ELES FIZERAM FOI MORRER

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37 min readSep 15, 2015

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por Lúcio Vaz

Um sistema de condução que contém, em suas características, perfeitas mazelas sociais: o “pau de arara”. Resulta ele de uma carroçaria de caminhão abrigada do sol por uma coberta de lona, o encerado. As pessoas viajam sentadas em pranchas colocadas transversalmente, enquanto, no sentido longitudinal, nos lados e no centro, agarram-se nas madeiras que servem de suporte à improvisada capota. Daí provém o adjetivo da incômoda condução, que lembra um poleiro, onde as criaturas humanas desenvolvem prodígios de equilíbrio para manterem-se apoiadas. LEITE, Francisco Barboza. 1955. O Pau-de-Arara. Revista Brasileira de Geografia; Tipos e aspectos do Brasil: IBGE.

Nazilson Costa, segurança contratado pela prefeitura de Bacuri, município de 16 mil habitantes no litoral do Maranhão, Estado brasileiro onde mais morrem crianças proporcionalmente à população, assistia à televisão quando ouviu o primeiro grito vindo da rua. Passava das 18h, quase noite, do dia 29 de abril de 2014. Nazilson já estava de short e chinelo, esperando sua única filha chegar da escola para que o jantar fosse servido. Pediu para a mulher, Edivaldina, verificar o que estava ocorrendo, enquanto vestia algo para sair de casa. No momento em que ele rompeu pela porta da frente, ela já vinha com a notícia: “A D20 que traz os alunos virou”.

Nayara, a filha de 14 anos, estava entre os 25 acidentados. Naquele dia, ela acordou cedo, tomou café preto, comeu um pedaço de pão e ajudou a mãe nas tarefas de casa. Quando teve um tempo, estudou. Não era mesmo muito de sair de casa, já que era obstinada em seu projeto de se tornar empresária — apesar de não saber em que área gostaria de atuar. Saiu de casa logo depois do almoço, como fazia rotineiramente. O dia parecia igual a tantos outros.

O pai foi numa carreira só para o local do ocorrido, a pouco mais de um quilômetro dali. Percorreu a distância em cinco minutos, enquanto diferentes possibilidades passavam por sua cabeça. Prestativa, Nayara certamente estaria ajudando a meninada mais nova. Talvez, estivesse tonta ou assustada. Poderia estar chorando de medo ou de dor.

A mulher foi de moto e já estava com a filha nos braços quando Nazilson chegou. A menina permanecia inerte. Os cabelos dos quais ela tanto se orgulhava, cuidadosamente penteados a cada manhã, estavam desarrumados e cobertos de poeira. “Ela ainda está viva”, gritou um amigo, ao avistar Nazilson de longe.

Colocaram a filha e mais duas amigas numa camionete Fiat Strada e foram para o hospital municipal de Bacuri, localizado no coração da cidade, a poucos metros de uma praça onde emerge uma estátua de sete metros de altura de São Sebastião, o santo protetor, com quatro flechas cravadas no corpo.

A última vez em que o governo federal enviou recursos para obras e ampliações no hospital municipal foi no já longínquo ano de 1998. Desde então, permanece igual. Para quem olha de fora, o prédio lembra mais uma casa malcuidada, na qual as paredes carcomidas deixam brotar os tijolos e os azulejos manchados.

Na noite do acidente, só havia um médico no hospital: “não tinha nada, aquele sufoco, aquele corre-corre”, como recorda o pai. Eram tantos moradores em busca de informações sobre os feridos que um cadeado foi colocado na porta para evitar a entrada das pessoas. O governo estadual enviou um helicóptero da Polícia Militar para transferir os alunos em estado mais grave para São Luís, a capital maranhense, distante 520 quilômetros.

Nayara não estava entre os alunos removidos. Nazilson deitou a filha em um colchão que estava no chão de um dos corredores lotados. Para um leigo, ela aparentava ter ferimentos leves, como um braço quebrado, uma batida na cabeça e dentes arranhados. Horas se passaram até que ela fosse levada e examinada. Coube a uma enfermeira comunicar ao casal, com voz mecânica e olhos fugidios, enquanto passava pelo corredor, que Nayara não sobrevivera. Segundos após repassar a informação aos pais, a mesma enfermeira deu uma ordem para um auxiliar que passava apressado: era para levar o corpo para o “lugar onde botaram os mortos”.

Menino entra em caminhonete adaptada em Crato (CE). Imagem: Jarbas Oliveira.

Quando fui convidado pelos pais para conhecer o quarto da menina, quatro meses depois, percebi que ele permanecia intocado. A cama foi mantida na mesma posição. Livros, cadernos e retratos seguiram espalhados. Mesmo empregado pela prefeitura, o pai não hesita em apontar os responsáveis pelas mortes.

“O prefeito foi responsável porque não colocou ônibus para transportar os alunos. O motorista também. Eu não acho que foi uma tragédia, foi um assassinato. Agora, a gente quer justiça, porque os nossos filhos morreram, mas não quero que aconteça com os outros”.

Nayara era uma das alunas do colégio América do Norte que todos os dias faziam o trajeto para o povoado Madragoa, distante cerca de 10 km da sede de Bacuri.

Naquele 29 de abril, a caminhonete Chevrolet D20, de cor azul, seguia em velocidade moderada, não mais do que 60 km/h, em uma estrada asfaltada. Na direção, estava Alan Almeida da Silva, de apenas 15 anos, substituindo o motorista contratado pela prefeitura, Rogério Azevedo Rocha, seu padrasto, acometido por uma dor nas costas que o perseguia há alguns meses. Mesmo assim, Rogério viajava agarrado no lado de fora do carro, apoiado no estribo da porta do motorista. Alguns estudantes também estavam fora do veículo, apoiados na traseira.

Menos de um quilômetro antes do povoado, aproximou-se, no sentido contrário, um caminhão Mercedez Benz 1620, de cor vermelha, carregado de pedras e areia. O encontro ocorreu no ponto da estrada conhecido na região como “curva da morte”. O adolescente ficou com medo de uma colisão. Sem pensar, levou as duas mãos ao volante e com um movimento brusco virou o automóvel azul em direção ao acostamento. Do lado de fora, Rogério gritou: “Meu filho, tu vai tirar o carro da pista”.

O padrasto colocou metade do corpo para dentro da caminhonete, esticando o braço e, com mais força do que o garoto motorista, girou a direção no sentido contrário, trazendo a caminhonete para a pista, frente a frente com o caminhão. O menino buscou forças na adrenalina e puxou de volta, para evitar um choque frontal, mas acabou perdendo o controle. Os estudantes que seguiam no estribo traseiro previram o acidente e saltaram, evitando ferimentos mais graves. A caminhonete perdeu a traseira e girou levemente para a direita, fazendo com que a lateral esquerda da carroceria se chocasse com a frente do caminhão. O carro capotou e parou em um barranco. A capota de aço de proteção desprendeu-se e quase todos os estudantes foram jogados para fora.

Uma menina de 14 anos ficou na carroceria e foi esmagada pelo veículo. Morreu no local. A batida foi tão violenta que o crânio de um rapaz estourou no choque com o caminhão e pedaços do seu cérebro ficaram grudados no teto da capota e no asfalto. Outra garota foi prensada pelos bancos e teve o corpo partido ao meio.

O acidente marcou a cidade pela violência, e tornou Bacuri mais conhecida, pelo menos no Maranhão. Durante semanas, os moradores promoveram passeatas para reivindicar melhores condições no transporte escolar. Na Assembleia Legislativa, em São Luís, deputados assumiram os microfones para enviar seus sentimentos às famílias e declarar o luto do Estado pelas mortes.

Após o acidente, a Justiça agiu com rapidez e, em decisão direta do juiz da comarca local, Marcelo Santana, determinou a entrega de ônibus ao município para substituir os paus de arara. O magistrado determinou o envio imediato de sete ônibus que estavam parados no estacionamento da Procuradoria Geral do Estado, na capital. Os ônibus, no entanto, nunca chegaram à cidade. No dia da decisão, os funcionários da Procuradoria não encontraram as chaves de quatro veículos, e conseguiram abrir apenas três. Quando as chaves apareceram e os ônibus seguiram viagem, o governo estadual recorreu da decisão no mesmo dia e conseguiu uma liminar do Tribunal de Justiça suspendendo a entrega dos ônibus. Eles foram interceptados pela polícia no meio do trajeto e levados de volta para São Luís.

Motorista terceirizado acelera um pau de arara. Imagem: Jarbas Oliveira.

A explicação oficial do governo para a interceptação foi a de que três ônibus enviados anteriormente a Bacuri já eram suficientes para suprir a demanda e seguiam um planejamento equânime para todas as cidades feito pela Secretaria de Educação. Diz a nota oficial: “Para beneficiar o maior número de alunos e evitar prejuízos aos demais municípios, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) recorreu da decisão que obrigaria o estado a entregar mais quatro ônibus ao município de Bacuri, além dos três previstos no plano de distribuição”.

Para os governos federal, estadual e municipal, não era novidade que os veículos contratados pela prefeitura de Bacuri tinham condições inadequadas para transportar estudantes. Uma auditoria realizada pela Controladoria Geral da União (CGU), órgão do governo federal vinculado diretamente à Presidência da República, já listava, em novembro de 2012, todos os problemas do transporte local: veículos velhos, em condições precárias e sem cintos de segurança. Para os auditores, os paus de arara eram “insalubres”.

Auditoria da CGU mostrou problemas graves no Maranhão. Reprodução/CGU.

Entre os 27 veículos contratados pela empresa terceirizada Napoli Serviços e Construções, havia sete caminhonetes D20, um caminhão com bancos de madeira sem encosto — todos paus de arara — e vários carros, como Saveiro, Corsa e Uno, igualmente inadequados para o transporte escolar. Além disso, 11 motos levavam crianças, um motorista tinha carteira de habilitação vencida e dois veículos estavam sem placas. A CGU foi taxativa: houve fraude na licitação, com direcionamento, subcontratação irregular e contratação de empresa sem capacidade financeira.

A Napoli já havia sido investigada dois anos antes, por conta de um contrato com a cidade de Benedito Leite, também no Maranhão. De acordo com a investigação, foi impossível encontrar os donos da empresa, já que, “nas visitas realizadas, em horário comercial, o imóvel encontrava-se fechado”. A situação se repetiu em 2012, quando, novamente, os donos não foram encontrados. Em 2013, a empresa acabou substituída em Bacuri, mas os problemas continuaram exatamente os mesmos. A promotora de Justiça, Alessandra Darub, que chegou ao município cinco dias antes do acidente na “curva da morte”, procurou informações sobre os responsáveis pelos paus de arara. Descobriu que a última licitação havia vencido no final de 2013, mas que os serviços ainda eram prestados pela empresa Conservis Ltda. Como não possuía veículos próprios, a empresa subcontratava pessoas da cidade, “muitos sem habilitação, com veículo irregular”, de acordo com a promotora.

A investigação de Alessandra Darub mostra que, na verdade, o transporte escolar virou um grande e lucrativo negócio. A lista dos veículos utilizados pela prefeitura em 2014 era semelhante à de 2012, aquela mesma renegada pela CGU e apontada como irregular pelos auditores. Ou seja, a prefeitura continuou contratando os mesmos carros, apesar de trocar a empresa responsável por fornecê-los.

Segundo o Ministério Público, a prefeitura sequer apresentou cópia do processo licitatório para a contratação do transporte escolar. “Ressalto que tal licitação ganha mais importância ainda quando se recorda que o acidente envolvendo os estudantes bacurienses, no qual oito morreram, ocorreu justamente em 2014”, escreveu a promotora. Darub acusa a prefeitura de forjar a licitação de 2014, “fazendo-a de forma retroativa”.

A administração municipal alega não ter nenhuma responsabilidade pelas mortes, pelo menos na avaliação do prefeito José Baldoino da Silva Nery (PP). Um homem de estatura mediana, cabelos negros cortados rente ao crânio e cara de menino, não parece que ele completará 50 anos em 2015. Vinte dias depois do acidente, Baldoino divulgou uma foto em frente aos veículos que a Justiça mandara sequestrar e mandar para Bacuri. Já era noite e o prefeito pediu que as luzes dos ônibus fossem acessas para dar um tom solene àquele momento. Com olhar cerimonioso, camisa social azul clara para fora das calças, que não conseguiam esconder a protuberante região abdominal, ele distribuiu a foto para os apoiadores locais.

Quando concorreu ao cargo de prefeito pela primeira vez, em 2008, Baldoino declarou ter em seu nome uma casa no valor de R$20 mil. Quatro anos mais tarde, informou oficialmente não ter nenhum bem. Para a Justiça, disse ser comerciante, mas garantiu que seu patrimônio era de zero reais. Seis meses depois do acidente, no entanto, Baldoino e outros envolvidos tiveram mais de R$6 milhões em bens bloqueados pela Justiça.

Em fevereiro deste ano, a Justiça do Maranhão não aceitou recurso do prefeito e decidiu manter o bloqueio, argumentando haver indícios de que “terceiros eventualmente beneficiados com atos ímprobos contribuíram para a tragédia ocorrida no Município de Bacuri”.

Crianças no banco da frente de um pau de arara. Imagem: Jarbas Oliveira.

Em dezembro de 2014, Baldoino foi afastado do cargo de prefeito pela Justiça por conta do acidente. O Ministério Público argumentou que a permanência dele na cadeira poderia atrapalhar as investigações. O juiz de Bacuri, Marcelo Santana, determinou o afastamento por 180 dias, “em função de eventuais fraudes no transporte escolar”. Moradores locais acusaram o prefeito de esconder ônibus novos entre caminhões e máquinas da prefeitura para continuar contratando paus de arara, o que nunca foi provado. A situação do prefeito segue indefinida. No dia 27 de março deste ano, o Superior Tribunal de Justiça o manteve afastado.

Quando estive na cidade, o prefeito, então no cargo, disse que a culpa pelos acidentes deveria recair sobre o governo federal. Baldoino contou ter pedido 15 ônibus ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) assim que assumiu a prefeitura, em janeiro de 2013, mas apenas três foram aprovados. O prefeito reconheceu que o veículo acidentado não era “adequado” ao transporte de alunos, mas disse que o seu objetivo não era “favorecer uma tragédia”, e sim, possibilitar que aqueles jovens “tivessem um futuro melhor”.

Baldoino também apresentou cópia de uma portaria da Secretaria de Educação do Maranhão, de setembro de 2013, que possibilitava a utilização de veículos traçados e caminhonetes adaptadas ao transporte escolar — ou seja, paus de arara — em caso de precariedade de acesso ao município. Não era o caso do povoado de Madragoa. Ele acrescentou que, embora o município transportasse 305 alunos da rede estadual, não recebeu “um único centavo” do governo do Maranhão para custear as despesas com esse serviço. Dos R$60 mil mensais gastos com transporte escolar, R$32 mil eram consumidos pelos alunos da rede estadual.

Fraudes Que Matam.

Um acidente como o de Madragoa já seria grave se fosse incomum. Não é. É um entre as dezenas que ocorreram no transporte de estudantes no Brasil na última década — a maioria deles na região Nordeste, a mais pobre do país. Todos os dias, crianças que moram nos sertões são transportadas nos chamados pau de arara. Eram eles que transportavam retirantes nordestinos para o Sul do país em meados do século passado. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, viajou em um pau de arara quando deixou o Nordeste rumo a São Paulo. São os mesmos que ainda hoje carregam milhares de crianças pelo país.

Pelo menos 50 mortes já aconteceram nos últimos dez anos, mas o número é subestimado por um motivo simples: esses casos não constam nas estatísticas oficiais. São registrados nos livros policiais como “acidentes de trânsito com vítima fatal”.

Os acidentes representam as consequências reais — e mortais — de diferentes tipos de fraudes que contaminam a prestação do serviço de transporte escolar no Brasil, mais notadamente, na região Nordeste. As mortes são tragédias anunciadas, considerando-se o fato de que as irregularidades encontradas por centenas de auditorias da CGU são a regra e não exceções.

As investigações registram a ação intermunicipal e interestadual de agentes públicos e privados atuando em conjunto para desviar dinheiro público. Para isso, fraudam licitações e superfaturam contratos, ao mesmo tempo em que oferecem veículos em péssimas condições, com pneus carecas, sem cinto de segurança, com extintores de incêndio vencidos, vidros quebrados, ferrugem e buracos na lataria, muitos com mais de 20 e até 30 anos de uso. Das mais de 10.000 páginas analisadas para esta reportagem de auditorias realizadas em 1.145 municípios, em 22 unidades da federação, nos últimos 10 anos, emergem algumas conclusões:

Imagens: Jarbas Oliveira

- Em um terço dos casos, os veículos eram inadequados para o transporte de estudantes. Em 150 cidades, os motoristas contratados não tinham habilitação adequada para esse serviço, sendo que, em 40 casos, os condutores tinham a carteira de habilitação vencida ou simplesmente não tinham habilitação.

- A falta de fiscalização por parte das prefeituras abre caminho para fraudes. Em 182 municípios, foi constatada a total falta de controle sobre os horários, os trechos e a quilometragem percorrida, além da qualidade dos serviços.

- As prestações de contas de 147 prefeituras estavam irregulares.

- A corrupção é constante. Em 584 municípios, foram encontradas irregularidades nas licitações, desde questões fiscais e contábeis até direcionamento, conluio, fraude e superfaturamento.

- Prefeituras e governos estaduais se mantêm omissos ou coniventes, mesmo sendo formalmente alertados pelos órgãos de controle. Em alguns municípios, a terceirização desse serviço consome milhões de reais todos os anos.

O termo pau de arara é usado para descrever carros vendidos para o transporte de cargas e adaptados para levar pessoas. Na carroceria do veículo, são colocadas tábuas que servem de assento, enquanto uma lona serve de cobertura. No passado, pau de arara significava uma vara utilizada para o transporte de pássaros.

Funcionava assim. Os responsáveis por levar as correspondências para as cidades mais longínquas do sertão pernambucano eram chamados de estafetas. Após a entrega, feita a pé, de cartas, valores para depósito, jornais, comida, entre outros produtos, os estafetas aproveitavam que o peso havia diminuído e arrumavam uma madeira para acorrentar pelos pés araras, papagaios, jandaias e periquitos. Esses animais já tinham uma clientela certa no Recife, a capital. Segundo o folclorista Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, o termo migrou para designar o meio de transporte improvisado em razão da algazarra feita pelas aves, similar à dos passageiros.

Escreveu Câmara Cascudo: “O improvisado e precário arranjo para acomodar as famílias, a promiscuidade, o desasseio, o rumor incessante das vozes de homens, mulheres e crianças, associou o caminhão à imagem do pau de arara, gradeado de madeira em que os psitacídeos são levados para os mercados citadinos”.

Hoje, as histórias envolvendo os paus de arara se repetem, cidade após cidade. Estudantes que vivem nas zonas rurais passam horas indo e voltando das escolas, normalmente localizadas na sede dos municípios. Dados do próprio Ministério da Educação mostram que, em Alcinópolis, cidade com menos de 5 mil habitantes no Mato Grosso do Sul, os estudantes de uma rota acordam às 3 horas da madrugada para pegar o ônibus. Em seguida, viajam por 3 horas e 44 minutos até a escola. Somando-se ao trajeto de volta para casa, ficam por 7 horas e 30 minutos dentro do veículo todos os dias, muito mais do que permanecem em sala de aula. Em União (PI) e Nobres (MT), o percurso dura 4 horas.

Os dados recolhidos pelo governo federal sobre o transporte escolar são incompletos. Os documentos são, por vezes, omissos. Apesar de dispor de pesquisas que chegam a todas as escolas do país, o governo não parece ter interesse em saber quantos alunos ainda utilizam os paus de arara. O censo escolar de 2013, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia que faz levantamento de dados para o Ministério da Educação, revela que 8,7 milhões de estudantes brasileiros usam o transporte escolar, sendo 4,7 milhões na zona rural. Pelas características próprias da Região Amazônica, 760 mil seguem para a escola em barcos, geralmente em precárias condições de segurança. A bicicleta é meio de transporte para 26 mil alunos. Em pleno século 21, a tração animal é utilizada por 1.240 estudantes.

Cenas flagradas em auditorias federais, em 2004, no Nordeste. Reprodução/CGU.

Os paus de arara não são contabilizados oficialmente, aparecendo sob a rubrica “outros”, que representam o meio de transporte de 1.146.715 estudantes. É nessa categoria que estão incluídos os caminhões e caminhonetes adaptados, os carros de passeio e as motos. Nem mesmo alguns esforços independentes foram capazes de mapear de forma precisa o uso desse tipo de transporte.

Um estudo realizado pelo FNDE e pela Universidade de Brasília, em 2009, informa que “o levantamento em campo demonstrou grande variedade de veículos em operação no transporte escolar rural”. A pesquisa, no entanto, coletou dados “apenas daqueles adequados ao transporte de passageiros, ou seja, os classificados na categoria ônibus”. A coordenadora técnica do trabalho, a professora Yaeko Yamashita, do Programa de Pós-graduação em Transportes da UnB, admitiu que a equipe encontrou muitos paus de arara pelo caminho no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, embora não os tenha quantificado. “É o que mais tem”, resume a professora.

Um dado mais preciso é encontrado na Pesquisa de Caracterização do Transporte Escolar, realizada pelo Centro de Formação de Recursos Humanos em Transportes (Ceftru), da UnB, em 2007. A partir de questionários respondidos pela internet por 2.277 prefeituras de todo o Brasil, os pesquisadores descobriram que 17% dos veículos utilizados eram caminhões e caminhonetes, 3% eram carros de passeio, e 1%, motos. A Kombi, que saiu de linha no ano passado por não apresentar segurança aos passageiros, transportava 21% dos alunos brasileiros. Ou seja, embora a pesquisa não tenha rigor estatístico pleno, ao menos um em cada cinco alunos da rede pública dentro do universo considerado no levantamento vão e voltam da escola usando paus de arara.

Conforme esse levantamento, a média de idade dos veículos encontrados Brasil afora é de 16 anos, mas alguns deles foram fabricados em 1932. Continuavam sendo utilizados aos 75 anos de vida, portanto. Na realidade, em 25 Estados, havia carros em pleno uso com mais de 70 anos de fabricação. Quando esses veículos foram produzidos, a esmagadora maioria dos pais dos alunos que os utilizavam não eram nascidos.

Para completar, a pesquisa demonstra que, em média, 20% dos veículos usados para transportar alunos levavam passageiros além do limite legal. Em alguns casos, chegava-se a quatro vezes a lotação permitida. Uma das cenas que flagramos mostra 23 crianças e adolescentes saindo da carroceria de uma caminhonete, em Farias Brito (CE).

Imagens: Jarbas Oliveira.

Outro dado importante para entender as fraudes financeiras: a frota terceirizada representava mais da metade dos casos — ou seja, a maioria dos veículos utilizados para o transporte dos alunos não pertencia às empresas contratadas pelas prefeituras.

BRIO obteve todas as planilhas tabuladas pelos pesquisadores (a íntegra desse estudo nunca foi divulgada). O documento não deixa dúvidas quanto ao uso indiscriminado dos paus de arara: dos 39 mil veículos registrados, 2.124 eram caminhões e 5.157 eram caminhonetes. Do total de caminhões, 95% circulavam pela região Nordeste — apenas dois foram encontrados na região Sul.

No Nordeste, havia mais caminhonetes circulando do que ônibus — eram 4.812 desses veículos adaptados contra 4.091 ônibus. O gerente do projeto do Ceftru, o professor Willer Carvalho, defende a ampliação do número de escolas rurais para reduzir o tempo de deslocamento dos estudantes. Hoje, por uma decisão das prefeituras, a maior parte dessas escolas está concentrada nos centros das cidades. É mais barato e prático, pelo menos para o governo.

Em 2007, o governo federal lançou o programa Caminho da Escola, para reequipar a frota do transporte escolar rural. Com R$6 bilhões já investidos, foram distribuídos 32 mil veículos. No entanto, para atender a toda a demanda do meio rural, segundo os cálculos do próprio governo, será preciso triplicar ou quadruplicar o número de veículos já entregues.

‘Cuidar Das Pessoas’.

Nos 14 municípios que visitei para esta história, em um total de 8.230 quilômetros percorridos, há semelhanças entre as causas dos acidentes e o descuido do poder público. Pelo caminho, cruzei com oito casos fatais que provocaram a morte de 15 crianças e adolescentes entre quatro e 17 anos. Eram filhos de famílias pobres, algumas miseráveis, moradores dos sertões nordestinos, a maior parte em municípios do semiárido, com baixo índice de desenvolvimento humano, castigados pela seca e pelas tragédias. Os acidentes geralmente acontecem no meio rural, no deslocamento para a sede dos municípios ou entre distritos do interior.

Foi assim no povoado serrano de Santana dos Guerra, no sertão de Pernambuco, localizado a 12 km da sede do município de Santa Cruz da Baixa Verde. Ali vivia Marcos Vinícios, um menino que queria ser o novo Neymar. Aos nove anos, já na quarta série, impressionava pelos conhecimentos adquiridos na escola. A mãe, Selma Lima da Silva, de 31 anos, lembra que o menino falava de coisas sobre as quais ela mesma não entendia. Era melhor na escola do que na bola.

Numa noite quente de fevereiro de 2013, o menino foi dormir tarde, pois havia acompanhado a estreia do São Paulo na Libertadores, seu time do coração desde quando começou a acompanhar futebol, aos cinco anos de idade. Naquela noite, o garoto quase não pregou o olho, rolando na cama irritado, depois da derrota de 2 a 1 para o Atlético Mineiro.

Por isso, a mãe o deixou acordar mais tarde na manhã seguinte. Andou um pouco de bicicleta, tomou banho e almoçou feijão com arroz e dois ovos estrelados, preparados pela avó Francisca. Estava satisfeito, pois aquele era um dos seus pratos prediletos, servido apenas em alguns dias de cada mês. Não deu nem tempo de descansar um pouco no sofá vermelho surrado no centro da sala, local em que gostava de assistir ao programa de esportes da hora do almoço, pois teve de correr para pegar o caminhão que levava as crianças do povoado para a cidade. Os 12 quilômetros de distância costumavam levar quase uma hora, por conta das condições da estrada de terra batida.

O menino passou correndo pela avó, e ela sentiu um arrepio nos braços quando o velho caminhão gaiola Ford F-4000 deixou o local acelerado, numa descida em curva, cheia de buracos, com uma caixa de som presa na capota, tocando música a todo volume. “Não sei pra que aquelas carreiras”, murmurou dona Francisca, enquanto acompanhava o neto desaparecer no horizonte. A vida de Vinícios seria interrompida pouco mais de um quilômetro adiante.

Ele viajava na cabine a pedido dos pais porque estava um pouco gordinho e tinha dificuldade para subir na carroceria. Naquele dia, a estudante Maria Aparecida, a Cidinha, estava na porta, mas ele logo pediu para trocar de lugar, porque se sentiu apertado por um carona, Edézio, de 25 anos, que viajava ao lado do motorista, Edvanilson Gomes da Costa. Ninguém usava cinto de segurança.

Vinícios ainda cruzou pela última vez com os pais, que retornavam na moto da família vindos de Serra Talhada, município vizinho, trazendo compras para a despensa. Cerca de 100 metros adiante, numa reta da estrada de terra empoeirada, o motorista sentiu que a roda traseira direita do caminhão havia passado por cima de algo. Imediatamente, ouviu um grito de Cidinha: “Nilson, o menino não está mais aqui”.

Caminhonete transporta estudantes em rodovia no Ceará. Imagem: Jarbas Oliveira.

Edvanilson olhou para a direita e viu a porta aberta. Ele havia caído. O motorista freou imediatamente e parou o caminhão. Esqueceu de desligar a música, que continuava tocando pela caixa de som. Todos desceram da cabine. Alguns estudantes que seguiam na boleia haviam acompanhado toda a cena, mas ninguém ousou perguntar a eles o que tinha acontecido. Estavam calados e com os olhos arregalados.

Mais tarde, todos entenderam o que havia acontecido. Quando a porta se abriu repentinamente, o menino caiu do carro em movimento, bateu com a cabeça no barranco e seu corpo voltou inerte para baixo do caminhão. A roda traseira da direita passou pelo corpo no sentido transversal. Eram 11h56 da manhã. Um rápido exame feito pelo motorista evidenciou que Vinícios havia quebrado o pescoço, que estava mole. Seu corpo foi levado para o hospital Hospam, em Serra Talhada, 18 quilômetros adiante. Já estava sem vida.

Passado um ano e meio do acidente, outro caminhão F-4000 passa diariamente em Santana dos Guerra, por volta das 11h, para transportar os estudantes da localidade. O pai do menino que queria ser o Neymar não consegue falar sobre o assunto. Balbucia frases curtas, entrecortadas, com profunda tristeza. “É difícil falar”. “É muita saudade”. “Ele era o meu tudo”.

O jeito que Moisés Onório da Silva encontrou para tocar a vida é não ficar muito tempo em casa. Donos de um sítio de oito hectares, os Silva cultivam andu (feijão de pau), milho, fava, feijões de corda e de arranca. Tinham uma junta de bois e algumas ovelhas, mas tiveram que vender para não perder os animais por conta da seca. O jeito é trabalhar na colheita de cana em São Paulo e Mato Grosso durante oito ou nove meses todo ano. Quando está em casa, ouve as músicas sertanejas preferidas do filho. O menino gostava especialmente de Chico Rei e Paraná.

“Corri um mundão. É muito sofrido, mas compensa. Aqui, o emprego é pouco e, quando aparece, é sem ficha [carteira assinada]. Lá fora é tudo fichado, tem FGTS, seguro desemprego”.

A investigação policial verificou que a empresa terceirizada pela prefeitura de Santa Cruz da Baixa Verde, a BPM Serviços, não apresentou comprovação de vistoria no veículo. Os pais do menino suspeitam que a maçaneta da porta estava com defeito. O inquérito concluiu que o motorista contribuiu para a morte porque não orientou Vinícios a colocar o cinto de segurança, deixou o garoto viajar perto da porta e ainda transportou um número excessivo de pessoas na cabine, sendo que um deles nem era estudante. O motorista também não tinha carteira de motorista adequada para o transporte de passageiros.

O promotor de Justiça Felipe Akel Araújo apresentou denúncia à Justiça em agosto de 2013. Diz o documento: “O veículo era impróprio para o transporte de pessoas, quiçá de alunos. O delito revestiu-se de gravidade, pois sua conduta imprudente e negligente ceifou a vida de uma criança de apenas nove anos, causando comoção social”. O processo judicial foi aberto em outubro daquele ano, mas ainda não chegou a nenhuma definição.

Alunos fazem fila para entrar em caminhonete. Imagem: Jarbas Oliveira.

Santa Cruz é um município relativamente pequeno, com 116 quilômetros quadrados. A cidade está encravada em uma região plana, entre as montanhas que desenham o Vale do Pajeú. Com menos de 12.000 habitantes e distante 445 km do Recife, é conhecida por concentrar o maior número de engenhos de rapadura de Pernambuco. Seus moradores a chamam de Capital da Rapadura.

Foi nesse mesmo sertão que nasceu Lampião, o rei do cangaço. Todo mês de junho, jovens e velhos se vestem com farda de algodão azul, lenço no pescoço, chapéu de couro, alpargatas e cartucheiras de flandres, e saem pela cidade carregando armas de fogo de cano curto e largo, os bacamartes. São os bacamarteiros de Santa Cruz da Baixa Verde, que desfilam ao som do forró e atiram grandes cargas de pólvora seca.

Durante a festa dos bacamarteiros, que ocorre na praça central, até mesmo os paus de arara abrem passagem. É ali que funciona a rodoviária dos veículos adaptados para os estudantes, local em que eles passam a tarde estacionados. Todos trazem na porta uma placa que informa: “Escolar. BPM Serviços — Tradição e Qualidade. Prefeitura Municipal de Santa Cruz da Baixa Verde. Cuidar das pessoas é a nossa grande obra”. Os estudantes deixam as escolas no final da tarde e caminham até a praça, onde embarcam nas gaiolas motorizadas.

Quando passei pela cidade, pelo menos uma dúzia de caminhões abertos, cobertos com lonas, deixou a praça e pegou a avenida que dá acesso à estrada estadual, em velocidade excessiva para o local e para o tipo de carga que seguia na carroceria. Carga, bem entendido, são os estudantes. A morte de Vinícios não foi exatamente uma surpresa. Em 2012, um acidente já havia deixado alunos com fraturas expostas, escoriações e pancadas na cabeça. Nem o acidente de 14 de fevereiro de 2013 foi capaz de mudar o transporte escolar no município sertanejo que se orgulha de cuidar das pessoas.

Máfias Do Pau De Arara.

Cuidar das crianças é um dos motes do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff — o bordão do novo governo é Pátria Educadora. Para tocar o projeto, a presidente, primeiro, convidou Cid Gomes, ex-governador do Ceará. Sua passagem pelo ministério durou três meses. Após discutir com parlamentares, ele foi substituído pelo filósofo Renato Janine Ribeiro. O Ministério da Educação se recusa a fazer qualquer comentário sobre os paus de arara, depois de três pedidos de entrevista feitos por BRIO nos últimos quatro meses.

O Ceará é o Estado onde investigações de diferentes órgãos encontraram máfias que já desviaram pelo menos R$300 milhões em contratos para fornecimento de transporte escolar às prefeituras. Apenas em 2011, segundo dados do Tribunal de Contas dos Municípios, os contratos para fornecimento de transporte escolar atingiram R$310 milhões. Os desvios no mesmo período, segundo a CGU, ficam entre 30% e 50% dos valores totais pagos.

Normalmente, o caminho do dinheiro é quase simplório. A verba para a contratação de transporte escolar acaba nas contas de empresas criadas especificamente para assinar contratos com essas prefeituras. Segundo o Ministério Público Federal, “é recorrente, em todos nos municípios [do Ceará], a subcontratação ilegal da execução do transporte escolar, o que tem acarretado sistemático prejuízo aos cofres públicos”.

Foi o que aconteceu em Comocim, cidade centenária, com casarões do século XIX e praias com enormes dunas brancas, falésias, manguezais e áreas ainda selvagens, ao lado da famosa Jericoacoara. No final de 2014, a paradisíaca região ganhou notoriedade internacional depois do assassinato de uma turista italiana. Por lá, descobri outra história.

Auditores analisaram o serviço de transporte escolar nas 179 rotas de Comocim, com cerca de 60 mil habitantes, e descobriram que “não existia um único veículo de propriedade das empresas contratadas, tampouco um único motorista funcionário dessas firmas”. Na realidade, as empresas haviam apenas sido criadas para funcionar de intermediárias entre a prefeitura e os proprietários dos veículos, todos moradores locais, muitos com ligações políticas. No processo de licitação, para comprovar que tinha capacidade e experiência com transportes, uma das empresas apresentou um contrato de prestação de serviço para uma funerária, mesmo carro que acabaria transportando os alunos.

Apenas no Nordeste, 19 acidentes com transporte escolar mataram crianças nos últimos anos.

A intermediação era muito bem recompensada. As planilhas de preços mostram que as contratadas, sem arcar com nenhum custo, pagavam aos proprietários dos veículos pouco mais da metade do valor que recebiam da prefeitura. A margem de lucro variava entre 43% e 118%, dependendo da rota.

Apesar do alto valor cobrado pela intermediação, os veículos subcontratados não cumpriam as mínimas exigências do Código Brasileiro de Trânsito. Caminhonetes D20 transportavam crianças de três a seis anos na carroceria. Em algumas, bancos de tábua corrida, soltos, sem fixação no lastro da caçamba, deixavam aparecer pregos enferrujados, que “picavam” alguns alunos que queriam sentar. Outros veículos apresentavam pneus excessivamente gastos e vidros trincados no para-brisa.

Os auditores concluíram que o transporte escolar apresentava riscos de acidentes com sérias consequências para a integridade física dos alunos e potenciais prejuízos financeiros para a administração pública, que teria de arcar com despesas decorrentes de acidentes.

O transporte é tão precário em Comocim que presenciei uma cena incomum. A caminhonete verde entrou pela avenida principal, por volta das 6h40, transportando quatro crianças de menos de seis anos de idade na carroceria, sem o acompanhamento de nenhum adulto. Meninos e meninas com idade para brincar de carrinhos, super-heróis ou bonecas sambavam de um lado para o outro no local de carga do veículo, que avançava velozmente pela rua. Acompanhei o trajeto por algumas ruas, quando vi o motorista estacionar nas proximidades do cemitério. A embreagem estava quebrada.

“Eu vinha só na segunda e na quarta marcha. Mas agora não deu mais”, resmungou o motorista, camisa aberta no peito e chinelo de dedos no pé.

Deixou as crianças na caminhonete e saiu sem dar explicações. Na rua quase deserta, os estudantes brincavam de jogos de adivinhação e cantavam músicas infantis. Após 15 minutos, o motorista voltou com um táxi. As crianças entraram no banco de trás do Gol branco e seguiram viagem até a Escola Municipal Deputado Murilo Rocha Aguiar. No caminho, o táxi parou para pegar mais três estudantes, que se juntaram às outras quatro, todas acomodadas no banco de trás, sem cintos de segurança.

Para os prefeitos dessas cidades, a falta de verbas e a grande distância entre as casas e as escolas obrigam os administradores públicos a improvisarem. No Ceará, no entanto, a criatividade é marca registrada quando se trata de repassar verbas por meio de subcontratações.

No município de Independência, na região do Sertão de Crateús, as empresas vencedoras das licitações para o serviço de transporte escolar sublocaram todas as rotas do município. Mais uma vez, os veículos eram cedidos por moradores da região. Mais uma vez, as empresas recebiam da prefeitura valores em torno de 40% acima do que pagavam aos donos dos veículos. As duas empresas eram apresentadas como concorrentes e diziam não ter nenhuma relação entre elas. Coincidência ou não, ambas as fornecedoras tinham sede no mesmo imóvel, uma casa azul escura com um muro alto que impede a visão do que se passa lá dentro, localizada em Fortaleza, distante 300 km de Independência.

Com pau de arara quebrado, alunos pegam um táxi em Comocim (CE). Imagens: Lúcio Vaz.

Em um dos trechos da investigação, lê-se: “Nenhum veículo que realiza o transporte escolar está registrado no nome das mencionadas empresas, bem como não existem motoristas com vínculo empregatício com as mesmas, o que demonstra que essas empresas são apenas intermediárias na execução do transporte escolar. Como consequência, está ocorrendo sobrepreço nos valores dos serviços prestados, pois o município teria grande economia se houvesse contratado diretamente com os proprietários de veículos da própria região, ou seja, os mesmos que foram subcontratados pelas empresas vencedoras das licitações”.

A Transmaster funcionava no pavimento superior e a S.C. Serviços e Locações, no térreo. Para tentar se diferenciar, as numerações no muro da casa eram diferentes para as duas empresas. A primeira ficava no 492. A segunda, no 500. Só que elas dividiam o mesmo imóvel. Segundo os investigadores, “as empresas em referência não apresentam estrutura logística condizente com a magnitude dos contratos firmados”.

Há suspeitas de alinhamento de preços entre as cotações e propostas, de acordo com documentos judiciais obtidos por BRIO. Os valores oferecidos pela Transmaster são sempre 0,98% mais caros do que os fornecidos pela S.C. Serviços. Além disso, uma das proprietárias da Transmaster aparecia como empregada na outra empresa. Como resultado, as duas locadoras foram acusadas de fraude e conluio em processos de licitação para fornecimento de transporte escolar. Em dezembro de 2014, um oficial de justiça tentou encontrar os proprietários da Transmaster, mas eles estavam em “lugar desconhecido”.

A prefeitura de Independência tenta justificar a escolha das empresas, argumentando que “a subcontratação é práxis genérica em todo o Estado do Ceará, como forma de execução dos serviços de transporte escolar”.

É verdade. Essa situação está espalhada. BRIO descobriu que, mesmo sem qualquer carro registrado e acusada de não ser capaz de oferecer os serviços, a Transmaster assinou 269 contratos com 39 municípios cearenses, entre 2006 e 2014. Para isso, recebeu R$69,5 milhões. No mesmo período, a S.C. Serviços assinou 241 contratos com 48 municípios, recebendo R$ 52,8 milhões. Em alguns casos, ambas as empresas assinaram contratos com as mesmas cidades. Em conjunto, as duas empresas foram contratadas por 62 dos 184 municípios do Estado, ou 34% do total.

Nos últimos dois anos, alguns prefeitos foram formalmente acusados de desviar o dinheiro destinado ao transporte escolar por conta do uso desse tipo de empresas. É o caso de Samuel Boyadjian, prefeito de Paramoti.

Ônibus disponíveis também estão em péssimas condições. Reprodução/CGU.

No ano passado, o prefeito foi acusado de desviar R$ 1,16 milhão do dinheiro que deveria ir para o transporte escolar, mas acabou em uma empresa que não tinha carros e contratou paus de arara sem segurança — seguindo a mesma lógica de terceirização irregular. De acordo com os Procuradores, os donos dos paus eram aliados políticos e partidários do prefeito e foi impossível encontrar a empresa que ganhou o processo de licitação. Boyadjian foi eleito pela primeira vez em 2008, quando ele declarou ter bens totalizando R$ 1 milhão. Em 2012, quando foi reeleito, já tinha dobrado seu patrimônio, totalizando R$ 2,4 milhões.

Os gastos milionários com esses subcontratos não poupam nem mesmo os municípios mais miseráveis do Ceará, como o caso de Granja, cujo IDH de 0,559 coloca a cidade na penúltima colocação em desenvolvimento humano do Estado. Em 2010, metade da população do município com 25 anos ou mais era analfabeta e 43,6% das pessoas viviam em situação de extrema miséria.

Granja é uma cidade muito pobre, mas existe por ali pelo menos um caso de sucesso, desconhecido da maior parte dos moradores locais. Trata-se da empresa Barreira Transportes, que recebia mensalmente R$ 333 mil da prefeitura para fazer o transporte escolar, mas subcontratava veículos irregulares de moradores pagando apenas a metade do preço.

Os donos dos carros, por sua vez, subcontratavam motoristas, sem qualquer vínculo empregatício. Todas as despesas com combustível, manutenção do veículo e com motoristas ficavam por conta dos proprietários, enquanto a empresa não tinha nenhum gasto com encargos financeiros, sociais, fiscais. Por mês, o desperdício calculado pelas investigações era de R$150 mil, totalizado um prejuízo anual aos cofres públicos de R$1,8 milhão.

A investigação mostrou que a Barreira funcionava “exclusivamente como intermediária entre a Prefeitura e os proprietários de veículos irregulares, moradores do município de Granja”. Mais do que isso, os valores pagos para a empresa estavam muito acima dos preços do mercado local.

A frota fornecida à prefeitura de Granja era composta por caminhonetes D20 e C10 sem bancos, sem encosto, com janela coberta por tapume, estepe solto no assoalho e em mau estado de conservação. Quando os auditores tentaram visitar a sede da Barreira, localizada numa sala do Shopping W3 Center, em Fortaleza, a única funcionária no local trancou a sala e informou que nenhum proprietário estava por lá. A conclusão da auditoria é de que “a referida empresa não apresenta estrutura adequada para executar os referidos serviços, uma vez que não possui uma frota de veículos própria na quantidade necessária para executar os serviços de transporte, nem tampouco um quadro de funcionários para administrar e executar tais serviços”.

A lista de casos acumulados nos mais de 8.000 km que percorri é tão extensa que chamou a atenção de autoridades locais, apesar de a atuação desses grupos permanecer desconhecida do governo federal. Em agosto de 2013, a unidade do Ministério Público Federal em Juazeiro do Norte firmou um acordo formal com 45 municípios cearenses das regiões do Cariri e Centro-Sul visando regularizar os problemas no serviço de transporte escolar. A Procuradoria apurou ser recorrente a subcontratação ilegal, com sistemático prejuízo aos cofres públicos. Empresas que não participam de licitações acabam assumindo os serviços. Quem é contratado, muitas vezes sem contar com veículos, tem a função de receber o dinheiro e repassar parte aos subcontratados. No meio do caminho, havia o pagamento de comissões e o dinheiro acabava sumindo.

Tomara, Meu Deus, Tomara.

O Cariri é a região mais seca do Ceará, imortalizada nos versos de Luiz Gonzaga: “Tomara que chova logo/Tomara, meu Deus, tomara. Só deixo o meu Cariri/No último pau de arara”.

Foi nas terras áridas do sitio Cipó, povoado que pertence ao município de Farias Brito, que encontrei Maria de Fátima de Castro. Ela lembra pouca coisa do acidente que matou a filha Luiza, depois do capotamento de uma camionete Chevrolet C20. “O pneu furou e o carro virou. Na hora que virou, quebrou logo foi o pescoço, morreu na hora. O povo conta. A irmã ficou relada, mas só fez se relar e ela fez foi morrer”, relata, numa oratória que me remeteu aos personagens de Guimarães Rosa.

Castigada pelo trabalho pesado na lavoura, aos 53 anos, quase sem dentes e com cabelos brancos desgrenhados, Maria de Fátima aparenta em torno de 70. Mora com os filhos numa casa de alvenaria. Nos fundos, construíram uma peça de taipa, com paredes formadas por varas de madeira entrelaçadas e cobertas por barro, constituição que não permite pregar fotos dos filhos.

A seca e o calor do sertão cearense aumentam os riscos para os alunos que utilizam esses veículos com poucos equipamentos de segurança. As estradas de terra são estreitas e a poeira da terra vermelha que sobe e cobre os vidros dianteiros dos carros dificulta a visão dos motoristas.

Na Chapada do Araripe, uma das regiões mais quentes do sertão cearense, encontrei com a mãe da estudante Ana Paula de Jesus exatamente 365 dias depois do acidente que tirou sua vida aos 10 anos de idade. No dia da sua morte, Ana Paula não queria ir para a escola. Acabou pegando o ônibus, por volta das 11h, numa segunda-feira, em 19 de agosto de 2013, no povoado Várzea Grande, em Campos Sales. Em vez do ônibus grande que vinha todos os dias, dirigido pelo seu Luís, um motorista atencioso com as crianças, apareceu um menor, lotado e ainda dando carona para passageiros estranhos aos estudantes. A porta estava estragada e seguia viagem aberta. Quando um grupo de meninos mais novos entrou e ficou em pé na entrada do veículo, o motorista pediu que fechassem a porta. Dois tentaram, mas não conseguiram. Menina esperta, Ana se gabou: “Deixa que eu fecho”. Fechou e ficou em pé encostada na porta, acompanhada pelos meninos, que estavam tomando sorvete.

O ônibus subiu uma ladeira acelerado assim que deixou o povoado de casas esparsas, numa região baixa, habitada por pequenos produtores rurais. Quando o veículo chegou próximo a uma curva, a porta se abriu. Ana foi jogada pra fora em um único golpe. A menina caiu e ficou embaixo do veículo na estrada de terra bastante estreita. O pneu traseiro passou por cima do seu peitoral. “O corpo ficou com várias fraturas, estourou o intestino dela para fora”, me relatou a mãe da jovem, Ana Márcia de Jesus, de 29 anos. “Ela não teve pancada na cabeça nem nada”, acrescenta, com uma tranquilidade conformada.

Ana Márcia de Jesus vela a filha, no local do acidente que a vitimou. Imagem: Lúcio Vaz.

Hoje, a vida de Ana Paula está armazenada em 16 gigabytes de um pen drive, que a mãe teve que aprender a usar para repassar as fotos da jovem na televisão da família. Os últimos registros foram tirados no final de semana anterior ao acidente. Ana Paula aparece brincando com amigas num animado banho de açude.

As páginas técnicas das auditorias da CGU têm, na prática, o poder de anunciar tragédias. São procedimentos que seguidamente são mencionados como problemáticos para a segurança dos estudantes, mas que persistem em diversos municípios e geram resultados fatais.

No final da manhã de abril de 2011, Josilene Ramos preparava o almoço, preocupada com o atraso do seu filho Moisés. A cada minuto checava o horário no celular, modelo Smartphone, mas que nem sempre oferecia sinal por ali. Plin. A primeira foi uma mensagem anunciando que ela ganhara uma casa, mas que seria necessário fazer um depósito para recolher o prêmio — provavelmente uma tentativa de golpe. Plin. Uma oferta de um novo pacote da operadora. Mas nada de notícia do menino. A informação chegou mesmo ao estilo tradicional, quando uma colega de transporte veio avisar. “Vai buscar teu filho que ele está lá na estrada. O carro atropelou ele (sic)”.

A mãe colocou o celular no bolso e saiu sem fechar as portas da casa. Ao chegar na estrada, faltou força nas pernas quando viu o filho caído. Pediu ajuda a Deus e aproximou-se devagar. Josilene dirigiu-se, então, ao motorista da caminhonete, Antônio Martiniano, e cobrou: Como ele podia permitir que aquilo acontecesse? Deixar o caminhão apanhar uma criança inocente. O motorista respondeu secamente: “Não tenho nada a ver com o seu filho”.

Moisés, de oito anos, estava sempre ansioso para pegar a caminhonete que fazia o transporte escolar, numa estrada de terra distante cerca de 150 metros da sua casa, no povoado Mangueira, no município de Conceição do Coité, na Bahia. Ele tinha um projeto para sua vida traçado com detalhes, apesar da pouca idade: queria ser caminhoneiro e viajar pelo mundo. Por isso, gostava mesmo era do trajeto de ida e volta da escola.

Também poderia se tornar político. Acreditava nas ideias e nas promessas do PT, o Partido dos Trabalhadores, que, para ele, revolucionaria o país. Colava adesivos do partido nos cadernos. Em tempos de eleições, fazia campanha como gente grande.

O inquérito policial apurou que o condutor, de 62 anos, não tinha habilitação. Ele substituía o filho, que era o titular do contrato com a prefeitura, mas estava cumprindo um compromisso particular na cidade. Moisés, o menino, desceu da caminhonete Chevrolet D20 com carroceria fechada por volta das 11h30, quando retornava da escola em Gangorra II, distante cerca de três quilômetros dali. Ao tentar atravessar a estrada correndo, foi atropelado pelo caminhão Volks 140, que havia terminado a entrega diária de botijões de gás e voltava para a cidade, pouco mais de 10 quilômetros adiante.

Josilene afirma que cansou de pedir ao motorista e às professoras que o seu filho fosse apanhado em frente à sua casa. Não foi atendida. Segundo lhe foi informado, era preciso cortar custos com gasolina. Enquanto a mãe falava, o pai do menino, Adelício da Silva, deixou a sala e voltou com um saco plástico cheio de caquinhos de ossos. “Tá aqui, é para ele chupar”, disse, entre os dentes tensos, referindo-se ao motorista.

Perguntei do que se tratava. Com os dedos da mão direita, o pai apontou para cada pequeno pedaço segurado com cuidado em sua mão esquerda. “Aqui era o crânio da cabeça dele. Tem até o dente do meu filho aqui que eu catei na estrada”. Descobri que três dias após o acidente ele retornou ao local e encontrou fragmentos dos ossos do crânio do filho.

Menino segue acompanhada da mãe até o pau de arara que o levará para a escola. Imagem: Jarbas Oliveira.

As reclamações de Josilene e Adelício têm o suporte de órgãos do governo, já que o mesmo problema está registrado em documentos oficiais. A auditoria da CGU realizada entre maio e julho de 2008 já mostrava que motoristas não cumpriam o trajeto completo, deixando muitos alunos pelo meio do caminho. Alguns estudantes precisavam caminhar aproximadamente dois quilômetros diariamente para ir e vir da comunidade até o local onde o ônibus passava. Quando passaram por Conceição do Coité (BA), os auditores cobraram a prefeitura, que não exigia o cumprimento da lei pelos veículos contratados. O documento é taxativo: “Essas situações demonstram, mais uma vez, a falta de controle do município com o transporte escolar, colocando em risco a vida das crianças em situação de acidente”.

O trabalho dos auditores da Controladoria Geral da União é exaustivo e meticuloso. A lista de irregularidades é extensa e repetitiva. Janelas quebradas, tábuas de madeira, falta de cinto de segurança são apenas algumas das centenas de problemas constatados. Mesmo após as passagens dos auditores, no entanto, os problemas permanecem, como se os políticos ignorassem as recomendações técnicas. Isso ocorre porque a Controladoria aponta ilegalidades, mas não tem o poder de punir os responsáveis.

No Brasil, o órgão de fiscalização faz sorteios a cada ano para investigar a aplicação de recursos liberados pela União para prefeituras com menos de 500.000 habitantes. As auditorias, portanto, focam nas menores cidades do país, aquelas que dependem basicamente do dinheiro enviado pelo governo federal para sobreviver. A maior verba do orçamento nacional é justamente da Educação, de onde vêm os fundos para a compra de transporte escolares.

Na estrada em que morreu Moisés, em vez da D20, hoje passa uma Veraneio para apanhar as crianças. O motorista é atencioso, desce do carro para encaminhar os alunos mais novos até a escola, mas, em alguns dias, chega a transportar até 11 ou 12 alunos numa única lotação. Não há cintos de segurança para todos. Um Escort, carro que saiu de linha em 2003, transporta outros cinco alunos. Na traseira, o carro traz um vistoso adesivo da campanha dos petistas Rui Costa, eleito governador da Bahia, e Dilma Rousseff, então candidata à reeleição para a Presidência da República.

Para a secretária municipal de Educação, Perpétua Sampaio, os riscos para as crianças diminuíram sob a atual gestão, que deixou de usar carros movidos a gás no transporte dos alunos. Com isso, há menos chances de explosões.

A explicação não convence a mãe de Moisés. “Se tivessem deixado o meu filho na porta, como faziam com os outros, nada disso tinha acontecido. Mas aqui tudo é marcado pela política. Eles achavam que era para deixar em casa quem era do grupo, quem não era, ficava excluído. A gente sempre votou em silêncio, porque, se revelasse o voto, era marcado”.

A política pública do pau de arara tem suas próprias regras. Muitos pais relatam ter medo de enfrentarem os prefeitos após os acidentes fatais. Temem represálias físicas ou retaliações em serviços públicos. Dessa forma, os abusos se perpetuam.

Em Araripina, Estado de Pernambuco, um dos motoristas foi contratado para fornecer um carro, mas apareceu mesmo com uma moto. Havia ainda contratos com motoristas diferentes que apresentavam veículos com a mesma placa. Ou seja, nos registros oficiais, havia veículos fantasmas.

Fui em um desses carros que Bianca, de apenas quatro anos, viveu seus últimos momentos. Mas os pais dela têm receio de procurar um advogado, por se sentirem pressionados por representantes da prefeitura a não entrar com ação judicial. “Nós estamos querendo entrar na Justiça para procurar os nossos direitos, mas eles não estão querendo que a gente envolva a prefeitura nem a empresa de transporte”, relata Leonardo, o pai.

Bianca era chamada por todos da família de “anjinho”, pelos traços delicados e a voz suave. Era uma criança “conversadeira”, que ainda no jardim de infância já escrevia as vogais, encaminhando-se rapidamente para a alfabetização. Seguia para a escola todos os dias na cabine de uma Chevrolet D20 com os irmãos Vinícios, de 10 anos, e Valquíria, de oito.

Crianças acomodadas na carroceria de uma caminhonete, no Ceará. Imagem: Jarbas Oliveira.

Em 24 de julho de 2014, a menina estava acomodada na porta da cabine de um pau de arara. Por volta das 12h40, o veículo já havia percorrido cerca de quatro quilômetros e estava a pouco mais de 100 metros da casa dos três irmãos, no Sítio Pitombeiras, distrito de Nascente, quando a porta direita da caminhonete se abriu. Bianca caiu e foi prensada pela porta, que fechou com força, sofrendo ferimentos no crânio.

Na casa humilde e pouco ventilada, sem nenhuma árvore ao redor, a mãe da menina, Valdenir Rodrigues de Macedo, de 33 anos, reúne os filhos no sofá de tecido surrado e fala com naturalidade do acidente que levou a “filhinha querida”. A lembrança do “anjinho” é expressada no uso de diminutivos em cada uma das frases para descrever Bianca. “Quebrou o craninho dela na porta. Estragou a orelhinha, estragou tudinho”.

Os irmãos afirmam ter avisado o motorista de que a porta estava destrancada pouco antes do acidente. Para Vinícios e Valquíria, o condutor não escutou porque estava prestando atenção no DVD, o acessório mais novo do carro. Os irmãos disseram que o motorista gostava mesmo de assistir, enquanto dirigia, a um show do cantor Antero. Vinícios disse que o acidente que causou a morte da irmã não havia sido o primeiro. “Ele andava só olhando pro DVD. Uma vez foram subir e o carro desceu pra trás, e ele só ‘coisando’ o DVD”.

As “mazelas” dos paus de arara já eram apontadas em 1955 por Francisco Barboza Leite, no artigo para a Revista Brasileira de Geografia, que abre esta reportagem. Mas, hoje, muitas dessas mazelas são resultado das máfias que atuam em diferentes Estados.

No fim das contas, os paus de arara são parte da realidade de alunos e alunas da rede pública de ensino brasileira. Nas palavras de um motorista entrevistado no sertão do Piauí: “As coisas melhoraram muito. Antes, o mesmo caminhão levava bodes e as crianças. Saíam os bodes e entravam as crianças. Agora, só transportamos as crianças”.

Lúcio Vaz é gaúcho de São Gabriel, trabalha em Brasília há mais de 20 anos, cobrindo política para os principais jornais do país, entre eles Folha de S.Paulo, O Globo e Correio Braziliense. Venceu os principais prêmios de jornalismo do Brasil e da América Latina — entre eles o Prêmio Ipys. Atualmente, é editor de política do site Fato Online.

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