O papel do desmatamento na pandemia do novo coronavírus

Como o encontro com animais silvestres, proporcionado pelo desmatamento, pode aumentar as chances de haver novas pandemias

Cintia Freitas
Brasil Contra o Vírus
4 min readJun 11, 2020

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O planeta Terra, apesar de ser enorme, não é infinito e hoje somos mais de 7,7 bilhões de pessoas e a população continua crescendo. Onde as futuras gerações irão morar? Como aumentar a produção de alimentos e o acesso à água para tantas pessoas? A resposta a essas perguntas passa pela ocupação eficiente do espaço na Terra. Porém, quanto mais expandimos nossa presença na Terra, mais nos aproximamos da vida silvestre e entramos em contato com animais e seus patógenos. Esse encontro pode ter consequências dramáticas, como o surgimento de uma pandemia. E, sim, o novo coronavírus é fruto desse encontro entre humanos e animais silvestres e seus patógenos.

A capacidade do seres vivos de se reproduzir é potencialmente infinita. Qualquer ser vivo que tenha tudo o precisa (espaço, alimento, etc.) e nenhum empecilho (predadores, parasitas, etc.) pode crescer de forma exponencial. Essa palavra difícil quer dizer algo simples. Imagine que uma colheta tenha duas “filhotas” por ano e cada uma das “filhotas” tenham duas outras “filhotas” no ano seguinte e assim por diante. A partir daquela primeira coelha teríamos 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128 coelhas e em 23 anos mais coelhos do que humanos! Mas a vida não é tão fácil para as coelhas (e para os coelhos também). Existem predadores e doenças que controlam a população de coelhos de modo que apesar de nascerem muitos coelhos por ano, muitos morrem também. O ser humano era assim, fortemente controlado pela natureza, até que muitos fatores viraram o jogo ao nosso favor.

O primeiro favorecimento foi a descoberta do fogo; assim, sentados diante da fogueira nós estávamos protegidos de predadores, tínhamos tempo de pensar na vida (fonte de todas as grandes descobertas humanas) e tivemos a grande ideia de cozinhar nossos alimentos. A energia extra da carne cozida proporcionou a nós o combustível para o crescimento do nosso cérebro. E um cérebro grande nos tirou da posição de animais à mercê da natureza para a posição de animais modificadores da natureza. E assim, modificando a natureza pouco a pouco e inventando novas formas de resolver problemas, fomos nos reproduzindo como coelhos e nos espalhando pelo planeta.

O segundo passo importante foi a ideia incrível que nossos ancestrais tiveram de que parecia bobagem ficar andando atrás dos bichos para comer e atrás das plantas de época para coletar frutos. Para que andar e ficar exposto aos perigos da natureza, se poderíamos nos instalar em um local seguro e atrair, prender e domesticar os animais que nos serviam de alimento e transporte, ou plantar frutas e grãos? E assim, o ser humano ficou sedentário e virou agricultor. Uma das consequências da agricultura é o excedente. O que fazer com os grãos, hortaliças e frutas que as famílias e pequenas comunidades não conseguem consumir? Vender! O excedente também levou a outros problemas da humanidade: a economia e a desigualdade, mas isso é história para outro momento. E como o tempo não para, a terceira inovação humana foram as máquinas. Com a criação de ferramentas e máquinas cada vez mais potentes surgiu a indústria e com a indústria mais excedente foi gerado.

O ser humano está no auge de seu desenvolvimento tecnológico e científico e também no auge do seu mais perigoso desafio. Agricultura, pecuária, indústrias, escolas, igrejas, casas, rodovias, prédios públicos, restaurantes e shoppings, todos esses empreendimentos têm algo em comum; eles precisam de espaço. As pessoas não costumam pensar sobre isso, mas para abrir espaço para todas as atividades humanas uma coisa precisa ser feita: é preciso destruir a natureza. Isso mesmo. É preciso derrubar árvores centenárias com tratores e cordões gigantes de ferro. É preciso ‘limpar’ com motosserra todos os galhos e arbustos do caminho, queimar tudo que restar, aterrar riachos e lagos. Depois, é preciso jogar concreto em cima de tudo para que quem andar pela rua, comprar o apartamento, entrar no shopping não veja que ali um dia existiu vida além da humana.

No mercado de animais de Wuhan existem animais domésticos, como cachorros e gatos, e animais silvestres, como cobras, pequenos roedores e morcegos. Indícios fortes traçaram a rota do coronavírus de morcegos até o ser humano na China, mas poderia ser aquela paca que o seu avô comeu, ou o jacaré que foi abatido por populações ribeirinhas na Amazônia. Poderia ter sido uma nova versão do vírus da dengue, aqui no Brasil. Na verdade, o local de surgimento do vírus não importa muito. O mais importante é saber que quando o ser humano pressiona a natureza e entra em contato com animais silvestres, pode contrair doenças com as quais o seu sistema imune não sabe se defender. Existem muitos tipos de vírus que nosso corpo conhece, mas basta uma pequena modificação no DNA de um vírus para que ele mude sua capacidade de infecção, seu grau de letalidade, seu tempo de permanência no corpo para que seja criado um cenário catastrófico para o ser humano. Foi o que aconteceu com o novo coronavírus, causador da COVID-19 que já matou mais de 400 mil pessoas no mundo.

Apesar de termos nos tornarmos dominantes no planeta Terra, estamos expostos às mesmas regras que regem a natureza. Claro que precisamos morar em algum lugar e comer para sobreviver, mas para sobreviver precisamos também repensar o modo como exploramos a natureza. Precisamos repensar nosso papel de subjugadores da natureza e assumirmos um papel de protetores, de gerentes dos recursos que nos são vitais. Com respeito e, acima de tudo, informação científica, devemos manipular a natureza ao nosso favor de modo racional e consciente. Cientistas são unânimes em dizer que outras pandemias virão. Cabe a nós pensarmos na solução para um dos maiores problemas que o ser humano já enfrentou: existir sem destruir.

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Cintia Freitas
Brasil Contra o Vírus

Bióloga dedicada ao estudo da ecologia e evolução de plantas. Da periferia do Recife para o mundo. Pósdoc na UFPR. Escreve histórias infantis.