Os efeitos da mora no pagamento do prêmio de seguro

Artigo de João Marcelo dos Santos e Bárbara Bassani de Souza

Demarest Advogados
Brazilian Legal Articles
6 min readDec 16, 2013

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Os tribunais brasileiros, seguindo o entendimento do Superior Tribunal de
Justiça, têm determinado o pagamento da indenização securitária, mesmo diante do não pagamento do prêmio por parte do segurado. Referido entendimento, entretanto, não está de acordo com o que determina o Código Civil no tocante ao instituto da mora e com a estrutura do contrato de seguro.

As decisões proferidas pelos tribunais dizem respeito à prévia notificação do segurado para a suspensão da cobertura securitária contratada enquanto não houver a purgação da mora. Os contratos de seguro, de forma geral, estabelecem que tal acordo será extinto se o segurado não purgar a mora em noventa dias. Assim, pode-se afirmar que, antes desse período de tempo,
se está diante da hipótese de mora/inadimplemento relativo. Findo o prazo dado ao segurado para pagamento em atraso, o inadimplemento absoluto restará caracterizado.

Na hipótese de inadimplemento absoluto, em geral, não há grandes discussões, ou pelo menos não deveria haver, já que o contrato é extinto, resolvendo-se as obrigações/direitos de ambas as partes. Situação diversa, entretanto, se dá quando ocorre a mora do segurado, isto é, o inadimplemento relativo do contrato, pois há mora passível de purgação.

Os tribunais brasileiros, assim, têm determinado grande parte das vezes o pagamento da indenização, mesmo diante da mora do segurado, salvo se esse segurado tiver sido interpelado da mora. Os nossos tribunais não têm levado em conta que a interpelação do segurado é desnecessária, por se tratar o caso de mora ex re, uma vez que o artigo 397 do Código Civil estabelece que tal tipo de mora é constituído de pleno direito, sendo o pagamento do prêmio uma obrigação positiva, líquida, com data determinada. Os tribunais, no entanto, têm justificado a necessidade da interpelação do segurado sem distinguir a mora ex re da mora ex persona, algo claramente em desencontro do ordenamento jurídico.

Além dessa justificativa, os tribunais têm usado a Teoria do Adimplemento Substancial — criada pela doutrina e aplicada na jurisprudência com base no princípio da boa-fé objetiva, mas sem previsão expressa na legislação brasileira — para fazer valer o direito do segurado ao pagamento da indenização.

Em verdade, a Teoria do Adimplemento Substancial relativiza o inadimplemento absoluto, de forma a não torná-lo hipótese de extinção do contrato quando verificado o adimplemento da maior parte das obrigações previstas nesse contrato. Essa teoria, contudo, não afasta os efeitos que a mora possa ter tido, inclusive no que se refere especificamente ao contrato de seguro. Poderia até ser aplicada ao caso de cancelamento do contrato (não à suspensão de cobertura), mas, como regra geral, isso não faria sentido do ponto de vista prático (e essa não é a hipótese aqui discutida).

Na realidade, a falta do pagamento do prêmio enquanto não extintos os contratos deve ser vista simplesmente como mora, isto é, inadimplemento relativo que não pode ser confundido com o inadimplemento absoluto, este sim passível de ser relativizado pela Teoria do Adimplemento Substancial. Estando em mora o segurado, a suspensão do contrato é certa e independe de notificação/interpelação, por se tratar de mora ex re, isto é, constituída de pleno direito. Independente da forma como o prêmio é pago, seja mensal ou fracionada, a mora continua sendo do tipo ex re, isto é, as prestações são líquidas e a data do pagamento é conhecida pelo segurado, inexistindo qualquer razão para que seja exigida sua interpelação à luz do Código Civil.

Nesse sentido, as decisões dos tribunais estão em desacordo com as normas que regem o contrato de seguro. Um exemplo é supor que todos os segurados tivessem disposição para descumprir o contrato de seguro e, no caso de sinistro, ajuizar ações judiciais, com o entendimento de que a interpelação notificando a mora é necessária para suspender a cobertura (o que felizmente ainda não é verdade, a despeito do incentivo a isso dado pelas decisões judiciais antes citadas). Poderemos aqui chegar a situações insustentáveis. Imagine-se, por exemplo, que todos os segurados passassem a pagar somente a primeira parcela do prêmio e aguardassem o eventual sinistro. As seguradoras obviamente não disporiam de tempo hábil para notificar todos os segurados. Desta forma, teriam que pagar os sinistros que ocorressem ao menos até que conseguissem notificar todos os segurados (sabemos que muitos possivelmente não seriam encontrados de imediato), sem ter, para tanto, recebido qualquer prêmio.

Além disso, dizer que o fato de os prêmios devidos pelos segurados que viessem sofrer perdas resolve a questão não é o adequado: um, porque a ideia do seguro é arrecadar de todos para pagar poucos. O custo do prêmio de cada segurado individual sempre será muito pequeno se comparado ao valor do seu potencial sinistro, justamente porque se espera que os sinistros ocorram em poucos casos. Dois, porque aqueles que não sofrerem sinistro não pagarão o prêmio, mesmo fora do prazo de vencimento.

Chega-se assim a uma situação inaceitável: os segurados somente terão que pagar prêmios se tiverem sinistros (nesse caso, note-se: na prática não terão que pagar, somente terão sua indenização reduzida) ou se forem para tanto notificados. Notificado, o segurado ainda assim não será obrigado a pagar o prêmio, podendo simplesmente desistir da cobertura, até porque, numa inversão que agride a lógica e o bom senso, não teve, até aquele momento, sinistro. Assim, o segurado pensaria, devidamente coberto pelo entendimento do Poder Judiciário, até o momento da notificação: se não sofri perdas, por que pagar o prêmio?

A seguradora, nos termos da legislação, sequer poderia executar o direito a receber o prêmio vencido, pois a princípio teria suspendido a cobertura (suspensão esta que não seria de qualquer forma respeitada pelo Poder Judiciário, se o segurado ajuizasse uma ação no caso de sinistro cuja indenização tivesse sido negada).

Em outras palavras, os segurados cumpridores de suas obrigações, em homenagem não somente às suas próprias perdas, mas ao mutualismo imposto pela lei, e os poucos que tiverem sinistros pagarão prêmios mais caros para custear aqueles que apostam na estratégia de postergar ou simplesmente deixar de pagar os prêmios. Tudo porque o principal incentivo para o segurado manter-se pontual no pagamento dos prêmios — a existência de cobertura — deixou de existir.

Naturalmente, esse ciclo seria uma espécie de pirâmide, que somente se sustentaria até que a seguradora chegasse à insolvência, com os segurados restantes que pagaram o prêmio ficando sem prêmio e sem cobertura.

Aliás, o Enunciado 371, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, realizada em Brasília e promovida pelo Conselho da Justiça Federal, diz que: “A mora do segurado, sendo de escassa importância, não autoriza a resolução do contrato, por atentar ao princípio da boa-fé objetiva”. Pergunta-se, de escassa importância para quem?

A situação da pirâmide descrita anteriormente, portanto, seria dificilmente alcançável. Por quê? Porque o Poder Judiciário somente garantiria essa benesse aos segurados que ajuizassem ações e/ou porque os prêmios seriam aumentados e toda a massa pagante suportaria os custos dos inadimplentes. Não parece que isso sirva minimamente como ponto final a esse assunto, como se coubesse ao Poder Judiciário, inclusive intervindo em dinâmicas econômicas complexas, decidir, entre as obrigações estabelecidas pelo legislador e as sistemáticas instituídas pelos contratos, aquelas que têm importância.

Por fim, não parece sequer necessário discutir a eventual tese de que o segurado, por ser a parte mais fraca, pode ser protegido mesmo em sua eventual falta de capacidade de pagar os prêmios do seguro. Além de isso evidentemente ser um enorme incentivo para a inadimplência e uma demonstração de descompromisso com os efeitos coletivos das decisões judiciais, mais frágil do que os segurados que ajuizaram ações são aqueles outros que simplesmente serão vítimas do entendimento do Poder Judiciário, sem poderem se defender. Além disso, esses segurados inadimplentes, na prática, usarão o dinheiro dos outros para receber indenizações e também obter o financiamento do seu prêmio de seguro.

A solução, na vida econômica (que é realidade imposta ao operador do direito, independentemente de formalismos e discussões conceituais), sempre surge. No caso, se não for pela eliminação de despesas injustas e ilegais antes comentadas, será pelo aumento do valor do prêmio para todos, o qual obviamente só será suportado na prática por aqueles que cumprem suas obrigações de pagar prêmios pontualmente. Resta perguntar a quem paga, e pagará mais caro, se isso é de escassa importância.

Nesse contexto, a busca por uma decisão que pareça justa e principalmente confortável, considerado tão somente o custo que o caso individual tem para a seguradora, pode resultar em real injustiça, quando levados em conta os efeitos sociais dessa decisão. Infelizmente, o Poder Judiciário tem ignorado os impactos sociais de suas decisões, especialmente quando se trata de seguro, matéria tão incompreendida. No caso da mora e dos seus efeitos, as decisões que têm sido proferidas são um forte e indesejável incentivo ao descompromisso do segurado com o cumprimento da obrigação de pagar o prêmio. Os custos disso são e serão suportados por todos aqueles que pagam os prêmios, se não mudarmos essa realidade.

João Marcelo dos Santos

Sócio do Demarest Advogados. Mestre em direito Tributário pela Universidade Candido Mendes e Presidente do Conselho de Acadêmicos da Academia nacional de Seguros e Previdência — ANSP.
jmsantos@demarest.com.br

Bárbara Bassani de Souza

Advogada. Mestranda em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP).
bbassani@demarest.com.br

Publicado na revista Cadernos de Seguro, dezembro de 2013 http://bit.ly/1di2Epv

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