Então você tira fotos? Foda-se, você não é especial

Um texto sobre fotografias desbotadas e câmeras caras

Blog do Valter
Published in
6 min readOct 22, 2015

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Hoje tenho apenas 2 fotos de quando era bebê.

Uma foto preto e branco carcomida de mofo e outra que minha tia achou no meio de uns documentos velhos e digitalizou. Se somar tudo o que tenho de fotografias, minha vida é um grande buraco negro de 1981 até meados de 2000, não mais que 30 fotos. Em compensação, uma de minhas viagens rendeu cerca de 800 fotos só com o celular e mais umas 400 com a máquina digital.

1200 fotos em 25 dias.

48 fotos por dia.

2 fotos por hora.

Sempre gostei de fotografar, tanto que em 2012 gastei uma pequena fortuna com uma Nikon D3200. Aprendi o bê-a-bá, li livros, fiz workshops, visitei exposições, dei até oficinas (não tanto somente fotografia, mas patrimônio cultural e imagético).

Comprei tripé, lente (não me aventurei pelas lentes astronomicamente caras pois não sou rico ou doido), bolsa especial, memória extra, bateria. Depois fui roubado. Câmera, lente, bateria, foi tudo embora. Só restou o tripé, que hoje se tornou num charmosíssimo pendurador de bolsas.

Sem câmera e com um mundo de paisagens incríveis para registrar, passei a fotografar apenas com o Smartphone. Primeiro um iPhone 4s normalzinho, depois um Galaxy S5 bastante competente. Claro, a minha troca de marcas foi baseada pela potência da câmera.

Criei um Instagram, fiquei craque nos filtros (prefiro o XPro II, deixa as fotos misteriosas. Já o Kelvin, quem usa aquilo?), depois descobri o Vsco, o Pheed, o Eyeem. Subi fotos no Tumblr, depois no Ello (aquela rede que ia desbancar o Facebook dois anos trás, lembra?). Virei expert no Snapseed (como pode haver foto feia com o recurso HDR plus que deixa tudo lindo como num filme de David Lynch?), no Hipstamatic, no Afterlight. Quando o pôr-do-sol estava feio eu tirava foto dos pés. Quando eu estava de chinelos, tirava foto da mesa, da comida, do livro. Quando comecei a virar progressivamente o foco para a minha cara, parei. Que diabos eu estava fazendo?

Alguém deveria começar a pensar em criar grupos de recuperação de fotógrafos compulsivos. Um Clicadores Anônimos (ou nada anônimos). Quando olhei ao redor, vi que minha vida financeira, produtiva, emocional e social girava em torno de fotos. O primeiro susto é com gasto necessário para se brincar de fotógrafo hoje. Uma grana preta. Colocando no lápis, uns 4 paus? Você vai começar com menos, uma câmera furreca (hoje tenho uma Coolpix velha e todo mundo me olha feio), daí vai ver o colega com uma câmera maior que a sua, a soberba vai te seduzir e você vai se sentir com uma piroca de 22 cm clicando com uma Sigma APO de 70–200mm.

Se você vive de fotografia é outra coisa. Vá investir, vá ganhar dinheiro. Para o resto dos mortais é hobby, fotografia amadora, status, sei lá. Uma brincadeira cansativa, chata, que me obrigava a baixar programas pesados, gastar horas controlando ISO, exposição, cor e sombras para ganhar joinhas (no caso do Instagram coraçãozinhos). Um dinheiro e tempo que eu deveria ter investido em cursos de idioma, jantares descentes ou ido visitar o Canadá.

E quando você tenta se afastar, mais e mais cliques espocam ao seu redor; no restaurante, no bar, no show, na reunião de família, no museu. O Louvre nada mais é que a Cracolândia da fotografia amadora. Gente que vai até a Europa pra tirar fotos. Foto da comida, do gato (gatos e fotografia deveriam ser tema de tese), do mato, das pedras do chão. Vi uma turista chinesa tirando fotos do lixo em Roma. Um outro turista tirando foto do alto-falante da estação de trem. Passei de Buenos Aires até o Uruguai num barco com uma família que tirava foto de tudo, da cerveja, do sorvete, do colete salva-vidas. Na Capela Sistina tem um regimento de guardas roucos de tanto gritar:

NO PHOTOS PLEASE! NO PHOTOS P L E A S E . . . — O Papa não paga tão bem assim, não pode ser.

Você volta pra casa, você tenta ser normal, mas te marcam numa foto, mandam uma foto engraçada (de gatos) pra você curtir. Tenho amigos que tiram fotos diárias do gato. Truffaut hoje miou diferente, Truffaut em cima do livro do John Green… (sim, o gato se chama Truffaut e já deve ter sido fotografado mais do que todos os atores da Nouvelle Vague — se você é dono do Truffaut fique sabendo que eu te deletei do feed, azar). Outras pessoas (olha eu perdendo mais um amigo) postam religiosamente a foto do look do dia. Nem a Scarlett Johansson posta o look do dia! — postaram por ela, deu aquele rebu danado, lembram? — Eu olho e penso: amiga, pare. E uma vez fotógrafo amador sempre fotógrafo amador. Tirando muitas fotos? — Me perguntam vez ou outra. Não. Tô tentando viver, respondo.

Tempos antigos

Quando eu era pequeno (olha o papo de gente velha), a gente tirava foto com muito pesar. Era caro, demorava pra revelar, estragava.

Passava um moço na escola que tirava foto dos alunos formandos. Boina, mapa do Brasil ao fundo, bandeira do Brasil sobre a mesa, coluna reta, sorriso forçado — estoura o flash! Depois chegava a foto pronta, dentro de uma moldura de glomerado (um tipo de MDF que se desfazia e sujava a sala toda). As mães reclamavam do preço, um absurdo, mas quem ia deixar a foto dos pimpolhos ir pro lixo? — O moço dizia que jogava as fotos não compradas fora, deve ter tido uma morte horrível esse homem!

Lembro-me das Polaroids, dos ambulantes que ofereciam foto do casal na mesa do bar (calça no umbigo, mullet, A-ha tocando ao fundo). Foto tirada, várias sacudidas, mágica! E as fotos de casamento? Nenhum pudor com o brinde de cidra com braços entrelaçados, convidados posando tensos como que diante do pelotão de fuzilamento. As fotos colorizadas dos nossos avós penduradas em molduras ovais (quem é de Minas Gerais conhece bem), tão vanguardistas, prevendo os retoques atuais do Photoshop. Sem rugas, sem machas, sem cabelos brancos.

Com o tempo perdemos o medo do flash, nos deixamos registrar nas mais absurdas situações, acreditando que seremos eternizados, preservados, compreendidos, melhorados. É bem mais que banalização da fotografia, é a banalização de nós mesmos. Banalização da comida, do passeio, do amigo ao seu lado, do momento que não tem volta. Nos tornamos numa espécie de crianças que eternamente vão se sentar no colo do Papai Noel de shopping só pra registrar o espírito do Natal. A pessoa desmiolada que tira foto na frente do Rodin sem ver o Rodin, na frente do mar sem ver o mar, na frente de si sem ver a si.

Cada um dedica seus cifrões e tempo no que bem entender. Que tem disposição, amor, gosto — o que for — para fotografia, que seja, que vá ser feliz e alimentar seu ego com pixels. Do outro lado da mesa tem gente querendo comer a comida que tá esfriando, enquanto o filho da puta clica os pratos. No meio da galeria tem gente querendo apreciar o quadro e você tá na frente fazendo boca-de-pato. Tem gente querendo sentar na grama e ver o sol tingir o céu de roxo-salmão-fúcsia-furta-cor sem sacar o celular. Tem gente que tá aqui, agora, gente como você que leu esse texto sem fotos sem se coçar de incômodo — assim espero.

Não vou dizer que abandonei o vício. Tem horas que passo diante de uma cena tão bonita… um menino com um balão, uma flor singela na relva. Mas passa. Ainda preciso tirar fotos de viagem, atualizar o meu perfil com minhas novas rugas, registrar aquele jantar maneiro com os colegas. Eu preciso lembrar. O que eu não preciso é lembrar de tudo.

Tem dias em que eu gosto de pensar no ladrão que roubou minha máquina semi-profissional. Gosto de pensar nele como um rapaz de pouco caráter e uma certa sensibilidade artística. Quem sabe ele não se tornou um grande fotógrafo? Quem sabe ele não sofre das dores modernas, não passou a ler Zygmunt Bauman, quem sabe não esteja sofrendo agora diante do Adobe Lightroom, puxando curvas de luminescência, buscando o ISO certo para a noite de luar, a lente macro para a flor, a luz ideal para o rosto sardento? Eu penso nisso e rio. Gargalho. Chupa. Chupa!

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