No interior do Nordeste tem gente fazendo commit

Soraya Roberta
Brazilians in Tech
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7 min readSep 5, 2022

Escrevo este texto, em meu notebook, sentada em uma cadeira na área da minha casa, localizada no centro da cidade de Jardim do Seridó, RN. Ao meu lado, encontram-se inúmeras espécies de plantas que minha mãe cultiva. Esse cultivo aumentou depois da pandemia. No meu tocador de músicas tem uma lista de espera de Harry Styles, Marina Senna, Letrux, Duda Beat, Martins e canções de Vanessa da Mata. Na cozinha, mainha faz uma video-chamada pelo whatsapp com a irmã, que está fazendo uma faxina do outro lado da cidade, com o objetivo de orientá-la como ela deve aguar as plantas quando ela vier comigo para Natal passar uma semana. Meu pai acende seu cigarro e se balança na rede na sala de casa para recitar alguns versos que ele mesmo criou. Por essas horas, três da tarde, ele já tomou a segunda dose do remédio para diminuir os efeitos da esquizofrenia em seu cotidiano, e segue, na medida do possível, tranquilo.

Espaço da minha casa em que costumo me sentar para programar

Quando o Sol vai esfriando, lá depois das cinco horas da tarde, algumas vizinhas chegam pela calçada daqui de casa e se juntam para conversar, sempre mediadas por um smartphone. As atualidades da cidade e do mundo, agora, elas possuem na palma da mão “com print e tudo”. Uma delas, que conhece minha mãe desde a infância, se alegra ao contar que a neta vai estudar o ensino médio no colégio técnico, na cidade ao lado, e cursar o técnico em Informática, o mesmo que fiz. “Eita, vai aprender a mexer com os algoritmos igual a Soraya”, diz uma outra vizinha.

Pôr do Sol em um dos pontos da minha cidade

As histórias únicas que contam sobre o Nordeste

Percebo que já está anoitecendo e resolvo procurar alguma série para assistir em um streaming que assino. Vejo que tem algo novo que estreou sobre o Nordeste, mas quando me deparo com a sua descrição e o teaser, percebo que ambos refletem sempre a mesma narrativa : a saga do vaqueiro, a mocinha, a seca destruindo tudo, o povo vestindo roupa de época, um personagem mostrando o facão e lutando contra animais selvagens e eu tentando entender que Nordeste é esse. É bonito ver toda essa descrição porque a paisagem é a nossa, a caatinga, os personagens se parecem, em certa medida, com pessoas que conhecemos, mas ao mesmo tempo é doloroso porque parece que o Nordeste é SÓ isso. É o perigo da história única que Chimamanda conta. Parece que andamos vestidos daquela forma e que tudo ligado a tecnologia, ainda, estamos descobrindo. Isso não é verdade.

Esses dias, lendo o livro do Professor Durval Muniz “A invenção do Nordeste e outras artes” percebi que essa ideia de Nordeste foi sendo construída ao longo da história, seja por narrativas comparativas publicadas em jornais do país ou pelos recortes geopolíticos desenhados por Governos. Tudo isso nos coloca em uma seara de confronto entre dois brasis : o do Norte e o do Sul. Mas qual a relação dessas discussões com a Computação e os commits que estamos fazendo ? Assim como ao longo dos anos foram se construindo vários esteriótipos de carater naturalista sobre o Nordeste, também foram se fortalecendo, em certa medida, uma visão errônea e ecoante sobre a Computação em nossos interiores.

Outros tipos de esteriótipos

O meu município está localizado na região do Seridó Potiguar. As cidades ao redor fazem fronteira com o estado da Paraíba. Por aqui, os esteriótipos que eu tento desconstruir são outros: o de que só existe homem fazendo computação, que programar não é coisa de mulher e que é possível, mesmo sem financiamento, desenvolver um projeto que ensina algoritmos por meio de poemas nas escolas públicas da cidade. Possivelmente essa minha narrativa computacional você nunca vai saber. Aliás, talvez seja mais comum saber pela voz de algum sotaque do Sul ou do Sudeste do Brasil sobre o que é construir uma história na Computação no interior, pois quando falam de Nordeste com Computação e pessoas desenvolvendo pesquisa de ponta, o máximo que chegam é na capital ou região metropolitana.

Distância entre a minha cidade e a capital do estado, Natal

Fiz minha graduação no Curso de Bacharelado em Sistemas da Informação, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2016–2019), em um campus localizado na cidade de Caicó,RN, distante 40km da minha residência. Minha rotina de deslocamento era a seguinte: eu pegava um ônibus intermunicipal para me deslocar até a Universidade toda manhã/tarde ou quando conseguia carona com colegas de curso, dividimos o combustível. Foi bem desgastante viajar todo dia, pois o busão sempre quebrava no meio do caminho e tínhamos que esperar durante horas, às vezes, debaixo de um sol escaldante, para vir outro transporte e nos ajudar a chegar no destino final.

No meu campus, discutimos sobre ciência de dados, Inteligência artificial e como formar professores para as novas tecnologias, impulsionadas pela computação, para as futuras salas de aula da região. Em alguns laboratórios, era comum ver colegas discutindo sobre as novas features implementadas nas linguagens de programação que aprendíamos ou sobre como resolver uma integral/derivada nas temidas provas do professor de Cálculo. Nos questionávamos onde iríamos conseguir estagiar, pois isso ainda era algo inviável de ser feito de forma remota, antes da pandemia, e os estágios presenciais bem concorridos. No intervalo, eu me reunia com colegas do meu Ensino Médio Técnico que tinham decidido fazer outros cursos como Direito, História, Medicina ou Matemática e riamos dos novos memes que tinham surgido e, por vezes, engatávamos em discussões sociais juntando tudo que havíamos de melhor aprendido, até o momento, sobre nossas áreas. Terminávamos a conversa postando selfies nas redes sociais. O tempo passava e já tínhamos que voltar para nossas casas, rotinas semelhantes às minhas meus colegas viviam, pois a maioria moravam nas cidades ao redor do campus.

É possível ensinar algoritmos com poemas ?

Não foi um tempo fácil. O que me mantinha no curso eram os auxílios que a Universidade fornecia. Durante três anos minha pesquisa, o Projeto Poesia Compilada, foi financiada com o benefício que meu pai recebia do INSS por ter esquizofrenia, pois esse era a nossa principal fonte de recurso financeiro e era o que pagava meu lanche e a minha água entre uma ida a uma escola e outra para desenvolver o projeto.

Tínhamos que nos planejar muito bem, pois o salário mínimo era para tudo: pagar água, luz, gás, alimentação, o remédio do meu pai e ainda sobrar um restinho para poder eu não passar fome nas aplicações do projeto.

O Projeto Poesia Compilada surgiu nesse meio de descontrução de esteriótipo de gênero e região. É uma forma de expor que com poucos recursos e idendepente do seu interior, quando o conhecimento chega, é possível derrubar muros com a educação. Ele é fruto de uma ideia que tive no meu Ensino Médio : juntar poesia com algoritmo. No campo da pesquisa adicionamos nossos ingredientes extras : Paulo Freire e Vigotsky.

Parte da turma que eu apliquei o Projeto Poesia Compilada em uma escola pública em Jardim do Seridó em 2018

Talvez seja difícil enxergar que existe computação no interior, e principalmente, no Nordeste, porque os streamings não costumam exibir nossas realidades.

Temos tantas dificuldades, como em qualquer outro lugar do país, mas pensamos e desenvolvemos computação também. Por aqui, não temos as favelas, como a mídia descreve nos grandes centros urbanos do país, mas também temos subúrbios com fome, pessoas viciadas em drogas, matando e roubando para manter o vício, violência, tráfico, falta de saneamento básico, pessoas sem saber ler e escrever, desesperança de futuros e falta de água. Infelizmente, temos tudo isso. Mas assim como no Sul e Sudeste do Brasil, temos projetos e pessoas tentando mudar a realidade.

A computação está presente no interior do Nordeste, e assim como é difícil para um jovem pobre cursar uma faculdade na área, em outro local do Brasil, por aqui também é, com a diferença que os desafios possuem características típicas de cada região.

Os vários Nordestes em uma única variável : região

Quando eu sou questionada para descrever um perfil da pessoa que atua em computação, no cenário brasileiro, eu simplesmente não tenho resposta, pois o meu perfil é diferente de jovens da cidade ao lado, que também é Nordeste, também é Seridó, mas possui características próprias. Então, se existem inúmeros Nordestes dentro de cada região/cidade, por que ainda assim só escutamos sotaques e dores do Sul e Sudeste do Brasil quando falamos sobre Computação? Talvez porque seja mais fácil alocar esse capital humano para fazer reportagens, ou talvez porque acham que no Nordeste não tem Computação? Não temos pesquisas sendo feitas na Computação? Não temos especialistas em IA ? No Nordeste só tem seca, vaqueiro correndo atrás de gado, personagens que ilustram estereótipos e gente analfabeta ? Acho que se você chegou até aqui deve ter entendido que esse nordeste que te mostraram até hoje é um recorte roteirizado e estereotipado de mais uma região do Brasil.

E para que não restem dúvidas, sim, existe Computação no interior do Nordeste, existem pessoas mudando a vida de suas famílias com linhas de códigos e commits. O famoso “ Foi python quem me deu” tem se tornado comum nos posts de amigxs que trabalham para empresas do exterior, ganhando em moeda estrangeira, direto do seu interior, sentado área de sua casa ou desenvolvendo seu próprio negócio direto do balanço da sua rede.

Agora, compartilho a responsabilidade com você: descontrua para outras pessoas a história única da computação no Brasil e apresente o que está sendo construído nos interiores do Nordeste, também.

Soraya é doutoranda em Computação pelo CIn da UFPE na área de Inteligência Artificial. Sua área de pesquisa é discurso de ódio de cunho sexista nas redes sociais. Ela também é mestre em Inovação em Tecnologias Educacionais pela UFRN e Bacharel em Sistemas da Informação pela mesma instituição. Idealizou o Projeto Poesia Compilada em seu Ensino Médio Técnico em Informática no IFRN. Atualmente, produz o podcast @makingartwithcode e busca descontruir esteriótipos por meio da Educação com a Computação em suas redes.

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Soraya Roberta
Brazilians in Tech

Doutoranda (CIn-UFPE), idealizadora do @projetopoesiacompilada e do podcast @makingarthwithcode.