O Espírito do Natal Retrasado

Asafe Gonçalves Pereira
Brevidades
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4 min readJan 18, 2017

Fim de ano, 2015. Saí de Belo Horizonte bem no dia 25, antes mesmo do Almoço de Natal na Casa das Meninas — uma tradição que sacrifiquei com muito pesar. Fui pra rodoviária de carona com o Ismael e peguei o ônibus das 14h. O objetivo era chegar em Sampa perto das 22h, tendo dormido a viagem toda, encontrar Arthur no Jabaquara e seguir pro Rio de madrugada, mas os loucos existem pra desafiar os planos dos sãos!

a clássica ostentação

Eu já tinha aberto e lia as Memórias do Subsolo, tinha até publicado no instagram que “Dostoiévski me faria companhia até que eu pegasse no sono”… devo tê-lo ofendido com o convite, porque uma de suas personagens veio me assombrar! Eu devia ter desconfiado quando a vi cambaleando escada abaixo até a plataforma, se despedia de todos, ninguém se despedia dela, não se incomodava; entrou no ônibus como se entrasse na cozinha de casa, sem cerimônia; perguntou várias vezes ao motorista se “era esse o ônibus mesmo”. Mas eu não desconfiei.

Mal perdemos a rodoviária de vista e, do fundo, ela vem: uma garrafa de vinho já pela metade, a voz estridente de embriaguez e fúria vencia meus fones sem esforço. Aumentei o volume e segui minha leitura.

Não durei um parágrafo. Uma algazarra tomava conta do ônibus porque, parece, ela tinha nada menos que uma faca na mochila! Aham! Isso mesmo, uma faca! E ela “não tinha medo de usar não”. O motorista era seu único alvo, porque, segundo a mulher, ele estava devagar demais e ela precisava chegar logo a São Paulo. Um detalhe: estávamos a bordo de um ônibus da viação Cometa. Quem já viajou de Cometa sabe que essa mulher estava manifestamente louca. Para evitar a repetição de adjetivos como “doida” e “maluca” etc, vamos chamá-la Leidiane.

Os passageiros fizeram de tudo para acalmar Leidiane, que estava determinada a fazer peneira do condutor. Enquanto uns tentavam convencê-la de que esfaquear o motorista provavelmente não o faria mais veloz, outros tentavam outra via e demonstravam apoio à sua causa também reclamando da provável demora (com o devido cuidado de desculpar o motorista e denunciar a distância e a estrada). Argumento pra cá, tagarelice de Leidiane bêbada pra lá, o pavor deu lugar a um senso de comunidade. Percebendo que bastava ouvir as histórias de Leidiane para que ela se acalmasse, nos empenhamos à tarefa como se fôssemos todos um só terapeuta com uma longa sessão à frente. E que sessão! Não bastava ouvir, Leidiane exigia interação.

Entre as várias histórias que ouvimos (e as frequentes pausas para responder quanto tempo ainda faltava até “sumpaulo”), finalmente ouvimos o motivo de sua viagem à terra da garoa:

Leidiane tinha vindo de São Paulo a Beagá só pra passar o natal em família, na humilde. Ela chegou, tomou umas e apagou antes da meia-noite. Até aí beleza, né! Acontece que o pessoal, ao invés de seguir pelo certo e acordar Leidiane pra ceia, deixou dormir até de manhã. Ah, mas pra quê! Ela acordou louca da vida, quebrando tudo, batendo boca com a mãe por ter perdido a ceia, o frango e a cachaça. Brigaram feio. Leidiane tentando ainda ficar de boa, pediu dinheiro pra um cigarro, tá ligado, pra acalmar, mas a mãe amarrou, no caô que só tinha dinheiro a continha pra mandar Leidiane de volta. Pois Leidiane entendeu a deixa e, antes de inteirar 24 horas em solo belo-horizontino, meteu o pé de volta pra Sampa.

Depois de ouvirmos suas agruras, muitos de nós estavam comovidos (Leidiane era incrivelmente carismática) e resolveram, então, fazer uma vaquinha para ajudar Leide com suas despesas de fim de ano (e compensar a desgraça que seu natal tinha sido). Não soube na hora quanto ela conseguiu, mas vi que teve gente que até se levantou pra enfiar a mão no bolso.

Afinal, dormi sem ter conseguido ler uma página.

Chegando ao Tietê eu estava bem contente por finalmente descer daquele ônibus mal-assombrado! Comprei o bilhete, peguei o metrô pro Jabaquara, já imaginando a cara do Arthur quando ouvisse a história… mas a vida, ouço dizer, é uma caixinha de pandora! Ouço no fundo do vagão, numa voz contente e bem familiar: “o pessoal do ônibus gostô de mim demais, sô! Fiz um monte de amigo e ainda ganhei cinquenta conto…” Sim. Era Leidiane, contando um monte de história e tomando sua inesgotável meia garrafa de vinho.

Leidiane é o espírito do natal retrasado que sempre me lembra que um bom par de ouvidos mantém a faca na mochila.

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Asafe Gonçalves Pereira
Brevidades

Impostor em vários frontes. Usuário de drogas pesadas, a saber, café e transporte público. Viciado numa, dependente da outra.