Ilustração: Pedro Matallo.

ATO 1

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11 min readJan 6, 2016

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O chão treme.

– Tá aqui sua carteira de trabalho, Renato. Começa amanhã, às 7h.

Pronto. Agora era só comemorar. Renato [nome fictício] estava finalmente contratado como motorista de caminhão de uma empreiteira que presta serviços para a Samarco, uma das maiores mineradoras do Brasil. Estava animado porque tinha ouvido falar que a empresa era diferente das outras para as quais ele já tinha trabalhado pelo interior do país. Nessas, ele sempre ia para a mina sem saber se voltaria vivo para casa. Mas agora não mais. A Samarco era segura, garantiam os colegas de profissão.

Com 3 mil empregados diretos e 3,5 mil terceirizados como Renato, ela é a décima maior exportadora do Brasil. Localizada entre Mariana e Ouro Preto, em Minas Gerais, a unidade de Germano é um complexo gigantesco que produz 25 milhões de toneladas de pelotas e de minério de ferro por ano. O minério é extraído em minas a céu aberto e ganha 30% de água para engrossá-lo de forma a ser enviado, como uma polpa, até o Espírito Santo por meio de 400 quilômetros de minerodutos, tubos que cortam 25 cidades. Os restos, chamados rejeitos, são enviados para barragens.

A missão de Renato a partir daquele momento seria carregar um caminhão com rejeitos e transportá-los até duas barragens: Germano e Fundão, ambas da Samarco. São dois lagos artificiais gigantescos. Em vez de água, eles têm uma sopa lamacenta, fruto da mistura de água, terra, areia e resíduos de minério de ferro.

Ele faria isso todos os dias, das 7h às 19h, com uma hora de almoço. A jornada é pesada, mas Renato não reclama. “A empresa paga hora extra. Aí é bom demais”. O salário é de R$ 2,1 mil.

A manhã da quinta-feira, dia 5 de novembro, começa como todas as outras para o motorista, que vive sozinho. Levanta-se às 5h30 e às 7h está no volante do caminhão, com capacete e outros equipamentos de segurança. Faz algumas viagens até o pé da barragem de Germano. Descansa num lugar mais alto quando, de repente, por volta das 11h, sente a terra tremer.

Renato estranha e decide acionar seu rádio em busca de notícias. Toda a comunicação entre a Samarco e os funcionários da mina é feita por um sistema de três faixas de rádio. As faixas 1 e 2 são usadas para comunicação geral e a faixa 3 apenas para emergência. Renato sintoniza as estações, mas todas estão mudas. Nenhum aviso. Olha para os lados, mas não vê nada de anormal. Apenas o vale de morros destruídos pela mineração.

A rotina da mina segue. Explosivos continuam a ser detonados para derrubar nacos de montanha para a extração do minério de ferro. Pausa para o almoço. Por volta das 13h, outro tremor. A mineradora não emite nenhum alerta pelo rádio. Renato e outros empregados continuam trabalhando normalmente.

Às 15h30, uma voz desesperada é ouvida na faixa 1:

– Corre, corre que o dique 1 rompeu. Pelo amor de Deus!

No jargão dos funcionários da mina, dique 1 é o nome da barragem de Fundão. Uma grande represa onde se armazenam 55 milhões de metros cúbicos, o equivalente a 21 mil piscinas olímpicas, preenchidas por lama. Renato sabia que, se aquilo vazasse, desceria engolindo tudo pelo caminho.

O motorista olha ao redor e não vê nada. Não consegue avistar onde o dique 1 se rompeu. “Não lembro direito o que pensei naquela hora. Só corri o mais rápido que pude para fora dali”.

Enquanto corria, ia passando pelas faixas de rádio. Ouve de um dos colegas:

– Quem tava lá embaixo [do dique 1] morreu. Já era.

Renato teme pelos amigos da empresa. O pânico se instala. Não há rota de fuga para os funcionários, que correm cada um para um lado. Nenhum sinal de sirene é emitido. Nenhuma informação oficial até aquele momento, apenas os avisos aflitos de colegas pelo rádio.

Já na portaria da empresa, Renato encontra alguns de seus colegas motoristas. Mas não todos. Ele vê quando um funcionário da mina liga para a delegacia de polícia de Bento Rodrigues, o primeiro distrito de Mariana a ser afetado pela lama da barragem:

– Fala para os moradores deixarem as casas que o dique rompeu — avisa.

Não há nenhum alerta oficial da mineradora à população de Bento, mesmo quando ela tem tempo para agir.

Naquela hora, o presidente da empresa, Ricardo Vescovi, estava na sede da mineradora em Belo Horizonte, a cerca de 120 quilômetros do desastre, numa reunião sobre segurança do trabalho. O telefone de um dos participantes toca. Ele vira para Vescovi e diz:

– Rompeu a barragem de Fundão.

– Como assim? Como a barragem rompeu? Desceu? — pergunta Vescovi.

O presidente aciona outros dez profissionais da empresa, e o grupo parte para Mariana.

Bento Rodrigues era conhecido por todos na mineradora como o ponto habitado mais vulnerável em caso de acidente na barragem. A frase dita pelo funcionário era bem indicativa da gravidade do problema. Sem um plano de emergência, a Samarco se vale dos heróis locais para disseminar o aviso e salvar vidas.

Pouco antes das 16h, Paula Alves, 36 anos, sai desembestada pelas ruas de Bento com sua moto, uma cinquentinha, buzinando e avisando seus vizinhos para saírem de suas casas, pois a lama já lambe a entrada do povoado. “A barragem rompeu, a barragem rompeu!”, grita pelas ruas. Para eles, meia palavra bastava. Eles sabem bem a qual barragem Paula se refere. Ela consegue tirar mais de 400 pessoas da rota da destruição. Os moradores de Bento dizem que não receberam nenhum aviso da Samarco.

Minutos depois, um tsunami de lama é expelido da barragem. Com a força da gravidade, ela começa a se deslocar numa velocidade entre 5 e 6 quilômetros por hora, arrastando tudo que encontra pela frente. A lama não demora a dizimar a região, enterrando carros, casas, pomares, galinheiros, jardins, fotografias, memórias e vidas. São 62 bilhões de litros de barro jorrando por duas das barragens da Samarco, Fundão e Santarém. É algo quase inimaginável, mas tente visualizar 25 mil piscinas olímpicas cheias de lama vazando violenta e descontroladamente sobre a natureza. O maior desastre ambiental da história do Brasil acontecia naquele momento.

Um gabinete de crise no bar.

Os pássaros habituais da região eram pouco a pouco substituídos por helicópteros da polícia e de canais de TV, que começam a sobrevoar a área em busca de imagens e de sobreviventes. Bento Rodrigues vivenciava uma tragédia, e passou a ser conhecida em cadeia nacional.

A lama avançava impiedosamente. E era muito barro para simplesmente estacionar naquele distrito. Depois de devastar Bento, o mar de lama invade o rio Gualaxo do Norte, um subafluente do Rio Doce, com 12 metros de largura durante períodos de seca. Ele nasce em Ouro Preto e deságua em formato de “T” no manso rio do Carmo, bem no centro de uma cidadezinha de 6 mil habitantes, chamada Barra Longa.

Naquele momento, às 17h, o taxista Antônio Eusébio do Carmo, 59, encerra seu expediente em Barro Branco, zona rural de Barra Longa. As professoras que ele costuma transportar todo dia de volta para casa já o aguardam dentro do carro, quando ele recebe uma ligação da irmã Sueli.

“Meu filho acabou de me passar uma mensagem dizendo que estourou uma barragem lá em Mariana, desceu muita lama e vai arrasar Barra Longa”, diz a voz do outro lado da linha, em tom desesperado. Toninho Papagaio, como é conhecido na cidadezinha o homem de cabelos brancos até os ombros, com ar de garotão reforçado pelos óculos escuros servindo de tiara, desliga o telefone, coça a cabeça e já aciona a internet no smartphone. Confirma no Google a notícia dada pelo sobrinho, mas não encontra nada que possa ameaçar sua cidade.

Vai para a frente da TV à espera de novidades. Horas depois, no Jornal Nacional, já às 20h30, ouve William Bonner falar: “Uma barragem cheia de rejeitos de mineração se rompeu hoje à tarde na região central de Minas Gerais e cobriu de lama parte de um distrito da cidade de Mariana. As informações preliminares são de que uma pessoa morreu e quatro ficaram feridas, mas ainda não há informações de quantas estariam desaparecidas”.

As imagens mostram uma irreconhecível Bento Rodrigues, completamente soterrada por um mar de lama, desde as 15h20 daquele dia.

Se a lama insistir em descer, certamente se perderá no meio dos vales, pensou Toninho. Se decidir vir pelo rio, não encontrará vazão para avançar.

Toninho começa a fazer cálculos, e se tranquiliza. Já havia passado cinco horas desde o rompimento. Além disso, os 60 quilômetros que separam Bento de Barra Longa seriam demais para a lama percorrer. “Não tem como chegar aqui, não. É impossível”, diz o taxista à irmã, tentando acalmá-la, embora ainda não soubesse do volume magistral de rejeitos que escorriam da barragem da Samarco. Se a lama insistir em descer, certamente se perderá no meio dos vales, pensou Toninho. Se decidir vir pelo rio, não encontrará vazão para avançar.

Dias seguidos de seca tinham deixado o rio do Carmo, que corta a cidade, tão baixo que dava para atravessá-lo com água pela canela. Se ele estivesse cheio como antigamente, aquele barro todo ainda teria alguma chance. Mas já há um bom tempo o Carmo não metia medo nem nas crianças, que antes competiam para ver quem vencia a correnteza e chegava mais rápido na outra margem.

A cidade de Barra Longa, margeada pelo Rio do Carmo, abastecido pelo Gualaxo do Norte, vindo de Mariana (à esq).

“Acho que a lama vai se perder e chegar aqui uma mixaria”, diz Toninho Papagaio, que herdou o apelido do pai, um senhor que falava demais e contador nato de “causos”, como ele. Em todo caso, ele decide avisar o prefeito da cidade, seu amigo Fernando José Carneiro Magalhães (PMDB).

Por volta das 21h30, o taxista corre até a Praça Manoel Lino Mol, a principal da cidade, e avista o prefeito e o secretário Antônio Alcides conversando em frente ao Bar do Nô, ponto de encontro de autoridades durante a semana e de jovens e famílias aos sábados e domingos.

Naquela quinta-feira, os dois discutem assuntos administrativos da cidade, quando são interrompidos por Toninho Papagaio.

– Ô, Fernando, você viu a barragem que rompeu lá em Mariana?

– Não tô sabendo de nada não, Toninho. Que houve?

– Estourou tudo lá, varreu Bento Rodrigues.

Ilustração: Pedro Matallo.

Nessa hora, os três são interrompidos pelo presidente da Câmara Municipal, Leleca Petroleiro, que invade a reunião com o celular em punho. Sem dizer uma palavra, Leleca acessa a matéria do Jornal Nacional e a coloca para o prefeito assistir. Fernando parece surpreso. Olha para o celular e não vê nenhuma chamada perdida.

“Será que vem para cá? Não recebi nenhuma ligação de nenhuma autoridade, dessa Samarco, da prefeitura de Mariana, da defesa civil ou da polícia”, diz aos demais. O grupo avista o sargento Brandão perambulando pela praça e pergunta se o alarme dos bombeiros tinha soado. “Nem sinal. Tudo tranquilo”, responde o sargento.

Por precaução, o grupo decide telefonar para conhecidos que moravam nas redondezas da barragem só para ter uma ideia da dimensão do problema. Uma espécie de central de crise improvisada se forma no pátio do bar do Nô, um espaço ao ar livre à beira do rio cheio de mesas e cadeiras reservados para interessados em jogar conversa fora e espantar o tédio. Os homens abrem um mapa e concluem: se por uma chance remota a lama chegasse até ali, ela só poderia vir do Gualaxo do Norte.

Toninho fica encarregado de telefonar para as pessoas que moram às margens do Gualaxo. Ele ainda colecionava uma série de contatos de clientes da época em que vendia carne de porta em porta naquela região. Começa pelos moradores de Camargos e Monsenhor Horta, ainda distritos de Mariana, e vai descendo rio abaixo, vilarejo por vilarejo. Às 22h, ele telefona para o primeiro da lista, sem sucesso. Tenta todos os números e nada. De duas uma: dormiam ou já tinham abandonado suas casas.

Quase simultaneamente, às 22h22, o presidente da Samarco, Ricardo Vescovi, publica no Facebook da empresa um vídeo sobre a tragédia: “O rompimento foi identificado na tarde de hoje e a Samarco imediatamente acionou seu plano de ação emergencial de barragens, colocando em ação, juntamente com Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, Polícia Militar e outras instituições competentes, todas as ações previstas nesse plano… As autoridades competentes já foram devidamente informadas e já estão prestando neste momento todo o apoio e toda a solidariedade.”

Barra Longa e outros vilarejos, como Paracatu de Baixo, em Mariana, estavam fora do plano de ação emergencial da mineradora. Não havia nenhum protocolo previsto para a eventualidade de um estouro de barragem levar a lama até Barra Longa.

Apenas por volta da meia noite, Toninho consegue encontrar alguém do outro lado da linha. Era a senhora Mirtes Gonçalves das Graças, que tinha nove pessoas da família morando em torno do rio Gualaxo. Com exceção do pai dela, que vive no alto de uma montanha, seus familiares já haviam perdido a casa para o barro pouco antes da ligação. “Toninho, meus irmãos disseram que as pontes de Paracatu de cima e de baixo caíram, a do Bulcão também”, diz por telefone aterrorizada. “O rio de lama comeu até as cachoeiras de Campinas.”

Papagaio havia passado por ali uma semana atrás e se lembrava bem daquela área. As quedas d’água tinham mais de cinco metros de altura e ficavam perto do distrito de Barretos, a apenas 18 quilômetros da cidade. A próxima parada da lama seria Gesteira, já um distrito de Barra Longa. Imagens da enchente de 1979, a pior da história, lhe vieram imediatamente à mente. Naquele ano, choveu vários dias seguidos sem parar na cabeceira dos rios Gualaxo do Norte e Carmo. A água era tanta que inundou as casas de Barra Longa que ficavam às margens do Carmo, arrancou a ponte de Acaiaca, município vizinho, e a arrastou rio abaixo.

Se a água já tinha arrasado aquele lugar, a lama não ia deixar por menos.

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Maria Paola de Salvo é jornalista, formada pela Universidade de São Paulo e mestre em Mídia, Comunicação e Desenvolvimento pela London School of Economics and Political Science (LSE), além de ter especialização em redes sociais pela Columbia University. Paola trabalhou por dez anos como repórter e editora de várias revistas da Editora Abril, entre elas Quatro Rodas e Veja São Paulo. Também já trabalhou para a ONG britânica Development Media International (DMI). Atualmente é gerente de comunicação na Global Health Strategies, consultoria internacional em comunicação e advocacy especializada em temas de saúde global.

Karla Mendes é mestre em jornalismo investigativo e jornalismo de dados pela Universidade King’s College (Canadá). Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais, trabalhou por quase cinco anos como repórter na editoria de economia do Estado de Minas, em Belo Horizonte, e por mais de um ano e meio no Correio Braziliense e na Agência Estado/Estadão, em Brasília. No Rio de Janeiro, Karla atuou por quatro meses como repórter de economia no jornal O Globo e, há um ano, é correspondente da agência americana SNL Financial na América Latina, cobrindo bancos e seguradoras. Na Espanha, trabalhou no Expansión, maior jornal de economia do país.

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