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Porque a governança da falha importa nos processos de inovação?

Ximena Alejandra Flechas
Bridge Ecosystem
Published in
9 min readFeb 4, 2021

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É do conhecimento comum para empresas e praticantes que as falhas são inerentes aos processos de inovação. Isso acontece devido à natureza incerta destes processos para os quais as empresas adotam abordagens mais experimentais, o que implica que muito provavelmente falhas (ou seja, resultados insatisfatórios) surjam ao longo de todo o processo de inovação. No entanto, na maioria das vezes as empresas não dispõem de orientações precisas para gerir essas falhas, o que pode resultar em perda de conhecimentos e recursos, bem como em penalizações inadequadas. Tradicionalmente, as empresas têm investido recursos e esforços para evitar as falhas ou para minimizar suas consequências. Porém, com a incorporação de projetos de inovação cada vez mais radicais, atitudes conservadoras que visam evitar falhas e evitar transitar em terrenos mais incertos, muito provavelmente irão restringir o nível de radicalidade de inovação do projeto e, consequentemente, dos resultados e impactos estratégicos da empresa. Esta situação tem sido contornada em algumas firmas com a adoção de metodologias ágeis como scrum ou lean, nas quais as falhas são naturalizadas e aceitas como parte fundamental dos projetos de inovação.

Neste ponto, é importante destacar a diferença entre o erro e a falha. Por um lado, um erro é considerado como uma divergência do resultado esperado e desejado em situações conhecidas. Ou seja, uma situação na qual as pessoas sabem e conhecem os procedimentos de uma determinada tarefa mas, por algum motivo (e.g., falta de atenção, sabotagem, etc.), surge um resultado não esperado nem desejado, esta situação é considerada de erro. Por outro lado, uma falha é considerada como um resultado insatisfatório em situações incertas em que os atores não conhecem a priori a melhor maneira de definir objetivos, planos e resultados. Já a governança da falha, refere-se ao sistema de práticas formais e informais em organizações envolvendo as normas e valores (o que é esperado e desejável), atores e papéis (quem pode falhar, como pode falhar, quando pode falhar, com quem, e quem detém direitos de decisão), funções de direção (o que acontece antes, durante e depois da falha), e instrumentos de controle (progresso e desempenho) relacionados com a falha durante os processos de inovação (ver figura 1).

Figura 1. Governança da falha

Mas o que acontece quando os processos de inovação envolvem pessoas e funções que tradicionalmente não estão familiarizadas com metodologias ágeis ou de mitigação de incerteza? O que acontece quando não é claro o procedimento de governança da falha em processos de inovação, e nem os gerentes nem os demais envolvidos nos processos sabem o que fazer em caso de falhas? Para lançar alguma luz sobre estas questões, vamos nos remeter a um exemplo que ilustra muito bem como a falta de governança da falha pode levar a situações de desastre.

Boeing 737 MAX. A anatomia do desastre

Fonte: Lindsey Wasson: Reuters.

Para ilustrar este exemplo vamos acompanhar esta sequência: 1) os fatos, 2) a anatomia do problema, 3) os antecedentes, 4) a resposta.

1. Os fatos.

Sendo o Boeing 737 o modelo de avião mais vendido na história da aeronáutica, atingindo a marca de 15000 unidades vendidas, uma das estratégias de desenvolvimento de produto da Boeing foi criar variações e atualizações sobre este exitoso modelo. Seguindo esta estratégia, em 2017, entrou em serviço o modelo 737 MAX, que prometia uma diminuição do uso do combustível de 14% para cada poltrona. Para otimizar os custos de produção e minimizar os custos de certificação, a Boeing decidiu usar a mesma estrutura do 737. No entanto, essas melhoras no uso do combustível resultaram em um tamanho de motor maior, portanto a equipe teve que fazer mudanças na distribuição e no tamanho das asas e o nariz da aeronave. Todas essas mudanças impactaram nas características de voo, e a resposta da companhia foi criar um sistema de software de gestão de voo por computador, o MCAS (Maneuvering Characteristics Augmentation System), para dar suporte aos pilotos. Este software não tinha precedentes no mercado comercial de aviões.

Um ano depois da entrada do 737 MAX no mercado, aconteceu o primeiro acidente fatal, o voo da Ethiopian Airlines (Etiópia), e 5 meses depois, segue o voo da Lion Air (Indonésia). Os acidentes deixaram um saldo de 346 vítimas mortais. O custo estimado da trágica situação supera os 18 bilhões de USD. Até antes da pandemia, a Boeing já havia sofrido uma queda importante (ao redor de 24%) dos seus ganhos em 2019, o primeiro ano a reportar perdas em 22 anos. Isto somado aos embates econômicos decorrentes da pandemia, prevê um longo período de difícil recuperação, especialmente ligado à perda de confiança entre os pilotos, agentes reguladores, clientes, e a opinião pública.

2. Anatomia do problema

2.1. Questões ligadas à tecnologia e ao design

Em Ambos os acidentes (Ethiopian Airlines e Lion Air), as pesquisas revelaram que o sistema MCAS reportou problemas de funcionamento, e que em determinado momento o sistema recebeu informações erradas dos sensores fazendo com que, em repetidas ocasiões, o nariz do avião fosse puxado para baixo, restringindo a habilidade do piloto de retomar o controle manual do avião. Adicionalmente, o sistema apenas dependia de um sensor, assim, se houvesse qualquer mal funcionamento deste único sensor, o MCAS não saberia que as informações não estariam certas. O fato de ter apenas um sensor evidencia que o sistema carecia de salvaguardas suficientes de operação. As caixas pretas dos aviões também revelaram que o MCAS iniciou vários alarmes de alerta ao mesmo tempo, o que tirou a atenção dos pilotos durante os momentos mais críticos e, pior ainda, estes alarmes não entregavam informações claras e suficientes para guiar aos pilotos. Outro aspecto importante é que a empresa demorou em lançar as atualizações do software que pudessem melhorar estes problemas.

2.2. Questões ligadas à gestão

Com o intuito de reduzir ao máximo o tempo de produção e de comercialização, os treinamentos, e os custos, os engenheiros foram persuadidos a reduzir e tirar qualquer requerimento adicional para certificação, tempo de simulação e treinamento de pilotos. De forma que o mandato da diretoria foi de implementar apenas mudanças “pequenas” ou “incrementais”, porém, os diretores subestimaram o fato que todas estas “pequenas mudanças” geraram mudanças complexas (i.e., tamanho do motor, mudanças na aerodinâmica do avião, e implantação de um sistema de software inédito no setor comercial). Apesar disto, o 737 MAX foi vendido como um modelo com uma “pequena” atualização (minor upgrade) que melhorava a eficiência no uso de combustível e que não requeria qualquer tipo de recertificação. Não foi feito nenhum tipo de treinamento para o uso do MCAS e quase não era mencionado nos manuais.

De forma geral, este novo modelo de avião foi desenvolvido sob muita pressão. Os tempos foram muito apertados com o intuito de não perder o time-to-market em relação a Airbus. Isto fez com que a carga de trabalho fosse duplicada, os funcionários estavam exaustos e eram fortemente cobrados pelos gestores para limitar os testes de segurança, para manter os custos baixos e, seja de forma deliberada ou não, para contornar os procedimentos já estabelecidos ou inclusive ignorar ou encobrir alguns problemas. Vários e-mails expostos ao público em 2019, escritos entre 2015 e 2018, evidenciam sérios problemas de governança e mostram também que vários engenheiros avisaram a seus superiores sobre possíveis falhas do sistema. Mesmo assim, a diretoria não mudou seus alinhamentos embora tenha havido colaboradores que manifestaram oposição.

Houve também fortes indícios de conflito de interesses entre a Boeing e a FAA (a agência reguladora da aviação nos EUA). Por exemplo, apesar de ter alegado uma falta de informação, a FAA outorgou a certificação à Boeing, concluindo que se tratava de outro 737 e não de um modelo diferente de avião. Isto foi abertamente denunciado pela Joint Authorities Technical Review (2019), que destacou que dadas as consideráveis mudanças do 737 MAX, e particularmente, pelo complexo sistema de automação do MCAS, a FAA deveria ter assumido esta certificação como se tratasse de um modelo completamente diferente.

3. Os antecedentes

Múltiplos relatórios apontam que a companhia sacrificou investimentos em engenharia e segurança em prol do balanço financeiro. Isto põe de manifesto alguns conflitos de interesse e éticos entre os stakeholders, além de revelar uma clara tendência em focar no desempenho financeiro deixando de lado considerações éticas e sociais. Segundo John Kay (2011), desde 1997, a Boeing veio transformando seu foco de se centrar nos avanços tecnológicos ao se centrar em critérios puramente financeiros, colocando a prioridade na engenharia financeira ao invés da engenharia aeronáutica. Entre 2013 e 2019 o board gastou 42% dos ganhos na recompra de ações e no pagamento de dividendos, e desde então, a empresa já reportou uma perda de 43,4 bilhões de USD na recompra de ações. Além disso, entre 2016 e 2017 a companhia demitiu mais de 1332 engenheiros e especialistas técnicos (muitos deles altamente experientes) e ainda cerca de 8000 membros da força comercial.

4. A resposta

A resposta inicial da empresa encabeçada por Dennis Muilenburg (o CEO da época) sobre os desastres foi ambígua e confusa. Por um lado, o CEO defendia que o avião era seguro, mas ao mesmo tempo pedia desculpas pelos acidentes, reconhecendo de maneira implícita que algo estava errado nos aviões. Uma ora era dito que “nosso avião é seguro”, e uma outra ora que “estamos trabalhando numa atualização” e “rejeitavam uma investigação exaustiva”. Em abril de 2019, Muilenburg até chegou a falar que os pilotos da Ethiopian Airlines não seguiram corretamente os manuais, sendo que as informações sobre o MCAS eram insuficientes nos manuais. Muilenburg foi substituído por David Calhoun em janeiro de 2020. A empresa também criou um programa de atenção psicológica de traumas aos engenheiros que trabalharam no projeto.

O caso descrito nos permite resgatar vários aprendizados e considerações a respeito da governança da falha.

Os projetos de inovação incremental e radical precisam de orientações e mandatos diferenciados. No momento em que a Boeing decide tratar o 737 MAX como um projeto incremental, ela tira ou reduz o cuidado que os projetos de inovação radical precisam. A gestão de inovação radical (ver O’Connor et al., 2008) nos tem ensinado vários processos que são diferentes das inovações incrementais, principalmente aqueles processos relacionados à mitigação de incertezas e tomada de decisão. Agora, ao estar ciente da natureza incerta da inovação radical, as empresas deverão assumir que a probabilidade de falhas também aumenta. A atitude dos gestores da Boeing de querer restringir os testes de segurança, de não dar ouvidos aos colaboradores que manifestavam suas preocupações, e inclusive de ocultar falhas existentes, não é um caso isolado. Uma de nossas pesquisas do grupo Bridge, revelou que algumas vezes os gestores não revelam os “maus resultados” à diretoria para não se mostrar como de baixo desempenho; isto porque muito provavelmente os indicadores e os modelos de avaliação estão mais focados em inovações incrementais, onde um parâmetro pode ser o baixo nível de erros (lembrando que não é o mesmo que as falhas). Então, é muito importante que as empresas desenvolvam regras claras de jogo em relação à falha nos processos de inovação, e que estas regras correspondam ao nível de radicalidade da inovação que de fato a empresa esteja realizando.

A governança da falha, apesar de muitas vezes negligenciada, é fundamental para processos de inovação saudáveis e maduros que permitam aproveitar o máximo potencial criativo dos envolvidos sem ir em detrimento de questões financeiras, tecnológicas e éticas. Sem dúvida um aspecto que todas as empresas deverão discutir na hora de começar a mergulhar de cabeça na inovação radical e transformação digital para afiançar a sobrevivência no longo prazo.

Esperamos que este texto tenha sido do seu interesse. No final deste artigo, poderá encontrar algumas referências acadêmicas, caso você queira se aprofundar no tema! Até uma próxima.

Referências

Kay, J. (2011). Obliquity. Why our goals are best achieved indirectly. https://doi.org/10.1017/CBO9781107415324.004

O’Connor, G., Leifer, R., Paulson, A. S., & Peters, L. S. (2008). Grabbing Lightning. Building a Capability for Breakthrough Innovation. San Francisco: Jpssey-Bass.

Danneels, E., & Vestal, A. (2020). Normalizing vs. analyzing: Drawing the lessons from failure to enhance firm innovativeness. Journal of Business Venturing, 35(1), 105903. https://doi.org/10.1016/j.jbusvent.2018.10.001

Johnston, P., & Harris, R. (2019). The Boeing 737 MAX Saga: Lessons for Software Organizations. Software Quality Professional, 21(3), 5–12. Retrieved from www.asq.org

Pasztor, A., Tangel, A., Wall, R., & Sider, A. (2019). How Boeing’s 737 MAX Failed — WSJ. The Wall Street Journal, 1–7. Retrieved from https://www.wsj.com/articles/how-boeings-737-max-failed-11553699239

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