Capítulo 1

BRIO
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27 min readSep 18, 2015

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UMA ESTRADA FANTASMA VOLTA A ASSOMBRAR A BOLÍVIA

por BRIO Watchdog

A obra da estrada Villa Tunari-San Ignacio de Moxos foi acusada de superfaturamento, falta de transparência na licitação e no financiamento do BNDES, que aceitou que a rodovia atravessasse o TIPNIS, um parque nacional e território indígena. O jornalista Raúl Peñaranda, primeiro boliviano a receber uma bolsa Nieman da Universidade de Harvard, mostra como a empresa OAS assumiu o projeto após um acordo político entre Lula e Evo Morales, que envolvia o financiamento do BNDES. Não houve concorrência na licitação. Para Alejandro Almaraz, ex ministro do governo Morales, a negociação foi feita em uma viagem ao Brasil do vice-presidente Álvaro García Linera. “Essa circunstância obscura da aterrisagem da OAS tem a ver com uma viagem, nos primeiros meses ou semanas do governo Evo Morales.” O projeto desconsiderou aspectos ambientais e sociais e gerou uma crise entre a Bolívia e a empresa. Documento do próprio governo brasileiro deixa claro a falta de critérios técnicos no financiamento: “A estrada foi paradigmática, pelo que, valendo-se da experiência do Banco Mundial, conviria revisar cuidadosamente os parâmetros para a aprovação dos financiamentos”. Após protestos, o BNDES se retirou sem desembolsar dinheiro.

A indígena Rosa Chao sente de longe que algo está errado. Enviada para ajudar a assar uma carne doada a um agricultor local, ela estava fora do acampamento ocupado por seus colegas manifestantes no Território Indígena e Parque Nacional de Isiboro-Secure (TIPNIS), na Bolívia. Quando estava preparando o carvão para acender o fogo, ouviu sons irreconhecíveis. Alguns minutos depois tudo fica audível: sim, o que ela escuta são gritos de socorro, prantos de crianças, insultos e armas que “vomitam” gás lacrimogêneo e balas de borracha.

Corre com angústia para o acampamento e custa a processar o que vê: policiais golpeando homens indefesos, arrastando mulheres algemadas, perseguindo meninos e meninas ainda na tenra idade e ameaçando jovens assustados, tudo em meio a uma nuvem de balas e de gás.

Algumas de suas companheiras foram amordaçadas, além de algemadas com as mãos nas costas e, se os policiais as soltassem, cairiam com o rosto no chão, de bruços. Em meio à confusão, Rosa corre para uma pequena montanha e ali um menino com os olhos suplicantes se alegra ao ver um rosto amigo. Ele teve mais sorte do que outros que fugiram para campos de espinhos e que, na corrida louca, sofreram ferimentos profundos.

Mais tarde, ela percebe que não pode ficar muito mais tempo no mato e se entrega. Juntamente com várias centenas de manifestantes, é colocada à força em diversos ônibus pelas mãos da polícia. Embora ainda não soubesse, Rosa era parte de um dos mais impressionantes e impactantes atos repressivos da política boliviana recente. Denominado “massacre de Chaparina” (referência à cidade onde ocorreu), a repressão brutal do contingente da polícia antimotim contra aqueles manifestantes é um marco nefasto da democracia boliviana e do governo de Evo Morales.

Rosa Chao foi uma das líderes da marcha contrária à obra aprovada pelo BNDES, que terminou brutalmente reprimida. Imagem: Felipe Rodrigues

Naquele dia, 25 de setembro de 2011, concluía-se uma etapa da luta iniciada anos antes por índios das terras baixas contra a construção de uma estrada através do Território Indígena Isiboro e Parque Nacional de Seguro, localizado no centro da Bolívia, e maior do que a extensão de Porto Rico. É uma zona tropical altamente úmida, que tem 170 lagos e é a segunda maior reserva de água doce da América Latina.

A marcha contra a construção da estrada, que iria atravessar o território indígena, começou em 15 de agosto, em Trinidad, localizada a 160 metros acima do nível do mar, no coração da Amazônia boliviana e onde as temperaturas podem chegar a 32 graus à sombra, em agosto. A caminhada tinha como objetivo chegar à sede do governo, o que significaria subir 4.500 metros por meio das montanhas, com temperaturas abaixo de zero, para descer novamente e alcançar 3.600 metros em La Paz. Acreditava-se que a marcha, que percorreria 596 km, levaria cerca de 35 dias.

A estrada, a que repudiavam os indígenas, de 306 km de comprimento, tinha sido entregue três anos antes para a construtora brasileira OAS e tinha um financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Dos US$ 415 milhões necessários (sem incluir o pavimento), o BNDES iria fornecer US$ 332 milhões e o restante seria financiado pelo Estado boliviano. Para o advogado Alejandro Almaraz, ex-ministro de Terras do governo Evo Morales, a entrada da OAS no país é “obscura”. “Não há processos transparente de licitação”, afirma ele.

“Essa circunstância obscura da aterrisagem da OAS tem a ver com uma viagem, nos primeiros meses ou semanas do governo Evo Morales, que fizeram o vice-presidente Álvaro García Linera e Patricia Ballivián, que nesse instante era diretora administrativa e financeira do Serviço Nacional de Estradas.”

Para ex-ministro, chegada “obscura” da OAS tem relação com viagem de vice-presidente. Imagens: Olé Produções

O banco é uma instituição financeira operada pelo governo brasileiro e que tem um programa de crédito específico para a exportação de bens e serviços por parte de companhias do Brasil. Essa rubrica passou a ser utilizada especialmente na última década como uma plataforma para a internacionalização de empresas brasileiras, especialmente as do setor de construção, como OAS, Odebrecht, Camargo Correa e Andrade Gutierrez.

Empresas originárias do Brasil e especializada em infraestrutura têm se beneficiado com contratos milionários de obras públicas na América Latina, em grande parte graças aos acordos firmados entre aliados políticos de Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil entre 2003 e 2010. Muitos projetos são bons negócios para as empresas e aumentam o fluxo de dinheiro para o Brasil.

Um estudo da consultoria Abeceb, da Argentina, mostra que entre 2001 e 2010 houve um salto de 1.185% nos financiamentos do BNDES para empresas brasileiras atuarem em outros países. Além disso, o documento afirma que uma das principais vantagens dos créditos fornecidos pelo banco brasileiro é apresentar menos limitações do que, por exemplo, o Banco Mundial, que tem exigências mais fortes do ponto de vista social e ambiental para seus empréstimos.O banco diz que o salto é menor.

A política de financiamento do BNDES também faz parte da política externa do Brasil. As obras financiadas buscavam a consolidação da infraestrutura da América do Sul, promovendo a integração da região.

Apesar do volume significativo de recursos públicos envolvidos, durante muitos anos pouco se soube sobre esses negócios. O BNDES argumentava que os dados separados por projetos quebram o sigilo bancário e afetam a competitividade das empresas brasileiras no exterior.

No dia 2 de junho, no entanto, o banco informou que passará a divulgar dados sobre os financiamentos feitos no exterior. A partir de agora, haverá informações sobre os projetos, valores envolvidos, garantias e anos para o pagamento. A decisão coincide com esta investigação, iniciada por BRIO em 26/03/2013. Naquela data, por meio da Lei de Acesso à informação, BRIO pediu “cópia ou acesso à tabela de financiamentos para exportação entre 2006 e 2013, separado por país de destino, empresa que recebeu o financiamento, valor do financiamento, ano da assinatura do contrato e projeto financiado”. As informações divulgadas agora são muito semelhantes às solicitadas pela reportagem.

A primeira resposta ao pedido de BRIO veio em abril de 2013. “Dados individualizados de operações de financiamento à exportação que revelem informação comercial sigilosa, a exemplo do valor do financiamento, que tem relação direta com o preço do produto exportado, elemento de natureza estritamente comercial, privativa e estratégica do exportador, não podem ser fornecidos em razão do sigilo a que o BNDES está obrigado”.

BRIO perseguiu todas as instâncias de recurso previstas pela lei. Oito meses após o pedido inicial, a área técnica da Controladoria-Geral da União elaborou parecer argumentando “tratar-se de informação de natureza pública (seja ela ostensiva ou não), cujo acesso é alçado constitucionalmente à categoria de Direito Fundamental”. Traduzindo: os dados deveriam ser informados ao BRIO. O documento da CGU esclarecia, ainda, que “não há um liame lógico e claro entre a divulgação da informação e a perda de posição das empresas brasileiras no mercado internacional”.

Mesmo assim, o Ouvidor-Geral da União, José Eduardo Romão, deu parecer contrário ao dos técnicos da CGU. Ele entendeu que o BNDES “conseguiu esclarecer minimamente” os seus argumentos e negou a divulgação das informações. Escreveu o ouvidor: “Mesmo considerando que o BNDES poderia ter esclarecido detalhadamente o denominado nexo de causalidade entre a divulgação das informações e o risco à competividade (uma vez que divulga informações semelhantes, como acusa o parecer), entendo que a razão de negativa apresentada tem respaldo normativo nos termos indicados”.

O caso seguiu, então, para um conselho de ministros do governo federal. Entre outros, estiveram na mesa os titulares de Casa Civil, Justiça, Relações Exteriores, Fazenda, Planejamento e Defesa. A negativa final foi enviada em 31 de março de 2014. Os ministros mantiveram os dados sob sigilo, mas recomendaram que o BNDES inserisse nos futuros contratos uma cláusula alertando as empresas que informações sem sigilo “poderão ser divulgadas” pelo banco.

A confidencialidade das transações também foi a norma na Bolívia — o BNDES nunca divulgou oficialmente os valores do projeto ou informações sobre as negociações com o governo local e a empresa brasileira.

O TIPNIS é a segunda maior reserva de água doce da América Latina. Imagem: Agencia AFKA

Mas uma investigação jornalística e documentos obtidos por BRIO demonstram que o contrato para a construção da estrada tinha uma série de irregularidades. Primeiro, a construção da estrada estava em um território indígena, mas não fora aprovada por consulta popular, conforme estipulado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual a Bolívia é signatária. Em segundo lugar, não foi previamente estabelecido o trajeto exato no qual a estrada seria construída. O caso entra para os anais de obras irregulares com um crédito milionário liberado sem que se soubesse exatamente onde a estrada passaria.

Em terceiro lugar, o trecho dois da estrada, justamente o que passaria por dentro do parque, não tinha licenças ambientais exigidas pelas leis do Brasil e da Bolívia. Em quarto, o governo determinou o custo da obra sem ter um estudo de viabilidade técnica, como atestou Gonzalo Maldonado, então presidente emérito da associação de engenheiros de Cochabamba. Quinto: foi “imaginada”, em 2008, sem prazo para acabar, e com um custo de US$ 415 milhões. Sexto, o preço acordado não incluía a pavimentação, que era para ser fornecido pelo Estado boliviano a um custo de US$ 28 milhões de dólares. Sétimo, o preço estabelecido para a obra é quase o dobro do custo médio de estradas similares no país.

O percurso começa em Villa Tunari, uma cidade que está no coração do Chapare, a região que mais produz folha de coca na Bolívia e é o berço de apoio político do presidente Morales. A rota, oficialmente chamada Villa Tunari-San Ignacio de Moxos, teria três seções. A primeira, a partir do sul ao norte, deveria unir Villa Tunari e Isinuta, com um comprimento de 47 km. A seção II penetraria no território indígena. Essa é a seção que não tinha traçado definido, nenhum estudo técnico e não tinha uma licença ambiental. Sua distância aproximada de 177 km juntaria Isinuta e Monte Grande del Aperé. O terceiro e última uniria essa cidade com San Ignacio de Moxos.

OAS, uma relação de amor e ódio.

A relação entre o governo boliviano e a empresa OAS passou em três anos de um amor tórrido ao mais profundo desprezo. Para entender como uma obra negociada como um projeto considerado politicamente prioritário por Lula e Evo transformou-se em uma crise diplomática, social e política é preciso montar uma cronologia precisa dos fatos.

Um passo fundamental para a entrada da OAS na Bolívia foram os entendimentos que levaram a empreiteira a substituir Queiroz Galvão, expulso da Bolívia por acusações de não cumprimento do contrato na construção da estrada Tarija-Potosí, que tem 80 km de extensão. A obra foi iniciada em 2003. A negociação entre os governos da Bolívia e do Brasil tentava evitar o rompimento do contrato de financiamento do BNDES para essa obra e os inevitáveis atrasos na execução. Em 2009, o projeto foi repassado para a OAS, com um valor de US$ 226 milhões que deveria incluir reparos na estrada.

Lula e Evo Morales assinam acordo de cooperação para a estrada, em 2009. Imagem: Aizar Raldes/AFP/Getty Images

Ocorre que a Tarija-Potosí era considerada pouco lucrativa. Quem acompanhou de perto a negociação garante: isso implicava que a OAS seria compensada com outros contratos, de modo a compensar o prejuízo inevitável na obra deixada pela Queiroz. Para interlocutores brasileiros e bolivianos, o que nascera como solução técnica para um problema político criado pela expulsão da Queiroz Galvão tornou-se um plano complexo e obscuro que misturava negócios privados, interesses políticos e o dinheiro do BNDES.

A estrada através do TIPNIS teve um orçamento muito maior, os US$ 415 milhões mencionados, o que poderia “compensar” o negócio pouco atraente da Potosí-Tarija, estrada de 364 km de comprimento. Em seguida, a empresa também ganhou outra estrada, a Potosí-Villazón, onde mostrou ineficiência e atrasos.

O negócio começou efetivamente no dia 25 de julho de 2008, quando Patricia Ballivián, em nome da Administradora Boliviana de Estradas (ABC), presidiu a abertura de envelopes após o convite a empresas internacionais para participação na construção da estrada em TIPNIS. No entanto, não havia muito suspense durante o evento porque Ballivián tinha apenas um envelope para abrir. Todos sabiam que a única oferta tinha sido feita pela OAS, o que incluía um empréstimo do BNDES de US$ 332 milhões (80% do total), deixando os outros 20% (US$ 83 milhões) restantes a serem financiados pelo Estado boliviano, além da pavimentação por US$ 28 milhões.

No dia 1º de agosto de 2008, Ballivián concedeu a construção de 306 quilômetros à OAS. O contrato foi assinado em 4 de agosto em Ishinuta, no Chapare, na presença do presidente Evo Morales. Um mês depois, os presidentes Morales e Lula assinaram o acordo de financiamento da obra. No dia 1º de abril de 2009, o Conselho de Ministros aprovou o chamado Decreto Supremo 062, autorizando o “convênio subsidiário” de crédito do BNDES. Em 15 de fevereiro de 2011, o governo boliviano e o BNDES assinaram oficialmente o contrato de empréstimo e, em maio, a Assembleia Legislativa ratificou a medida por lei. A obra poderia começar. O presidente ordenou que tivesse início em 3 de junho. As grandes máquinas da OAS que estavam paradas na região começaram a trabalhar.

O processo havia demorado principalmente porque o governo não conseguia obter a aprovação da licença ambiental. Ativistas em favor dos direitos da terra intervieram. O ex-vice-ministro de Meio Ambiente Juan Pablo Ramos, e o ex-Diretor de Meio Ambiente, Luis Beltrán, estavam relutantes em liberar a documentação por um longo tempo e retardaram o processo. Em julho de 2010, eles renunciaram a seus cargos alegando que as autoridades tentaram forçá-los a assinar as licenças ambientais. Em agosto daquele ano, a nova vice-ministra, Cinthia Silva, deu licenças para os incisos I e III, mas não para o trecho que corta o parque. Ter aprovado o crédito sem uma licença para essa seção foi uma das muitas irregularidades.

Outra causa da demora foi que, em 2008, quando Ballivián fez a abertura dos envelopes, não tinha desenhado um plano que indicasse os passos a serem seguidos: formalizar o crédito do BNDES, aprovar uma lei específica e, como foi dito, contar com a licença ambiental.

A relação de amor do governo com a OAS durou três anos. Nesse período, os porta-vozes de Morales defenderam a empresa a todo custo, negaram a existência de sobrepreço, justificaram que não haveria nenhum problema no trecho que iria atravessar o território indígena e referendaram a capacidade técnica da empresa.

“A OAS tem mais acesso a Evo que eu!”, chegou a dizer o então ministro de Obras Públicas, Walter Delgadillo, a um representante da embaixada do Brasil, no começo de 2011. Em tom de desgosto, o ministro disse que não suportava as pretensões da empresa.

Em agosto de 2011, mês em que os indígenas iniciaram sua marcha, Lula viajou até a Bolívia em um jato privado da OAS para se reunir com Morales e tentar evitar a crise. Não teve êxito.

Pois assim como houve amor, depois houve desdém.

Em agosto, a marcha começou, e três dias depois da repressão de Chaparina, 28 de Setembro de 2011, o governo brasileiro decidiu congelar crédito. Na segunda-feira, 9 abril de 2012, o presidente Morales deu uma guinada de 180 graus na sua posição anterior e enviou um pedido de rescisão de contrato, indicando algo menos controverso: a empresa não tinha avançado o suficiente nas obras da estrada. Afinal, o país estava em guerra contra essas obras. E já não havia o financiamento para ela.

Evo Morales visita o Tipnis: embaixada do Brasil tentou resolver crise com a OAS e recomendou revisão de parâmetros para aprovação de financiamentos. Imagem: Agencia AFKA

A OAS terminou na pior posição possível. Já não era alvo de críticas apenas por parte de indígenas, ambientalistas e líderes da oposição boliviana, mas também das autoridades. A empresa já não tinha condições estruturais de se defender. Diante da crise, o governo brasileiro tentou usar suas últimas cartas para ajudar a construtora. O então embaixador brasileiro na Bolívia, Marcel Biato, se reuniu com a ex-ministra do Planejamento Viviana Car, para tentar resolver algumas questões pendentes. A OAS observou que já tinha reembolsado, de recursos próprios, a soma de US$ 100 milhões, que procurou recuperar uma vez que o contrato havia sido suspenso. O objetivo da reunião foi tentar reduzir as perdas.

A reunião, registrada em documento enviado para Brasília e obtido pelo BRIO, tinha como pauta tratar de “pendências relacionadas a projetos financiados pelo BNDES”.

No documento, o embaixador brasileiro informa quatro pendências do BNDES no país e sinaliza que havia tentado mandar recados da OAS para a ABC (Administradora Boliviana de Estradas) para tentar, ao menos, destravar o dinheiro de ressarcimento após a rescisão do contrato da rodovia de TIPNIS. A OAS cobrava a devolução do dinheiro que ela própria já havia gastado, já que as verbas do banco brasileiro só seriam liberadas após a comprovação com notas fiscais.

A conversa entre o embaixador brasileiro e a representante do governo boliviano deixam claro a falta de critérios técnicos do projeto.

“Sobre a estrada entre Villa Turani e San Ignacio Moxos, informei que, conforme havia sido acordado, a OAS já havia entregado à ABC sua proposta para a conciliação de contas com vistas ao ressarcimento de valores à empresa, derivado da rescisão antecipada unilateralmente pela ABC do contrato. A OAS queixa-se de ausência de resposta por parte da ABC”, diz a mensagem diplomática obtida por BRIO.

Mais à frente na comunicação, o embaixador registra que acompanhava com “interesse” o financiamento do Banco Mundial para estradas e afirma que “apesar do rigor, [eles] tinham o mérito de assegurar o melhor andamento dos projetos e de proteger os entes envolvidos”.

A continuidade do raciocínio de Biato mostra que, na visão do representante do Estado brasileiro na Bolívia, os empréstimos do BNDES não primam pelo rigor. “Afirmei que a experiência com a estrada de [TIPNIS] foi paradigmática, pelo que, valendo-se da experiência do Banco Mundial, conviria revisar cuidadosamente os parâmetros para a aprovação dos financiamentos”.

Segundo o embaixador, a ministra concordou com o desejo de ter “critérios mais estritos e acompanhamentos rigorosos” em futuras obras.

Para o banco, “os procedimentos adotados pelo BNDES, de cumprimento da legislação local, e a cautela demonstrada pelo Banco (não foram realizados desembolsos) permitiram que não houvesse nenhum tipo de perda com o cancelamento da operação nem prejuízos para a comunidade local”.

Já a OAS não respondeu aos pedidos de informação. A empresa, que em 2015 entrou com pedido pela Lei de Falência, foi em 2012 a terceira maior de construção civil no Brasil.

Na Bolívia, a estrada de TIPNIS não era o seu único problema. A empresa recebeu fortes críticas de autoridades locais e nacionais sobre os atrasos na construção das estradas Potosí-Tarija e Potosí-Villazón. O governo chegou a ameaçar encerrar ambos os contratos e cobrar as garantias acordadas com a empresa. As duas estradas mencionadas tiveram um custo de US$ 226 milhões.

O sobrepreço, a teimosia e o anúncio de uma maldição.

José María Bakovic, morto em 2013, foi um dos principais engenheiros da Bolívia. Tendo trabalhado quase duas décadas no setor de infraestrutura do Banco Mundial, ele foi persuadido pelo ex-presidente Jorge Quiroga a voltar à Bolívia para ser o presidente do Serviço Nacional de Estradas (SNC), mais tarde chamada de Administradora Boliviana de Estradas (ABC). Dirigiu a entidade até Evo Morales chegar ao poder.

O novo governo, precisando se diferenciar do passado, promoveu acusações contra Bakovic por razões pueris e ordenou, em 2008, sua detenção. As acusações de irregularidades que serviram de justificativa para a prisão não convenceram entidades da sociedade civil e os seus advogados defenderam que elas eram sem sentido ou improcedentes. Ainda que vários municípios e outras entidades locais tenham iniciado os julgamentos, os advogados de Bakovic disseram que o governo manipulava os processos.

Bakovic denunciou, a partir de sua cela na prisão de San Pedro de La Paz, onde passou quase um ano, que a estrada iria atravessar TIPNIS com quase US$ 200 milhões de sobrepreço. Ele disse ainda uma frase que marcou o país: a de que a estrada se converteria em uma “maldição” para Evo Morales. Era setembro de 2008.

Em uma entrevista em 2012, disse Bakovic: “Queiroz Galvao, Patricia Ballivián y OAS fizeram um acordo para liberar a primeira empresa de suas obrigações e entregar sem licitação a obra à segunda. Essa entrega seria parte de um pacote em nível plurinacional, com a inclusão de Potosí — Uyuni e Villa Funari –, e San Ignacio de Moxos, que o MAS teria comprometido com a OAS como pagamento do aporte que teria sido feito por essa empresa às campanhas políticas de Lula e Evo”.

Em artigo recente, intitulado “Evo, TIPNIS, OAS e Lava Jato”, o antropólogo Winston Estremadoiro, um dos mais importantes da Bolívia, questionou em sua famosa coluna “a política governamental com os bilhões de dólares que Lula da Silva levantou para que o Brasil favorecesse a OAS com o financiamento”. Faz referência à Operação da Polícia Federal brasileira que levou o ex-presidente da OAS para a cadeia, em meio a uma investigação de corrupção envolvendo todas as maiores construtoras do Brasil.

Depois da denúncia de Bakovic, mas ainda três anos antes da construção da estrada explodir nas mãos de Morales, houve várias denúncias de superfaturamento da obra. Sem um estudo final foi difícil estabelecer a magnitude desse custo excessivo, mas no geral foi estimado entre 100 e 200 milhões de dólares por especialistas e associações de engenheiros.

Se estimava que o custo de US$ 1,44 milhão por quilômetro era totalmente desproporcional e que não deveria ser superior a US$ 750 mil, o valor médio para estradas com complexidades similares. Já a média nacional é ainda menor: US$ 550 mil por quilômetro.

O presidente da Sociedade de Engenheiros da Bolívia-Cochabamba (SIB), José Méndez, disse que, após um estudo realizado por sua instituição, o sobrepreço era de pelo menos US$ 100 milhões. Por sua parte, o presidente emérito da Associação de Engenheiros de Cochabamba (Asieme), Gonzalo Maldonado, assegurou que a estrada não deveria ter um orçamento maior que US$ 265 milhões, o que significa sobrepreço de US$ 151 milhões. Juan del Granado, ex-prefeito e ex-deputado boliviano, coincidiu com Bakovic e denunciou que o trabalho tinha custos excessivos de US$ 200 milhões.

Ainda assim, o custo financeiro foi considerado menor do que o ambiental. Ambientalistas afirmaram insistentemente que o parque e território indígena seriam totalmente destruídos se estrada de alto tráfego atravessasse seu núcleo.

O TIPNIS está localizado em uma zona de inundação da Amazônia, que fica alagada boa parte do ano, mas o local também tem colinas, no sopé da Cordilheira dos Andes. Todos os rios atravessam a área do Oeste ao Nordeste. Portanto, a estrada cortaria o fluxo de água, afetando todo o equilíbrio ecológico.

No parque, vivem 108 espécies de mamíferos, um terço de todo o país, incluindo os grandes felinos como a onça-pintada, vários macacos e tamanduás, golfinhos de rio popularmente conhecidos como botos, além da capivara, o maior roedor do mundo, espécie de rato gigante de 60 centímetros de altura e um metro de comprimento.

Foto aérea da região do TIPNIS: parque abrange 10.910 quilômetros quadrados, o dobro da área da Holanda. Imagem: Agencia AFKA

O parque abrange 10.910 quilômetros quadrados, o dobro da área da Holanda, e abriga ainda 470 espécies de aves, quase o mesmo número de aves da Europa, que vão desde pequenos beija-flores, de poucos centímetros de tamanho, até o gavião-real, que, com uma envergadura de dois metros, é uma das maiores aves de rapina do mundo e proporcionalmente um dos animais mais fortes da Terra (levanta e leva durante um voo até três vezes o seu próprio peso). Macacos, preguiças, cobras e até mesmo pequenos jacarés compõem a fauna.

A região também tem 39 variedades de répteis, 53 tipos de anfíbios e cerca de 200 espécies de peixes. Sua riqueza florestal é ainda mais impressionante, com três mil espécies de árvores e outras plantas superiores, incluindo tajibo, o ipê amarelo, cedro e o mogno, quase completamente extintas no resto das Américas.

Usando modelagem de computador, especialistas em meio ambiente relataram em 2011 que a construção da estrada significaria a destruição de cerca de 610.000 hectares de floresta em um período de 18 anos, ou seja, 43% da extensão total.

De acordo com o estudo, feito pelo Programa de Pesquisa Estratégico da Bolívia, uma clareira normalmente se estende a uma distância de três a 15 km em ambos os lados de uma estrada. Em seguida, o aumento da população, o comércio e o próprio transporte acabam afetando áreas de até 50 quilômetros nos lados da rota.

Por que essa rota?

Uma estrada que ligue Villa Tunari, em Cochabamba, até San Ignacio de Moxos, em Beni, foi pensada desde o período colonial, mas foi mesmo estudada seriamente a partir dos anos 90 do século passado. Em 2003, o engenheiro Bakovic solicitou uma opção de estudo, mas na fronteira leste com o parque, para evitar entrar no núcleo dele.

A Bolívia é um país de mais de um milhão de quilômetros quadrados, com a menor concentração de estradas da América do Sul. Uma nação que se estende desde os quatro mil metros de suas terras altas a oeste e com a Floresta Amazônica a leste. Tem uma população de apenas dez milhões de pessoas que dão a menor densidade populacional por quilômetro da região. Ela necessita de estradas para o seu próprio desenvolvimento. E precisa desesperadamente. Mas por que a estrada tinha que ser dessa forma?

Como território indígena e parque nacional, o TIPNIS é praticamente desabitado. Cerca de 6.000 índios vivem por lá. A parte sul das fronteiras TIPNIS, como se disse anteriormente, faz fronteira com o Chapare, o maior produtor de coca da Bolívia e um dos líderes da América do Sul. A parte norte é uma região desabitada e economicamente inativa, exceto por uma produção pecuária não extensa.

A cidade de Villa Tunari, início da estrada que cortaria o TIPNIS, é o coração da região que mais produz folha de coca na Bolívia e berço político de Morales. Imagem: Agencia AFKA

Entretanto, o presidente Morales e seu governo lançaram-se cegamente na construção de uma obra que, aos olhos de bolivianos, não era justificada pelo custo ambiental, político e financeiro. O governo deveria tirar o pé do acelerador e evitar o conflito quando este ficou iminente, mas preferiu redobrar a aposta. Defendeu o acordo com o BNDES, negando o sobrepreço e atestando a qualidade do trabalho da OAS.

A teimosia das autoridades para levar adiante o trabalho era tão incompreensível que começaram a surgir todo tipo de teoria da conspiração: que o Brasil queria a estrada para expandir sua influência na Bolívia (o que não faz sentido porque a estrada não se junta com qualquer outra rumo ao Brasil); que o governo queria levar sua influência para Santa Cruz, a cidade que concentra votos opositores a Evo, e unir à zona andina com as chamadas terras baixas (o que não se sustenta porque são áreas economicamente sem importância); que Evo permitiria a expansão do cultivo de folhas de coca no parque (o governo tem, de forma eficaz, reduzido a coca no Chapare e não teria sentido incentivá-la em outras áreas); Que a obra seria feita para recolher, com o sobrepreço, o financiamento às campanhas eleitorais do partido no poder, o MAS (também não faz sentido porque essa força política ganhou, em outras ocasiões, as eleições sem esses recursos). Por fim, que construir a rota seria uma forma de pagar favores políticos que a OAS tinha com Lula, aliado de Evo. Quem sabe a resposta correta seja simplesmente a mentalidade de Evo: quanto mais a oposição se coloca contra algo, mais ele se empenha em fazer do seu jeito.

Uma marcha “ghandiana” emociona o país.

A VIII marcha indígena boliviana começou perto de Trinidad, no Estado de Beni, em 15 de agosto de 2011, pouco mais de dois meses após o início oficial da construção. Indígenas do TIPNIS, das etnias Yuracaré, Xamã e Yuki, haviam se reunido várias vezes para discutir a situação e decidiram que, antes de a construção começar, o Estado boliviano deveria realizar a “consulta prévia”, para respeitar assim, como já observado, a Convenção 169 e também por se autoproclamar um governo com duas características: defensor dos direitos dos povos indígenas e protetor da Pachamama, a chamada Mãe Terra.

Desde o início, os indígenas de TIPNIS não se opuseram à estrada, mas ao traçado. Eles estavam dispostos a negociar um trajeto alternativo que atravessaria o território pela fronteira oriental, como Bakovic havia sugerido em 2003. Sentiam que a estrada poderia ser benéfica para o desenvolvimento da região, mas se penetrasse no centro do território indígena, o frágil equilíbrio ecológico dessas paisagens exuberantes seria permanentemente danificada. Os rios não iriam mais fornecer peixes para o almoço, árvores não dariam sombra e frutos e plantas não poderiam ser utilizadas como medicamentos.

Homem participa da marcha contra a estrada, em 2011. Imagem: Agencia AFKA

O insistente e tedioso discurso do governo de que a estrada traria “progresso” para a população do território e que iria melhorar a qualidade da educação e da saúde, além de aumentar a renda da população não seduziu. Então, os líderes indígenas insistiram que era com “consulta prévia ou nada”. Mas o governo se recusou a convocar essa consulta e o presidente, desafiante, disse a seus opositores que a rota seria construída “querendo ou não”.

Os indígenas da chamada Cidod, que reúne os grupos nativos de terras baixas da Bolívia, em coordenação com grupos sociais bolivianos das terras altas, finalmente convocaram a marcha.

Começando em Trinidad, localizada a 160 metros acima do nível do mar, no coração da Amazônia boliviana, o ato tinha como objetivo chegar à sede do governo, que fica a 4.500 metros de altitude, já nas cordilheiras, com temperaturas abaixo de zero, para depois descer novamente e alcançar os 3.600 metros de La Paz. Acreditava-se que a marcha levaria cerca de 35 dias.

A caminhada, de 596 km, seria levada ao cabo por várias centenas de índios, além de ativistas que apoiaram o protesto e voluntários que se ofereceram para ajudar. Os indígenas, e outros movimentos sociais bolivianos, usam as marchas, um protesto pacífico, sempre para exigir suas demandas. O método tem sido classificado como “gandhiano”, por se basear na privação e sacrifício e evitar a violência para atingir um objetivo maior.

Durante a repressão à marcha contrária a estrada, crianças foram separadas de seus pais e algumas foram consideradas desaparecidas por dois dias. Imagem: Agencia AFKA

Em 1990 foi feita a primeira marcha indígena, também de Trinidad para La Paz. Como consequência o parque Isiboro Seguro, criado em 1965, foi declarado Território Indígena. Em 1990, o presidente Jaime Paz Zamora recebeu os indígenas nos arredores de La Paz e aceitou quase todas as suas exigências: que os territórios indígenas das terras baixas fossem oficialmente reconhecidos pelo Estado e que eles fossem consultados antes que os governos empreendam obras que afetem suas riquezas.

Entre a primeira e a oitava marchas, vários setores da sociedade passaram a exercer essa forma de protesto, incluindo o então aguerrido líder cocaleiro Evo Morales, que exigia respeito para a folha de coca e o fim do domínio dos Estados Unidos na luta contra o tráfico de drogas.

Todavia, como presidente, Morales se mostrou relutante em falar com os manifestantes e, em geral, o seu governo pressionou e assediou-os durante toda a marcha, seja com acusações e abuso verbal, ou com gás lacrimogêneo e balas de borracha, como aconteceu no 25 setembro, em Chaparina.

Poucos dias antes daquele evento, agricultores pró-governo decidiram bloquear a ponte Chaparina para parar a marcha. Nos longos dias em que ficaram bloqueados, esses agricultores também impediram o acesso à água limpa, tanto para os manifestantes quanto para as crianças, criando uma crise alimentar e de saúde. Horas antes da repressão, o governo convocou jornali2stas para a cidade vizinha Yucumo, supostamente para dar uma conferência de imprensa. Na verdade, mais tarde isso se tornaria claro, o objetivo era evitar registros de brutalidade policial. Mas por acaso, dois dos operadores de câmara, dos 20 que estavam em Yucumo, voltaram mais cedo. E suas imagens impressionantes foram transmitidas por todo o país no mesmo domingo.

Uma vez desencadeada a repressão, para evitar a violência, muitos manifestantes esconderam-se na floresta. As crianças foram separadas de suas mães. Algumas delas foram consideradas desaparecidas por dois ou mais dias. Rosa Chao e várias centenas de manifestantes foram presos e forçados a embarcar nos ônibus que a polícia tinha contratado. “Para o Brasil, não importa se a gente morrer”, diz Rosa ao BRIO.

Rosa Chao diz que o protesto não era contra a estrada, mas contra o trajeto. Imagens: Olé Produções

Ônibus lotados de manifestantes foram levados para o leste de San Borja, com a ideia de, posteriormente, levá-los a seus lugares de origem, mas a população da cidade, com a notícia da repressão, bloqueou a estrada, queimando toras, o que forçou os ônibus a ir mais para o norte, na cidade de Rurrenabaque. Eles chegaram lá à noite; na madrugada seguinte o governo decidiu que aviões Hércules, alguns solicitados da embaixada dos EUA, fossem a essa cidade para buscar os manifestantes.

As pessoas, ainda enfurecidas, tomaram a pista, impedindo a chegada das aeronaves. O governo, atordoado, libertou centenas de mulheres, homens e crianças em Rurrenabaque. A grotesca repressão gerou reação tão incomum e espontânea das cidades vizinhas que nem o presidente Morales nem seus ministros deram explicação das cinco da tarde, hora da operação policial, até a manhã do dia seguinte. Foram 16 horas sem governo.

Evo Morales, o vice-presidente Álvaro García Linera e o ministro de governo Sacha Llorenti negaram ter dado a ordem para agir e disseram que a polícia iniciou a repressão após uma “ruptura de comando” e asseguraram que souberam dos fatos somente após a “informação dos jornalistas”. Llorenti e todos os policiais acusados dos fatos foram isentados de qualquer responsabilidade. A popularidade do governo caiu no chão.

Nos dias seguintes, os índios recuperaram as forças. Atendidos por médicos voluntários, receberam suprimentos alimentares dos cidadãos em todo o país. E retomaram a marcha. Venceram a parte mais difícil, a subida ao cume, e chegaram a La Paz em 19 de outubro, um mês mais tarde do que o previsto. Lá, foram recebidos por centenas de milhares de pessoas nas ruas, que os aplaudiram, abraçaram e beijaram. Acredita-se que 600 mil dos 800 mil habitantes da cidade tomaram as ruas para saudá-los. Na história da Bolívia, não houve antes, e talvez nunca volte a existir, uma demonstração de afeto com essas características.

Em uma reunião tensa na mesma noite, entre os líderes da marcha e o presidente Morales, no Palácio do Governo, ele prometeu não construir a estrada. Foi a maior vitória dos movimentos sociais contrários a Evo e maior derrota do governo em seus nove anos. A popularidade do presidente estava baixíssima.

Morales promulgou depois uma lei nesse sentido, em 24 de outubro de 2011, denominada “inviolabilidade”. Os indígenas sinalizaram que a norma tinha, em realidade, o objetivo não só de proibir a estrada, mas de castigá-los e impedir qualquer atividade econômica. Por exemplo, no parque havia operadores turísticos, que compartilhavam seus ganhos com as comunidades. Elas foram expulsas pelo governo depois da aprovação da lei.

Mas não por muito tempo.

Poucos dias depois, mudou de ideia e aprovou uma lei sobre “consulta prévia” (consulta posterior, neste caso), em que, havendo resultado positivo, a estrada seria construída. A “consulta posterior” foi liderada pelo Ministério das Obras Públicas e, após um processo controverso, que incluiu a divisão de instituições indígenas, a perseguição de seus líderes, a doação de presentes para as comunidades no meio do processo, concluiu, em dezembro 2012, um relatório que dizia que os habitantes de TIPNIS, mesmo após a marcha, desejavam a estrada. O governo então rescindiu a lei da “inviolabilidade”.

A morte de um engenheiro e uma maldição pendente.

Em sua longa carreira, Morales mostrou ser uma pessoa que não desiste nunca. Isso ficou demonstrado em seu programa de governo apresentado nas eleições de outubro de 2014, quando venceu para um terceiro mandato. Apesar dos problemas enfrentados pela construção da estrada em TIPNIS, ela aparece novamente como uma de suas prioridades para os próximos anos.

Entre 2008 e 2013, a situação legal do engenheiro Bakovic, que havia previsto que a estrada através do parque e da reserva indígena se tornaria a maldição de Evo, não melhorou. Ele continuou a denunciar as irregularidades da estrada e outras obras construídas pelo governo. Em 2013, havia acumulado 73 ações judiciais incentivadas pelo governo, todas por supostas irregularidades durante o seu mandato à frente da ABC. Algumas vezes era chamado pelos juízes a aparecer nos tribunais no mesmo dia e hora, mas em cidades diferentes.

Podendo voltar para os EUA, onde vive parte de sua família, Bakovic decidiu ficar para defender-se e tentar limpar o seu nome. Contratou um grupo de advogados e assistiu a todas as audiências ordenadas pela justiça. Passava grande parte do tempo nelas ou viajando de um lugar para outro no país para atendê-las, além de responder jornalistas, que pediam sua avaliação sobre as polêmicas construções espalhadas pelo país.

O que não fez foi ouvir seus médicos ou sua filha Kalica, que pediam para ele reduzir um pouco seu estilo de vida e não assistir às sessões do tribunal na altitude de La Paz, porque sofria de um grave problema cardiovascular. Mas Bakovic insistiu em sua tentativa de provar que era inocente das acusações.

Devido à doença do cliente, seus advogados pediram aos promotores que ele não fosse obrigado a depor a 3.600 metros de La Paz. Mas, forçado, ele viajou. Em outubro de 2013, durante uma sessão do tribunal, ele sentiu-se mal, sofreu uma parada cardíaca e morreu poucas horas depois.

Apesar dos problemas enfrentados na construção da estrada pelo meio do TIPNIS, o projeto voltou ao programa de governo de Morales nas eleições de outubro de 2014, quando foi eleito para seu terceiro mandato. Figura novamente como uma das prioridades do governo.

Hoje, a China aparece como favorita para financiar o trabalho, não mais o BNDES, segundo informou o ministro René Orellana em maio de 2015, antes de viajar para a Ásia para negociar a assinatura de um acordo, que incluiria o financiamento da rota. Em 5 de junho, Morales disse no Chapare que a estrada será realizada. No terceiro mandato de Evo, que termina em 2019, será possível saber se a maldição de Bakovic será cumprida ou não.

Leia a seguir o capítulo 2: Compra na mira do FBI. Documentos inéditos obtidos por BRIO mostram que a compra de aviões Embraer pela Austral Lineas Aéreas, da Argentina, é investigada pelo FBI e pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, além de SEC (Securities and Exchange Commission).

Publicado originalmente em 9 de junho de 2015, em http://brio.media

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