narrador. Produtor e apresentador do podcast de literatura ‘Verso da Prosa’

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