Ilustração: Pedro Matallo.

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9 min readDec 7, 2015

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Cidade fantasma

Em Tufilândia, o poder público é virtualmente inexistente e o clichê “terra sem lei” perfeito para a cidadezinha. Além dos dois policiais militares que patrulham o município apenas com a ajuda de duas motocicletas de 50 cilindradas e que raramente são vistos pelas ruas, não há mais nada. A pequena base da PM está sempre de portões fechados, luz apagada e parece abandonada. Não há delegacia e não é incomum encontrar pessoas armadas com facas e facões, revólveres e até pequenas espingardas, como a Winchester calibre 22, usada para caçar tatus, aves ou qualquer coisa que se mexa nas matas locais.

Na prefeitura, é difícil encontrar o prefeito. Na semana em que estive em Tufilândia, o prefeito não estava lá. Diz-se pela cidade que o médico Raimundo Neto, do PSB, vive em São Luís. Quando está na região, passaria a maior parte do tempo em Santa Inês e em sua fazenda, próxima dali. O oficial de Justiça do Ministério Público do Maranhão encarregado de intimá-lo não consegue cumprir as ordens judiciais desde agosto.

Em abril, uma equipe da TV Globo que visitava os piores Conselhos Tutelares do Brasil para uma reportagem também não conseguiu localizá-lo. O Conselho Tutelar estava, até o início de outubro, sem eleições desde 2003. Funciona em uma pequena sala na prefeitura. O órgão não tem carro, orçamento ou qualquer outra estrutura, e os conselheiros admitem que é difícil conseguir fazer alguma coisa.

A delegacia responsável pelas investigações de crimes em Tufilândia fica a quase 100 quilômetros de distância, em Pindaré-Mirim, município de 32 mil habitantes de onde Tufilândia foi emancipada em 1994 após um plebiscito e referendo popular, também às margens do Rio Pindaré. Pelo asfalto, a viagem leva pelo menos uma hora.

Com três investigadores e uma única viatura que passa a maior parte do tempo parada em manutenção, a delegada titular, Cláudia Maciel de Almeida, admite que não pode fazer muita coisa pelo pequeno município. “Já faz tempo que Tufilândia está merecendo uma delegacia própria, uma estrutura melhor”, diz ela. “Tem muita ocorrência que vem de lá: brigas de bebedeira, crimes passionais, violência doméstica, abuso sexual, furto de residência… E com a distância e o isolamento da comunidade e a falta de estrutura que nós temos, fica difícil dar uma assistência melhor para a população lá, mas fazemos o melhor possível”.

Ela conta que assumiu a delegacia há cerca de um ano e, nesse meio tempo, já ocorreram dois assassinatos na comunidade atrás dos trilhos. “O que não é pouco para um lugar daquele tamanho. E tem também Pindaré-Mirim. Nossa estrutura já seria pequena se fosse para cuidar só daqui”, lamenta. A delegada diz que o incidente mais grave na cidade nesse tempo em que é responsável por Tufilândia foi a revolta popular contra a Vale e as empresas associadas em agosto, no protesto por empregos. De acordo com ela, cerca de seis pessoas chegaram a ser detidas e respondem em liberdade por crimes de destruição de patrimônio privado, vandalismo e lesão corporal.

“É muito difícil trabalhar lá, muito difícil… Um dia, estávamos indo lá entregar umas intimações para depor aqui na delegacia e a viatura quebrou no meio daquela estrada. Já imaginou a situação?”. A delegada confirma que a região toda é muito violenta. “Tem muita pistolagem nessas estradinhas aí para dentro, muito pistoleiro, disputa de terra, extração ilegal de madeira, minério”.

Sobre a exploração sexual de menores de idade, a delegada Cláudia diz que recebeu algumas denúncias “lá atrás, no começo da obra”, quando os trabalhos começaram na região e a empreiteira que tocava a obra era a Camargo Corrêa. “Chegaram algumas denúncias, cerca de uma dezena, sobre isso”, diz ela. “Funcionários das obras ali na frente estavam oferecendo dinheiro e outras vantagens para as meninas da vila em troca de favores sexuais. Chegamos a abrir investigação, mas, quando fomos lá, a empresa já tinha abandonado a obra e os suspeitos ido embora”, conta. Acrescenta também que a polícia não encontrou nenhuma vítima ou testemunha dos casos de abuso e exploração para prosseguir com o inquérito. Ficou por isso mesmo. Segundo ela, as empresas que sucederam a Camargo Corrêa no canteiro de obras devem ter um cuidado maior com essa questão, já que ela nunca mais ouviu falar desse problema em Tufilândia. “Agora, também já está acabando lá, né?”.

No âmbito da Justiça, a situação é ainda pior. A Comarca responsável, também em Pindaré-Mirim, ficou sem juiz e promotor por um ano e meio, até meados do primeiro semestre de 2015. Quando estive lá em setembro, fui informado de que a juíza titular Ivna Cristina de Mello Freire, que teria assumido em junho, estava de licença, desde agosto, até o dia 15 de outubro. Como ela é a responsável por todos os processos no fórum — civil, criminal, trabalhista e os da Vara da Infância e Juventude — , continua tudo parado. A assessora jurídica dela e o secretário geral do local também não foram encontrados trabalhando nas duas vezes que passei lá.

No Ministério Público, que funciona em um prédio novinho distante algumas quadras do fórum, o ritmo é parecido. O promotor, Cláudio Borges, assumiu em fevereiro, e dizem por ali que raramente é visto na cidade. Na semana em que estivemos lá, estava viajando para os lados de São Luís e voltaria só no final de semana para acompanhar a eleição unificada do Conselho Tutelar, que aconteceu em todo o Brasil no dia 4 de outubro.

Na Secretaria de Assistência Social de Pindaré-Mirim, a assistente social Neliane de Araújo, funcionária concursada no município há quase 10 anos, diz que lá eles não conseguem nem dar pena para menores infratores porque nunca tem promotor nem juiz, quanto mais proteger adolescentes de exploração sexual. “Aqui, não tem abrigo para menor infrator e nem para menores em situação de risco”, explica ela. “Quando precisamos dessa estrutura, temos que pedir vaga em São Luís, mas a fila é sempre enorme e nunca conseguimos. A solução é sempre encontrar, por exemplo, uma família provisória por aqui mesmo, mas, muitas vezes, não conseguimos fazer nada”.

Ela já trabalhou na Prefeitura de Tufilândia em administrações anteriores e acredita que a situação por lá, que sempre foi complicada nesse quesito, piorou muito com a chegada das construtoras e de seus exércitos de peões. “Não tenho números, mas temos notícias de meninas de 14, 15 anos que contraíram Aids. Tem uma menina de 12 anos que engravidou recentemente de um homem bem mais velho que foi embora… infelizmente, a situação é essa”.

Neliane diz que não vê nenhuma preocupação da Vale ou das empreiteiras que passam pela região com a parte social das comunidades carentes no meio do caminho. “A maioria dos administradores da região, quando vê uma obra dessa chegar, vê como uma oportunidade de arrumar empregos para a população, e é nesse sentido que eles vão negociar. Ninguém pensa nos outros impactos que isso vai ter”, explica.

“Do meu ponto de vista, se a Vale ou qualquer outra das empresas desenvolve um trabalho social, é algo incipiente. Se fosse algo relevante, nós teríamos ouvido falar. Acho que fica mesmo essa questão da corrida pelo ouro, do lucro pelo lucro, é só com isso que se importam mesmo”, desabafa a assistente social. “No futuro, o que fica aqui é um rastro muito negativo. Se for pegar, pesar, medir e conferir, acho que o impacto negativo que essas obras deixam pelo caminho é muito maior do que o impacto positivo. Depois que elas vão embora, vai surgir uma demanda muito forte para as políticas públicas atenderem, porque deixa um rastro: gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis, famílias desfeitas, e por aí vai”.

A mineradora afirma que repudia a exploração sexual de crianças e adolescentes. “A empresa é signatária do Pacto de Enfrentamento à Violência contra a Criança e Adolescente, do qual participam também outras empresas que atuam na região das obras de expansão. Todos os trabalhadores das obras de expansão da Vale recebem orientações relacionadas à conduta com as comunidades vizinhas, entre as quais se inclui o respeito aos direitos das crianças e adolescentes através da realização de campanhas de conscientização com os trabalhadores”, diz a nota enviada em resposta aos questionamentos do BRIO.

A Vale afirma ainda que promove o PESS (Programa de Educação Sexual e Promoção da Saúde), que atende a 23 municípios que têm seus povoados sob a influência da ferrovia, nos Estados do Maranhão e Pará. São ações de formação para jovens, adultos e instituições que compõem o SGD (Sistema de Garantia de Direitos). O objetivo é “fortalecer ações desenvolvidas pelas organizações da sociedade civil e do poder público na promoção dos direitos das crianças e adolescentes e no enfrentamento da violência sexual; além de contribuir para o desenvolvimento da sexualidade de forma segura, protegida e livre de violência”. A Vale diz que Tufilândia recebeu as palestras e oficinas do PESS entre agosto e dezembro de 2014. Aconteceram cinco reuniões com a participação de 61 pessoas.

O resultado dos trabalhos foi uma caminhada e uma gincana de conscientização contra a exploração sexual de crianças e adolescentes na cidade, realizadas no começo de 2015. Procuradas para comentar o problema, as empresas Camargo Côrrea e ECB não responderam. Não obtive contato com os responsáveis pela Lucena Infraestrutura e Marka.

Próxima parada

Gambiarra, Mota, Tarso e centenas de outros trabalhadores estão indo embora. Gambiarra disse que no máximo até o fim de outubro já teria partido direto para outra frente de serviço sem passar em casa, no Pará. Disse que vai sentir saudade de Tufilândia. “Esse lugar é muito bom de viver um tempo, tem muita mulher aqui… mas a vida segue e nóis dá um jeito chegando na cidade nova também. Vamo que vamo!”.

Em breve, todos os “visitadores” terão ido embora. Enquanto isso, as meninas de Tufilândia continuam se virando do jeito que podem. Os relacionamentos com os operários e outros que estão lá de passagem — na aridez de assistência, oportunidades ou qualquer vislumbre de futuro mais auspicioso — acabam sendo vistos como uma oportunidade de melhorar de vida, conseguir algum dinheiro, um celular novo, roupas ou simplesmente encher a cara e se divertir na companhia de homens que, apesar de mais velhos, simples, muitas vezes, ignorantes e nem sempre bonitos, são de alguma forma para elas interessantes.

Cerca de 25 quilômetros depois de Tufilândia, estrada de ferro abaixo, o próximo município no caminho dos trilhos é Alto Alegre do Pindaré. Pela rodovia, a volta aumenta a distância para 100 quilômetros. O clima de efervescência de filme de Velho Oeste que não existe em Tufilândia aparece a todo vapor lá. Dos 11 hotéis da cidade que consegui contar — metade recém-construídos — 10 estão fechados para alojar os funcionários da construtora Pelicano, que começou a se instalar na cidade em junho. Ao contrário do lote em Tufilândia, onde três empreiteiras dividiram a obra, em Alto Alegre, a Pelicano trabalha sozinha. São milhares de homens que devem ficar no município de 31.287 mil habitantes até agosto de 2017. Chegou a vez da cidade.

Assim como Tufilândia, Alto Alegre do Pindaré amarga uma má fama no quesito exploração sexual de menores. É oito vezes maior em território (possui 1.932 quilômetros quadrados de área), cinco vezes maior em população e possui uma estrutura de poder público e desenvolvimento econômico um pouco melhor. É equipada com dezenas de escolas, delegacia e uma companhia da PM. O fórum e o Ministério Público são os de Santa Luzia, a 55 quilômetros de distância, mas, além dos hotéis tem academia de ginástica, pizzaria, churrascaria, lanchonete e clube. A Vale tem um pátio de manutenção e manobra, e uma estação da linha de passageiros que liga Carajás a São Luís.

Em uma volta rápida de carro em um final de tarde típico, é fácil ver pequenos grupos de trabalhadores nas portas dos hotéis, agora transformados em alojamentos, e nas esquinas próximas à praia no Rio Pindaré, que também corta a cidade. Eles mexem com as meninas que passam pela rua e dão risada cochichando no ouvido das amigas enquanto retorcem o pescoço para trás. Os homens conversam, mexem nos celulares, fumam e bebem cerveja enquanto uma locomotiva da Vale apita ao fundo cruzando a cidade.

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Aiuri Rebello é repórter. Formado em Jornalismo pela PUC-SP em 2003, trabalhou como repórter especial do portal UOL na sucursal de Brasília e em São Paulo, foi repórter e redator do site da revista Veja e dos jornais Folha de S. Paulo, Agora SP e Diário de S. Paulo. Publicou trabalhos nas revistas Trip e Forbes e nos jornais O Globo e Extra. Cobriu a Copa do Mundo de 2014 e tem experiência na cobertura política e da administração pública, judiciário, cidades, polícia, internacional e esportiva.

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