ELES NÃO USAM

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BRIO STORIES
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49 min readAug 26, 2015

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BLACK TIE

por Frank Main

Dois Manés, Um Bando de Mirós E Um Grampo.

Em um dia ensolarado no fim de maio de 2006, dois golpistas se encontram para almoçar no pátio do Rosebud, um restaurante italiano nos subúrbios de Chicago onde um público de engravatados consome os pratos favoritos locais, como o Frango Vesúvio. Um desses homens, James Kennedy, chega vestindo camiseta e suspensórios. Sua barriga dobra por cima do cinto e seu cabelo branco e aveludado recai sobre os ombros como um ídolo do rock já em idade avançada. Ele avista Michael Zabrin, seu comparsa e negociante de arte, já sentado à mesa.

“Ei, Fazendeiro!”, Zabrin saúda Kennedy, implicando com suas vestimentas.

Zabrin veste uma camisa Oxford branca. Ele usa também um grampo. Um agente federal colocou em Zabrin um equipamento que grava áudio e vídeo depois de apresentar uma opção, que vai um pouco além da tão em voga delação premiada no Brasil, ao golpista previamente condenado por seu envolvimento em um esquema internacional de falsificação de arte: encarar mais 13 anos de prisão ou ganhar uma substancial redução da sua sentença para se transformar em um informante e ajudar o governo a prender seus comparsas. Zabrin escolheu a traição e Kennedy, sem saber, caiu em sua armadilha.

Na gravação, Zabrin diz que não sabe se um dos dois quadros falsificados de Joan Miró com os quais ele está trabalhando deveria ser pendurado na vertical ou horizontal. Isso importa porque Kennedy precisa forjar a assinatura de Miró no local correto. Zabrin diz que procurou em um livro de leilões da Sotheby’s, mas que não conseguiu achar o Miró em questão.

“Vamos chutar”, diz Kennedy.

Zabrin desenrola duas pinturas abstratas do tamanho de um capacho daqueles colocados na frente da porta, enquanto um comensal curioso sentado ali perto estica o pescoço para espiar.

Kennedy as comprou no eBay, por US$ 100 cada. Os vendedores informaram que não puderam encontrar nenhuma documentação de que as pinturas, não assinadas e não numeradas, eram cópias autênticas, produzidas e certificadas pelos trabalhos do pintor original. Um dos vendedores não pode nem mesmo confirmar se sua cópia replicava algumas das pinturas dos artistas, descrevendo ela apenas como uma impressão “no estilo de Joan Miró”.

Mas Kennedy planeja revendê-las — com sua assinatura adicionada — como Mirós autênticos para obter um considerável lucro.

As pinturas são horizontais, ele decide. Kennedy pratica rapidamente a assinatura do pintor em um guardanapo do Rosebud.

Depois disso, os dois homens dirigem para a casa de Kennedy, onde ele assina as pinturas com um lápis, enquanto a câmera escondida continua gravando. Ele também assina as letras “HC”, ou “hors de commerce” — uma expressão francesa que significa que a pintura não está à venda, transformando-a em uma cópia especial. A maior parte das impressões é numerada e faz parte de um grupo finito vendido ao público. Mas se Kennedy tentar manufaturar uma dessas, o comprador pode ver a original à venda online algum dia e descobrir que elas foram forjadas. Ao inventar uma cópia especial, fora do mercado, ele pode diminuir esse risco sem grandes esforços.

Kennedy mostra ao seu parceiro no crime outras pinturas — como um Pablo Picasso e um Alexander Calder — dizendo que “são todas coisas novas”.

Elas são falsificações preparadas por outro associado, Leon Amiel Jr., que imprimiu fotos dos originais em uma enorme e moderna impressora digital. Kennedy diz que Zabrin deveria tentar vender essas também, acrescentando: “Qualquer coisa que você conseguir, basta me dar metade”.

Dois anos depois do almoço no Rosebud, o FBI usa a gravação contra Kennedy em um megacaso de fraude envolvendo obras de arte nos EUA e na Europa, com centenas de compradores, dezenas de milhares de obras falsificadas — mais de 24 mil foram apreendidas no caso — e milhões de dólares em lucros. A montanha de evidências contra Kennedy inclui até mesmo o guardanapo assinado no Rosebud. Um agente federal — um inspetor postal — estava sentado a apenas seis passos de distância, funcionando como um par independente de olhos checando o grampo de Zabrin. O inspetor recolheu o guardanapo depois que os dois homens deixaram o restaurante em Chicago.

Quando descobre que Zabrin atuou como um agente duplo, Kennedy não consegue conter sua fúria. Ele pega o telefone e liga para o ex-parceiro, descontrolado.

“Ei, Michael, eu achei que você era meu amigo”, diz ele em uma mensagem de voz gravada em 8 de janeiro de 2008. “Seu canalha sujo, baixo, pequeno, boqueteiro. Você me gravou? Seu filho da puta. Eu vou te pegar, baby. Você vai se ferrar.”

“Eles me contaram tudo o que você fez”, ele continua. “Eu escutei e não consegui acreditar! Então vamos nessa. Nunca mais me ligue. E se eu vir você, eu vou te encher de porrada.”

Zabrin está cumprindo nove anos na prisão. Mais de quatro anos foram retirados da sua sentença por conta da colaboração, mas sua ficha criminal pregressa demanda uma pena severa. Kennedy pegou uma sentença de oito anos. Eles não foram os únicos envolvidos. Agentes algemaram mais de uma dúzia de outros réus, todos conectados com as mesmas falsificações de artes. Eles estavam baseados em Chicago, Miami, Nova York, Itália e Espanha.

Hollywood construiu essa imagem de que os falsificadores de arte são gênios do mal, e que os ladrões são corteses e acrobáticos, capazes de se movimentar como gatos, em filmes como O Falcão Está à Solta, de 1991, além de Armadilha e Thomas Crown, A Arte do Crime, ambos de 1999. Ouvindo sobre quadrilhas internacionais do crime capazes de falsificar milhares de obras primas, é fácil pensar em Kennedy, Zabrin e companhia como sofisticados.

Mas esses sujeitos não são playboys entediados com Lamborghinis na garagem. Nem seus alvos são coberturas de milionários que gastaram milhões de dólares com Picassos. No mundo real dos crimes de arte, os bandidos estão mais confortáveis vestindo calças jeans e camiseta branca do que um smoking, e muitas vezes suas vítimas são pessoas comuns — professores e contadores — quase sempre pagando centenas ou alguns milhares de dólares por um negócio aparentemente quente, sem fazer muitas perguntas.

Zabrin, de fato, dirigiu um Porsche Carrera, mas ele começou como um golpista nas ruas de Chicago. Ele vendia porcelanas estampadas com figuras de animais antes de gravitar pelo mundo da arte e ser pego em uma investigação preliminar de fraude nos anos 1990, batizada de Operação Bogart (referente a “bogus art” ou arte fajuta). Mas depois daquele passo fora da lei, embora condenado, ele voltou direto para seus negócios ilícitos. O desregulamentado mundo das artes tem poucos mecanismos para acompanhar e prender atores mal intencionados, transformando-se em um território atrativo para todos os tipos e tamanhos de esquemas.

Mafiosos estão por trás até mesmo dos mais fantásticos e notórios crimes de arte. Um alto mafioso condenado por tráfico de drogas e posse de arma é a “pessoa de interesse” por trás de um roubo de US$ 500 milhões no Museu Isabella Gardner Stewart, em Boston, em 1990. E foi um zelador de Milwaukee, condenado por roubo, que levou um violino Lipinski Stradivarius, de 1715, no começo de 2014. Ao invés de trabalhos envolvendo ginastas capazes de passar por alarmes controlados por laser, ambos os crimes foram simplesmente feitos por bandidos armados e corajosos, elevados acima de seus pares apenas pelo alto valor dos objetos roubados.

Para combater esses criminosos, investigadores se voltaram para as mesmas técnicas que eles aplicam contra a máfia e outras organizações violentas. Eles usam grampos aprovados judicialmente, conduzem investigações financeiras complexas nas declarações de imposto de renda e nos recibos de vendas, e recorrem até mesmo a técnicas old school da polícia, como análise de cartas escritas com máquina de escrever.

Desde 2004, o FBI comandou muitas das mais comentadas investigações de arte. O Departamento de Crimes de Arte da polícia federal norte-americana, que comandou o caso contra Kennedy e Zabrin, foi formado depois da invasão ao National Museum of Iraq, em Bagdá, na qual 14 mil peças, incluindo relíquias insubstituíveis da cultura mesopotâmica, sumiram ou foram destruídas. O governo americano respondeu à pilhagem cultural, cometida sob sua tutela, já que ocorreu durante a ocupação do país, com a rápida formação de um time treinado para investigar esse e outros roubos de artes e fraudes. Dois anos depois, o FBI recuperou a estátua do Rei Entemena de Lagash, uma das peças mais significativas levadas do museu.

Hoje, treze agentes e um administrador formam o time que trabalha próximo às agências de polícia de vários lugares do mundo para investigar crimes relacionados à arte e devolver obras roubadas para seus donos de direito. É um trabalho árduo para um time tão pequeno. Especialistas estimam que o mercado ilegal de venda de arte atinja US$ 7 bilhões por ano em todo o mundo, com metade desse valor sendo negociada dentro dos Estados Unidos. Mas os agentes atuam com a certeza de que estão ajudando a proteger patrimônios da humanidade datados de milhares de anos, preservando objetos que nos conectam com uma linha de valores, crenças e emoções que definem nossa humanidade — seja isso definido por repatriar um antigo artefato etrusco, devolver um violino Stradivarius para seu dono ou garantir que um mestre da arte moderna como Miró não se revire no túmulo por conta de imitações baratas.

A Bancarrota Do Falsificador.

Apesar do tamanho do mercado da arte, a maior parte dos agentes do time do Departamento de Crime de Arte tem outras funções também. É o caso de Brian Brusokas e Luigi Mondini, dois membros da equipe baseados em Chicago. O primeiro investiga crimes na internet, enquanto o segundo faz parte do esquadrão que vai atrás do crime organizado. Além dessas responsabilidades, eles passaram incontáveis horas em investigações que puseram Kennedy e outros falsificadores na prisão.

Os agentes formam uma dupla esquisita, com conhecimentos e experiências complementares. Mondini tem interesse no Velho Mundo e na arte clássica; Brusokas considera a si próprio o “cara da história americana”.

Mondini se juntou ao FBI em 2002 e foi alocado no esquadrão que investiga o crime organizado italiano. Ele logo se viu no meio de uma grande investigação sobre a Cosa Nostra, a máfia italiana, em Chicago. A operação foi batizada de Segredo de Família, por se basear em uma traição na família de Frank Calabrese Senior, um dos mais cruéis mafiosos na história recente de Chicago.

Frank Calabrese Jr. e seu primo Nick Calabrese concordaram em entregar o matador da máfia de Chicago.

A cidade nunca conseguiu se livrar da reputação internacional de violência, surgida na época do reino de Al Capone, durante a proibição da venda de bebidas alcoólicas. Nos anos 1970, o Chicago Outfit, o legado de Capone na organização mafiosa, se envolveu com o lado negro de Las Vegas, uma saga retratada no filme Cassino. Calabrese Senior, um assassino frio como gelo e responsável por cobrar empréstimos feitos pela máfia, era o centro disso. Ele e outros membros da Outfit foram suspeitos de envolvimento em pelo menos 18 assassinatos entre 1970 e 1986.

Calabrese Jr havia escrito para o FBI em 1988, dizendo que ele estava interessado em ajudar agentes a prender seu pai — para sempre. Na carta, ele descreve o pai como “um homem doente”.

O filho acabou usando um grampo para gravar o pai. Primo Nick entregou ao FBI as informações sobre assassinatos dos quais ele participou ou assistiu. A cooperação deles levou a um indiciamento em 2005. Dois anos mais tarde, cinco mafiosos de alta patente, incluindo Calabrese Senior, enfrentaram julgamento e o júri os condenou por conspiração e por obterem dinheiro por meio de extorsão. Calabrese, o pai, morreu em uma prisão federal no dia de Natal de 2012.

“Não é nenhum segredo que eu cuidei de Frank Jr, um dos principais colaboradores”, diz Mondini. “Eu investiguei alguns dos homicídios, indo atrás de pistas e coisas desse tipo.”

Apesar de achar que seu trabalho prendendo mafiosos assassinos seja recompensador, o histórico pessoal de Mondini fez dele um candidato ideal quando surgiu uma vaga no time de Crime de Arte.

Seu pai nasceu na Itália, onde duas de suas irmãs ainda vivem. Uma delas transporta arte para exibições. “Tenho muita família na Europa”, diz ele. “Eu fui uma criança muito sortuda. Meus pais gastaram muito dinheiro e tempo para me dar cultura.”

Ainda garoto, ele visitou a Galeria Uffizi, em Florença, e o Louvre, em Paris, desenvolvendo um gosto especial pelos velhos mestres e antiguidades.

“Nos Estados Unidos, nós não temos necessariamente uma apreciação por arte e antiguidades porque nossa história é muito curta, apenas 400 ou 500 anos. A história europeia obviamente tem milhares e milhares de anos. Quando Brian e eu, além de outros membros do time, temos que lidar com manuscritos, moedas ou peças de terracota que datam de antes de Cristóvão Colombo chegar por aqui, isso é a coisa mais bacana que há.”

“Não sou um grande fã de arte moderna”, ele continua, “mas entendo por que as pessoas gostam. Eu gosto dos velhos mestres. Mas sou também um grande admirador de litografias, motivo pelo qual, quando trabalhei no caso do Brian, eu realmente gostava de algumas das coisas que recuperamos”.

Mondini é fluente em italiano, espanhol e francês. Ele utilizou suas habilidades linguísticas algumas vezes no caso da operação Segredo de Família. Calabrese Senior, por exemplo, gostava de jogar frases italianas no meio das conversas gravadas pelo FBI. Mondini traduziu os grampos. Ele também contou que uma das suas fontes secretas no mundo do crime organizado só falava italiano.

Seu parceiro Brusokas entrou para o FBI em 2000 e se tornou investigador de crimes cibernéticos. Ele perseguiu fraudes feitas pela internet. Foi assim que começou a trabalhar no caso de Zabrin, já que as pinturas fajutas eram vendidas no eBay — assim como em shows de arte e em galerias.

Diferentemente da juventude cosmopolita de seu parceiro, Brusokas teve a típica infância americana e era um colecionador de figurinhas de baseball. Como agente do FBI, ele foi capaz de seguir essa paixão, da mesma forma que Mondini canalizou suas experiências infantis para museus e línguas. Um dos casos de Brusokas, por exemplo, envolveu a adulteração de um cartão raro de 1909 com o jogador Honus Wagner, considerado o Santo Graal para os colecionadores de figurinhas esportivas. Desde que se juntou ao time de Crime de Arte em 2004, ele cultivou uma especialidade em coleções relacionadas a esportes, apesar de investigar todo tipo de crimes.

E um desses grandes casos focou na falsificação ligada a Kennedy e Zabrin. De acordo com autoridades americanas, o esquema global em cima do qual os dois trabalharam funcionou de 1999 até 2007, resultando em falsificações de alta qualidade de trabalhos de artistas celebrados como Salvador Dalí e Alexander Calder.

Leonel Amiel Jr, um nova-iorquino, era um dos que estavam no topo da organização. Seu avô, Leonel Amiel Sr, já foi considerado um dos mais prolíficos fornecedores de falsificações de arte do mundo. No passado, foi amigo de artistas como Marc Chagall, Dalí e Miró. O velho Amiel foi presidente e dono da Amiel Distribuidora de Livros e da editora Leon Amiel. Ele usava suas companhias para adquirir e negociar um inventário de impressões falsas tão vasto que provocou uma investigação do governo iniciada bem antes da sua morte, em 1988.

Em uma entrevista para o New York Times em 1987, o velho Amiel insistiu que os trabalhos não eram falsificações, mas “interpretações litográficas” de trabalhos originais de Dalí. Ele comprou as impressões de vários editores na França que, segundo argumentava, tinham contratos com Dalí para fazer 1.000 reproduções de pinturas originais e outros trabalhos, em folhas de papel assinadas pelo artista. Ele não poderia controlar se os vendedores apresentavam as pinturas ao público como originais, argumentava Amiel.

Amiel Sr nunca foi processado, mas autoridades dizem que ele passou sua expertise para o neto. Em 2011, eles sentenciaram Amiel Jr a dois anos em uma prisão federal depois que ele foi condenado por vender impressões falsificadas a Zabrin e Kennedy.

Porém, enquanto Amiel Jr era um dos principais fornecedores de falsificações, é o caso de Kennedy que oferece uma janela fascinante para dentro dos esquemas envolvendo arte e como o FBI os investiga.

Apesar de as gravações do restaurante terem sido muito prejudiciais a Kennedy, foi uma de suas clientes pouco satisfeitas que providenciou ao FBI outro vídeo chave para o processo. Ela estava chateada porque, depois de comprar uma impressão de Kennedy, ele nunca enviou a ela a carta de autenticidade, como prometido. A mulher procurou o nome de Kennedy no Google e descobriu que ele já havia sido condenado por ser um trapaceiro no mundo das artes. Ela, então, procurou o FBI com suas suspeitas de que Kennedy ainda praticava fraudes. Moradora de Richmond, no estado da Virgínia, a mulher topou usar um aparelho de gravação escondido.

Em 30 de agosto de 2006, três meses depois do encontro entre Kennedy e Zabrin no restaurante Rosebud, ela e o marido encontraram com ele em um hotel na Virgínia. No vídeo, ele apresenta uma história sobre como começou no negócio de arte.

“Isso é tudo o que já fiz na vida. Eu joguei hóquei profissional por dois anos. Quebrei isto [apontando para o ombro] no Boston Garden.”

Kennedy conta ao casal que largou o hóquei e se mudou para Paris. Ele diz que teve sorte de ser convidado para uma festa onde estavam Miró e Chagall.

“Eu dei um encontrão em uma mulher. Ela se virou, olhou para mim, e disse: ‘Eu quero você’. Era Paloma [Picasso, a filha do artista]. Nós ficamos juntos por três anos. Ela me colocou no negócio.”

Uau, isso é incrível”, diz o marido.

“Eu mantenho contato com a Paloma”, responde Kennedy.

Kennedy mostra um falso certificado de autenticidade para uma pintura de Don Quixote supostamente feita por Picasso, que ela comprara por US$ 950. Diz a carta: “Paloma Picasso, 26 Champs Elysees 75016 Paris, France”.

Brusokas testemunhou posteriormente à Justiça que o FBI havia apreendido uma máquina de escrever na casa de Kennedy, em uma busca com autorização judicial. Especialistas do FBI foram capazes de documentar cada letra na máquina de escrever com um jato de luz enquanto ela funcionava, imprimindo cada letra enquanto as teclas eram apertadas.

A análise com quase nenhuma tecnologia reconstruiu várias versões das cartas falsas de autenticidade supostamente assinadas por Paloma Picasso e de uma organização que garantia que os Chagalls de Kennedy eram legítimos.

No julgamento, o promotor perguntou a Brusokas: “O uso dessa análise de máquinas de escrever é um tipo de arte quase morta, eu diria?”

Brusokas respondeu secamente: “Eles ainda usam essas ferramentas old school, eu acho”.

Então, em 2 de junho de 2006, um agente postal disfarçado foi trazido para o caso porque os falsificadores usaram o sistema postal americano para enviar seus trabalhos. O agente se apresentou como um comprador de arte em uma feira em Charlotte, Carolina do Norte. Lá, ele fez uma outra gravação enquanto comprava de Kennedy uma impressão de Miró por US$ 350.

Leon Amiel Sr já havia publicado uma série de livros de artes em papéis lustrosos contendo impressões de Miró sem assinatura e não numeradas. O artista nunca autorizou Amiel Sr a publicar esses livros, ou seja, eles eram basicamente falsificações de arte. Não era só isso. Sua família ia para o mercado vender páginas falsificadas do original e forjar assinaturas nelas, dizem autoridades.

Mais tarde, Amiel Jr recebeu um galpão repleto de livros de arte e páginas adicionais de sua mãe. Junior começou a vender aquilo tudo para Kennedy, Zabrin e outros.

A impressão de US$ 350, uma cópia de um Miró que Kennedy arbitrariamente renomeou como Ciclopes, foi retirada de um dos velhos livros de Amiel.

No encontro na Carolina do Norte, Kennedy diz ao inspetor fiscal que a impressão é uma edição limitada: 19 de um total de 100.

“Você está olhando para algo pelo qual teria que pagar entre US$ 3.000 e US$ 4.000”, diz Kennedy. “Sério?”, pergunta o agente. “Por que um desconto tão grande?”

“Compradores ganham o mesmo preço que as galerias”, afirma Kennedy. “Eu sou um segredo bem guardado.”

“Eu facilito as coisas para que comprem de mim”, ele continua. “Eu vendo produtos bons por preços bons. E eu tenho muitos clientes felizes.”

Em janeiro de 2008, Brusokas prendeu Kennedy na Flórida. Agentes do FBI executaram um mandado de busca em seu quarto de hotel, enquanto outro time simultaneamente vasculhou sua casa em Illinois. O FBI, trabalhando em conjunto com inspetores postais, ainda cumpriu mandados em Nova York e na Espanha. Logo depois, Kennedy foi solto provisoriamente, e voltou a vender arte falsificada. Agentes finalmente o prenderam em um café em Tijuana, no México, em dezembro de 2008, depois de fracassar numa tentativa de escapar ilegalmente para o Canadá.

Inicialmente, Kennedy negou ter conhecimento de que trabalhava com arte fraudulenta. Depois ele cedeu, admitindo que vendia falsificações no eBay e em feiras de arte pelos Estados Unidos. O motivo, ele disse, era simples: ganância.

Kennedy disse que Zabrin e Amiel estavam entre seus fornecedores de impressões fajutas. Disse ter pago um total de US$ 500.000 pelas compras.

Kennedy pareceu conformado com seu destino quando sentou-se em frente à juíza distrital Joan Gottschall, em outubro de 2011. “Eu sinto muito e aceito completa responsabilidade pelos meus atos”, disse à juíza.

Ele ainda usou a caracterização feita por seu advogado, segundo a qual seria um alcoólatra capaz de beber quase um litro de vodca por dia no período em que vendia arte falsa.

“Eu gostaria de agradecer ao Departamento de Justiça por me encarcerar. Isso provavelmente salvou minha vida. Eu estou limpo e sóbrio desde então”, disse.

Mesmo assim, Kennedy pediu leniência, dizendo ao juiz que tinha uma vida frágil, dois filhos autistas, e que era um “diabético de 59 anos com um problema no coração”. Ele disse que queria salvar a casa da família.

A juíza não estava com humor suficiente para dar a Kennedy o que ela chamou de “um tapa no pulso”, o tipo de sentença que ele havia recebido quando fora pego pela primeira vez vendendo impressões falsas em 2004, em Milwaukee. Naquele ano seus preços baixos por obras atribuídas a Picasso e Chagall chamaram a atenção de um negociador de arte local, que os pegou em consignação e enviou os trabalhos por meio de conhecidos para que Paloma Picasso verificasse a origem. Ela, por sua vez, contatou a Interpol, e o Departamento de Polícia de Milwaukee prendeu Kennedy. Mas depois de receber uma condenação leve e passar 40 dias na cadeia, voltou direto para os balcões de negócio ilegais com pequenos compradores de arte, conforme mostram os documentos do julgamento.

Gottschall disse que esperava que a sentença de oito anos pudesse impedir Kennedy e outros de repassar arte falsa para o público. “Ele apenas quer voltar e fazer de novo”, diz ela. “E isso é realmente, realmente problemático.”

As vítimas, Brusokas argumenta, não eram grandes instituições como museus, mas pessoas normais que acabaram gastando seu suado dinheiro em uma falsificação. Eles sempre sonharam em ter um Picasso ou um Chagall pendurados na parede e, por isso mesmo, jogaram a cautela pela janela para tentar concretizar o desejo.

Para tentar evitar serem enganados por golpistas como Kennedy, compradores amadores de arte deveriam considerar a contratação de um especialista capaz de autenticar suas compras, sugere Brusokas.

“Você deve trazer o seu especialista”, ele acrescenta, lembrando que Zabrin e Kennedy providenciaram certificados de autenticidade para suas vítimas.

“Quando você compra uma casa, você faz uma inspeção”, diz Brukoskas. “Mas, por alguma razão, quando as pessoas gastam US$ 10.000 em uma pintura ou em um cartão de baseball, eles não fazem a lição de casa.”

Especialistas são capazes de inspecionar uma pintura da década de 1920 e dizer se os artistas utilizavam aquele determinado papel naquela época. Eles também podem checar se um determinado número de impressões já está no mercado. Por fim, podem pesquisar a origem — ou o rastro de propriedade- de uma obra de arte.

Mondini gosta de encontrar sinais vermelhos, como “uma pintura que deveria estar circulando há muitos anos e aparece com uma moldura nova”. Além disso, do lado de trás das pinturas, é normal que as galerias de arte coloquem suas marcas, explicitando quando o quadro esteve em exibição.

Apesar de todos esses esforços, falsários sempre conseguiram encontrar seus caminhos para negociar obras falsas, normalmente se aproveitando da ignorância de compradores inexperientes ou da falta de regulação no mundo da arte.

“Compradores, fiquem atentos”, diz Mondini.

O Herói Americano No Porão De Um Curador.

Nem todas as investigações do time de Crime de Arte do FBI focam em quadrilhas que atuam nas trevas. Algumas vezes o caso é simplesmente o resultado de um empregado insatisfeito que sai pela porta do museu carregando objetos de valor. Foi o que ocorreu no sumiço de documentos centenários e artefatos do Polish Museum of America, localizado em Chicago, em um prédio de quatro andares construído com tijolos vermelhos na Avenida Milwaukee, local em que os imigrantes poloneses construíram suas vidas ao longo dos anos. Em vez de estancar uma sequência de fraudes, o objetivo em casos como esse é apenas recuperar os objetos roubados.

Nos anos 80, o curador do Museu Polonês foi demitido depois de uma decisão do conselho de diretores, relata Mondini. O FBI acredita que, na saída, ele simplesmente caminhou pela porta com caixas de documentos contendo assinaturas de Abraham Lincoln, Thomas Jefferson, e heróis de origem polonesa que lutaram na guerra pela independência dos EUA. Também sumiram medalhas militares, artefatos raros e propagandas nazistas da Segunda Guerra Mundial.

Em 2012, os itens reapareceram na ex-casa do curador, na região Noroeste de Chicago, que havia sido transformada em pequenos apartamentos, mas onde ainda havia áreas usadas como depósito. Ele havia dito aos dois novos inquilinos, ambos jovens estudantes, que eles receberiam um desconto no aluguel se limpassem o velho porão — não está claro se ele esqueceu que os documentos estavam lá, se nunca soube da existência deles, ou outra possibilidade. Entre as preciosidades encontradas, havia uma carta assinada pelo ex-presidente Thomas Jefferson enviada a G.W. Campbell, o Secretário do Tesouro americano naquele período, referente a Andrew Kosciuszko, um general polonês que lutou na revolução.

Na carta de 8 de maio de 1812, Jefferson escreve que Kosciuszko era “um general devotado à causa da liberdade”. Jefferson escreve, em uma letra cursiva perfeita, que Kosciuszko estava próximo de um desastre financeiro em Paris e pede que Campbell envie dinheiro a ele, resultado dos juros referentes ao dinheiro que o polonês havia emprestado anteriormente ao governo americano.

“Além de ser recebido como um favor pessoal a mim, isso irá representar um alívio necessário a um dos grandes valores da revolução”, escreve Jefferson.

No momento em que os inquilinos encontraram os artefatos, eles provavelmente pensaram, segundo Mondini: “Uau, isso é bacana. Aposto que vale algum dinheiro”. Eles foram, então, a um negociante de moedas no centro de Chicago. Também especialista em documentos históricos, o negociante escutou a história. Teoricamente, os inquilinos sentiram ter encontrado algo suspeito, ou quiseram esconder a descoberta do velho curador. De qualquer jeito, eles estavam se protegendo.

“Eles apareceram com uma história de que um tio tinha morrido. Você constantemente se depara com essas histórias de que alguém na família morreu. O negociante viu os documentos e pensou que alguma coisa não estava certo”, explica Mondini.

O especialista acabou pagando US$ 35.000 pela carta de Thomas Jefferson e outros documentos com a intenção de protegê-los. Imediatamente ele entrou em contato com o Museu Polonês da América, que confirmou que os papéis haviam sumido dos arquivos.

“O museu enviou algumas pessoas que disseram imediatamente: ‘Sim, são nossos documentos’. Eles sabiam que eles haviam sido levados, mas tinham vergonha de tornar o fato público”, diz Mondini, em uma demonstração clara de como é fácil que alguém de dentro simplesmente saia de um museu carregando objetos de alto valor.

O museu reembolsou o negociante. Mondini foi quem falou com ele e pegou as identidades dos inquilinos. “Eles logo contaram tudo. Eles haviam apenas negociado a ponta do iceberg. Havia dezenas e dezenas de cartas, mais de 100 cartas.”

Mondini diz ter entrado em contato com as casas de leilão Sotheby’s e Christie’s para autenticar a documentação. “No final devolvemos tudo ao museu, sem nenhum problema para os inquilinos. Eles até ficaram com os US$ 35.000 recebidos das mãos do negociante”, relembra o investigador.

Já o curador foi ouvido pelo FBI, mas não se autoincriminou. Não faria diferença mesmo se ele confessasse, explica Mondini, já que os crimes estavam prescritos.

“Se esse fato tivesse ocorrido menos de 20 anos após o roubo, nós provavelmente teríamos indiciado o curador, mas o crime de furto de obras de arte prescreve após 20 anos. O curador esteve no museu entre o meio dos anos 1980 até os anos 1990. Ele poderia ter levado esses itens em qualquer momento. Ele continua por aí. Ele falou com a gente, mas não teve valor. Nós avaliamos esses itens todos em cerca de US$ 5 milhões”, afirma Mondini.

O Museu Polonês da América exibiu os itens recuperados com toda a pompa e circunstância. Para Mondini, há uma grande alegria em recuperar esses objetos.

“Você já viu um quilo de cocaína, já viu de tudo. Já viu um corpo de um morto, já viu de tudo. Mas quantas vezes você têm a chance de manejar uma moeda que veio de um local considerado patrimônio da humanidade na Romênia e que foi forjada no século VI a.C.? Quantas vezes você tem a chance de segurar um documento assinado por Thomas Jefferson? Isso é raro. E é muito legal. É interessante. Você cria um vínculo pessoal com esses itens, em casos como este.”

Ele continua. “E você tem uma satisfação pessoal quando devolve esses itens aos donos de direito.”

A Máfia Entra Na Festa.

Para Geoffrey Kelly, membro do time de Crime de Arte do FBI, encontrar esse sentimento de encerramento foi sua missão por mais de uma década, na tentativa de solucionar o caso do Isabella Gardner Museum, de 1990, e devolver as obras primas desaparecidas. A maior parte dos furtos são como o do Museu Polonês — trabalhos internos. Mas a investigação de Kelly aponta para um grupo de baixos mafiosos, sem conhecimento sequer dos procedimentos básicos para preservar obras de arte, que conseguiram entrar no museu (o próprio prédio é uma obra de arte modelada no estilo de um palácio veneziano do século XV e estabelecido na virada do século XX por Isabella Stewart Gardner, uma colecionadora de arte, socialite e filantropa).

Os supostos mafiosos renderam os guardas com armas de fogo e encheram um carro com obras primas. Kelly se lembra exatamente onde estava no dia do maior roubo de arte na história dos EUA.

Ele estava visitando o Museu de História Natural em Nova York, passando pelo gigantesco modelo de uma baleia azul e o famoso esqueleto do Tyrannosaurus rex, quando entreouviu pessoas comentando sobre um roubo de obras de valores incalculáveis em Boston. As pessoas diziam que os ladrões estavam vestidos como policiais.

Kelly ficou fascinado. Não apenas porque o caso no Museu Gardner aconteceu a apenas uma curta viagem de ônibus do local onde ele fez faculdade em Boston, mas também porque ele sempre sonhara em se tornar um agente do FBI e solucionar casos ruidosos como este.

O sonho de Kelly se tornou realidade, quando, em 2002, ele foi designado para o já quase esquecido caso Gardner. O caminho que ele tomou até a investigação não foi dos mais ortodoxos.

Alguns meses depois do roubo, Kelly foi trabalhar como um produtor associado de um programa de comédia, chamado “Short Attention Span Theater”, que apresentava vídeos de stand-up e notícias de entretenimento.

O apresentador era Jon Stewart.

“Nós dois estávamos quebrados e trabalhávamos juntos no programa”, diz Kelly.

Stewart tornou-se a estrela do “The Daily Show”, um dos maiores programas de comédia dos EUA, vencendo dezenove vezes o prêmio Emmy. Kelly virou policial.

Um nova-iorquino que se formou na Universidade de Boston, Kelly nunca cogitou seguir os passos do pai, um artista gráfico dono de sua própria agência de propaganda. “A família esperava que eu assumisse os negócios do meu pai. Mas meu objetivo final era o FBI.”

Então, em 1992, ele pediu demissão do bico na TV e começou a trabalhar como guarda de rua, patrulhando a Grand Central Station em Nova York e o sistema de trem.

Ele deu seu grande salto para o FBI três anos mais tarde, focando em crimes do colarinho branco nos seus primeiros cinco anos no escritório de Boston. Depois disso, mudou de departamento, investigando sequestros, extorsão e outros crimes violentos. E em 2002 ele foi designado para investigar o caso Gardner.

“Eu não sabia absolutamente nada sobre furto de arte”, diz Kelly. “Levou meses para eu entender as teorias e os suspeitos.”

Kelly, no entanto, aprendeu rapidamente que caçar vítimas de sequestro e fugitivos não é tão diferente de investigar pinturas desaparecidas, do mesmo jeito que Brusokas e Mondini descobriram que seus conhecimentos de crimes cibernéticos e organizado ajudaram a prender Kennedy e Zabrin.

“Eu olhei [para as pinturas] como se fossem pessoas desaparecidas ou fugitivos” diz Kelly.

Depois de uma caçada de uma década, ele acredita ter encontrado pistas quentes das obras primas desaparecidas. “Estou confiante que vamos trazer elas de volta”, decreta.

Kelly acredita nisso porque, apesar de o caso Gardner ter sido ruidoso e ter movimentado altos valores, as evidências indicam que os responsáveis eram bandidos pé de chinelo, como na maior parte desses crimes de arte. Não parece que os ladrões sabiam as coisas mais básicas sobre as pinturas porque eles cortaram algumas das molduras, diz Kelly. E no momento em que eles levaram as pinturas, nada indica que tivessem um comprador rico para imediatamente adquiri-las.

Obras primas surrupiadas não têm um grande mercado. A maior parte dos multimilionários não quer comprar um Rembrandt e ser obrigado a escondê-lo em um porão onde ninguém poderá invejá-lo. Os ladrões têm mais chances de ir atrás das recompensas do que receber grandes pagamentos no mercado negro. Na verdade, os europeus são mais propícios a oferecer recompensas por artes roubadas, normalmente 10% do valor total da obra, e sem fazer qualquer pergunta a quem as devolve, explica Erin Thompson, uma especialista em segurança de museus. No caso Gardner, uma recompensa de US$ 5 milhões foi oferecida.

Se ninguém se apresentar para buscar a recompensa, isso provavelmente significa que sujeitos desastrados e sem ideia do que estavam fazendo estão agora sentados em cima de obras primas por quase um quarto de século.

“Isso confirma o que a história nos ensinou até hoje quando se trata de furto de arte”, afirma Kelly. “Tipicamente ladrões de arte não são especialistas em ternos pretos pendurados como aranha nos tetos. Eles são ladrões comuns e que poderiam estar roubando a TV ou um carro do mesmo jeito que levaram um Rembrandt de valor incalculável.”

O caso Gardner começou à 1h24 da madrugada de 18 de março de 1990, enquanto muitos moradores de Boston estavam completamente bêbados ou apagados depois de celebrar o St. Patrick’s Day.

Dois homens vestindo uniformes do Departamento de Polícia de Boston se aproximaram da entrada do museu. Um deles tinha a cara magricela, óculos com lentes escuras e um bigode longo e volumoso. Seu parceiro tinha uma cara cheia e um bigode espesso, mas mais curto, estilo Charlie Chaplin, de acordo com um retrato falado feito dos suspeitos.

Quando os falsos policiais chegaram à porta lateral do museu, um deles apertou a campainha. “Polícia! Nos deixe entrar”, gritou o outro, dizendo que eles haviam escutado um barulho no jardim.

Dois seguranças trabalhavam no prédio naquela noite. Um deles quebrou o protocolo e deixou os ladrões entrarem. O único alarme em todo o prédio de quatro andares estava localizado atrás da mesa principal de segurança. Os bandidos convenceram o guarda que estava justamente atrás dessa mesa a levantar e sair dali. A jogada: um dos ladrões disse ao guarda que ele parecia familiar e que eles poderiam ter um mandado para sua prisão.

Eles algemaram o guarda — assim como seu parceiro, que apareceu alguns minutos depois. Os falsários, então, contaram aos guardas a verdade. “Isso é um roubo”, disse um deles. “Não causem nenhum problema e vocês não irão se machucar.”

Os dois guardas foram enrolados com fitas isolantes, dos pés às cabeças, e algemados em um cano no porão. Buracos foram feitos nas fitas para permitir que eles respirassem.

Os ladrões desligaram as câmeras de segurança do museu e subiram as escadas de mármore até a Sala Holandesa, no segundo andar. Ali, retiraram da parede o “Autorretrato”, pintado por Rembrandt van Rijn’s em 1634.

Também cortaram da moldura outro Rembrandt, “Tempestade no Mar da Galileia” (1633), que estava deitado no chão. Fizeram o mesmo com mais uma pintura do mestre holandês, “Uma Dama e um Cavalheiro Vestindo Preto” (1633).

“Eles não cortaram os quadros na parede. Eles teriam cortado e dobrado a tela por conta do peso”, afirma Kelly.

A “Tempestade no Mar da Galileia”, alocado em uma moldura de 120 x 150 cm, era a única pintura de cena marítima conhecida do artista. Nessa pintura a óleo, Cristo calmamente conversa com seus discípulos sob as sombras de um barco de pesca, navegando em ondas violentas. Outros discípulos, banhados pela luz, lutam na navegação na parte dianteira. Mesmo para um amador, trata-se de um exemplo impressionante do uso inicial de Rembrandt de cores, contraste e drama.

O fato de os bandidos terem cortado as pinturas das molduras, explica Kelly, “demonstra uma falta de conhecimento sobre conservação de arte”.

Linhas do lado de trás das pinturas mantinham elas intactas. “Você não pode cortar desse jeito. É como pintar algo em um balão e deixar o ar escapar. Isso não vai destruir a pintura, mas certamente causa danos.”

Os ladrões ainda levaram “O Concerto” (1658), de Johannes Vermeer, um dos únicos 36 Vermeers reconhecidos em exposição no mundo e a primeira grande aquisição de Isabella Gardner.

Também levaram a pintura de Govaert Flinck “Paisagem com um Obelisco” (1638) e um objeto chinês de bronze da dinastia Shang (1200–1100 A.C.).

Outros mestres foram surrupiados. “Chez Tortoni” (1878–1880), de Manet [que abre esta reportagem], cinco desenhos de Edgar Degas, e uma águia de ouro que ficava em uma bandeira napoleônica.

No total, os falsos policiais levaram 13 obras primas, avaliadas em mais de US$ 500 milhões, todas elas carregadas, em duas viagens, até o carro vermelho estacionado em frente ao museu. Eles ficaram dentro do Isabella Gardner durante 81 minutos e fugiram por volta das 2h45, sumindo na escuridão. Os guardas foram resgatados na manhã seguinte, quando os companheiros do turno seguinte chegaram.

Três dias mais tarde, o presidente do museu, Malcolm Perkins, e a diretora, Anne Hawley, escreveram aos patronos sobre a “perda catastrófica”. Eles lamentaram “os terríveis buracos na Sala Holandesa onde os dois grandes Rembrandts ficavam pendurados”. A carta assegurava que os bandidos haviam “conseguido desarmar o sistema de segurança que empregava as mais modernas técnicas”.

Kelly diz não culpar o sistema de segurança do museu, que era “adequado para a época”.

“Eles tinham tudo acionado para transformar o museu em um alvo difícil. O problema é o elemento humano”, diz ele. “Nós somos ensinados desde crianças a fazer o que o policial diz. Dá para entender por que os guardas desconsideraram o protocolo.”

O FBI não considera este caso um nó difícil de ser desatado. Kelly suspeita que os mafiosos foram os culpados.

“Estamos confiantes de que sabemos quem fez esse serviço e os diferentes locais por onde as obras passaram”, diz o policial.

Mesmo assim, ninguém foi formalmente acusado por cometer o maior crime de arte do século 20. Mas procuradores federais disseram que Robert “O Cozinheiro” Gentile é a “pessoa de interesse” por trás do caso, mesmo que não esclareçam se ele era um dos ladrões no local.

Gentile é um mafioso de 78 anos com problemas nas costas e no coração, de acordo com documentos da Justiça. Ele nega qualquer envolvimento com o furto no Gardner, mas Kelly diz que ele falhou no teste do polígrafo quando foi perguntado se sabia do paradeiro das obras.

Gentile, natural de Hartford, estado de Connecticut, é praticamente a antítese do personagem de Pierce Brosnan no filme Thomas Crown. Crown é um multimilionário jogador de polo, que se diverte roubando obras de arte. Gentile abandonou a escola na adolescência para trabalhar para o pai como pedreiro. No final dos anos 70, ele e o irmão abriram um restaurante, o Italian Villa, em Connecticut. O negócio faliu em dois anos.

“Foi ali que aprendi a cozinhar”, disse Gentile, que gravitou entre negócios de restaurantes até carros usados. Ele operou uma concessionária (Clean Country Cars) por mais de uma década até se aposentar no começo dos anos 90, segundo seu advogado.

Mas procuradores dizem que ele também é um antigo membro da La Cosa Nostra, o sindicato do crime organizado italiano, e continuou a praticar crimes depois que se aposentou do negócio de venda de carros, quando tinha mais de 50 anos.

A investigação do FBI se baseou nas mesmas táticas usadas no caso de Zabrin — o recrutamento de um colaborador que usou um grampo –, colocando Gentile no meio de uma conspiração da máfia envolvendo o roubo no Gardner.

Depois do roubo no museu, um informante do FBI que poderia participar da série Os Sopranos, Richard “Richie Gordo” Chicofsky, juntou informações segundo as quais seu parceiro Carmelo Merlino estava “tentando fazer algo” com as peças roubadas do Gardner, conforme registros da Justiça.

Richie Gordo contou aos federais acreditar que Merlino e outro subordinado, David Turner, planejavam devolver as pinturas e embolsar a recompensa de US$ 5 milhões. Turner, o informante acreditava, era um dos homens armados naquela noite no museu.

Turner e Merlino foram posteriormente presos por um plano para roubar um carro forte que carregaria US$ 50 milhões. Já sob custódia, o FBI questionou os dois homens sobre o envolvimento no caso Gardner. Mas eles negaram qualquer participação.

Em 2002, Merlino foi sentenciado a 47 anos de prisão por conta do caso do carro forte. Ele morreu em 2005. Turner, que supostamente trabalhou para Merlino, cumpre pena de 38 anos.

Merlino também foi conectado a Gentile e a outro membro da La Cosa Nostra, Robert Guarente, que por muito tempo foi considerado a pessoa interessada nos roubos do museu, de acordo com autoridades. Porém, Guarente morreu em 2004, deixando Gentile como um dos últimos suspeitos vivos.

A mulher de Guarente, meia década depois da morte dele, disse aos investigadores que seu marido colocou pelo menos uma das pinturas roubadas no carro da família quando eles deixaram a casa em que viviam no Maine, em 2002 ou 2003. Ela disse que eles encontraram Gentile e a mulher em um restaurante, onde jantaram antes de Guarante entregar pelo menos uma das pinturas a Gentile no estacionamento.

Assim como todos os outros, todavia, Gentile não admite nada.

Na corte, Gentile descreveu as acusações da viúva de Guarente como mentiras. Ele negou qualquer envolvimento com o roubo de Gardner e disse que nunca se associou com o crime organizado.

Mas os procuradores afirmam que Gentile era um amigo de longa data de Guarente — o segundo na linha de comando de Robert Luisi, um notório mafioso de Boston. Por um breve período, Gentile e Guarente até mesmo moraram com Luisi em Waltham, Massachusetts, onde trabalharam como guarda costas dele. Gentile sempre carregava uma arma — normalmente com um revólver calibre 38 de cano curto e uma pequena Derringer calibre 22 -, segundo contou o próprio Luisi aos investigadores.

Em 2000, Luisi se tornou um informante do governo depois de se declarar culpado pelo assassinato de um mafioso rival. Ele buscava uma sentença mais branda em troca de informações para os federais.

Luisi teria contado aos investigadores que ele, Guarente e Gentile cometeram outros roubos juntos.

Em 2011, um informante gravou secretamente Gentile discutindo uma venda de drogas na qual estava envolvido. Ele estava nervoso porque outro membro da La Cosa Nostra havia interferido em sua operação e roubado seu fornecedor. Na gravação, Gentile notou que aquela operação de drogas valeria “um milhão de dólares” em mercados negros como os de Percocet, Dilaudid, OxyContin, entre outros.

O FBI fez uma busca na casa de Gentile em 2012, onde encontrou quatro armas — incluindo dois 38 de cano curto e uma Derringer calibre 22. Agentes também encontraram uma metralhadora carregada pendurada na porta, um colete à prova de balas, um scanner de uso da polícia, algemas, armas de choque, facas, explosivos e cartões em branco da Previdência Social.

Gentile alega que a operação do FBI é uma armação. Mesmo assim, ele se declarou culpado perante uma corte federal em Hartford no ano passado, por posse de narcóticos e armas. Ele não foi acusado pela suposta ligação com as pinturas roubadas.

Ele diz que o FBI estava tentando pressioná-lo a falar sobre o que sabe a respeito do roubo das obras de arte em troca de leniência. Até hoje Gentile nunca abriu a boca sobre o caso. Talvez esteja seguindo o código de omerta, ou silêncio, que todo mafioso jura seguir. Ou talvez ele realmente não saiba de nada, como diz.

Gentile, que tem 1,68 metro de altura e pesa 106 kg, é agora um homem quebrado, segundo o seu advogado, Ryan McGuigan. Ele já sofreu um ataque cardíaco e passou por uma cirurgia nas costas por conta de dois discos quebrados.

McGuigan pediu leniência para seu cliente: ou condicional ou uma sentença de prisão domiciliar. Em vez disso, o juiz distrital Robert Chatigny mandou Gentile para a prisão por 30 meses. Ele foi liberado em 16 de abril de 2014, como mostram os registros oficiais.

As pinturas continuam sumidas.

“A cada ano que passa esses caras ficam mais e mais velhos”, diz Kelly. “Nos 24 anos desde que o caso ocorreu, ficou mais provável que alguém que nós queremos ouvir tenha morrido. Há um certo senso de urgência.”

Mesmo que os esforços do FBI para convencer Merlino, Turner, Gentile e outros a levar os investigadores às obras de arte tenham falhado, Kelly diz manter as esperanças de que elas serão encontradas.

Kelly e outros investigadores passaram milhares de horas no caso Gardner. Em março de 2013, estamparam manchetes internacionais quando promoveram uma entrevista coletiva na qual Richard DesLauriers, agente especial que chefia o escritório de Boston, disse que a equipe havia “feito progresso significativo na busca pelas artes roubadas”.

DesLauriers disse que o FBI sabe a identidade dos suspeitos, mas ele não divulgou publicamente os nomes. Ele também disse que o FBI havia mapeado a localização das pinturas em Connecticut e Filadélfia uma década antes.

Os responsáveis pelo Museu Gardner repetiram que pagariam os US$ 5 milhões por informações que levassem à recuperação dos objetos roubados, se eles estivessem em boas condições.

Uma procuradora federal, Carmen Ortiz, disse aos repórteres que a prescrição de 20 anos havia sido ultrapassada para o crime de furto, mas que alguém que ainda tivesse os objetos poderia enfrentar acusações de posse de propriedade roubada que teria passado por comércio interestadual, um crime que tem pena máxima de 10 anos de prisão. Esse indivíduo poderia receber imunidade em troca da devolução dos objetos, informou Ortiz.

“Nós conseguimos muita atenção com a divulgação na imprensa”, disse Kelly. “Geramos uma boa quantidade de pistas e telefonemas. O resultado que a gente teria amado seria alguém ligar e dizer: ‘Essas coisas estão no meu sótão e eu não sabia o que fazer com elas’ ou ‘meu vizinho está com elas’. Nós estamos esperando esta ligação.”

Kelly diz que o FBI tem confirmação de pessoas que viram as pinturas há 12 anos, mesmo que tenha se negado a dar detalhes.

“Muitas vezes, demora uma geração para que as pinturas reapareçam. Alguém está limpando a casa e encontra a arte”, diz ele. “Você vê uma grande quantidade de obras que os nazistas tomaram durante a guerra que está começando a surgir apenas agora. Estamos confiantes de que as obras do Gardner ainda estão por aí. O maior medo é que alguém tenha destruído elas. Mas historicamente isso não ocorre porque eles podem devolver em troca de leniência. Quando você está trabalhando com roubo de arte, é preciso ter paciência.

Até hoje, as pesadas molduras de ouro que, no passado, mantinham o Vermeer, o Flinck e dois dos Rembrandts roubados permanecem nas paredes da Sala Holandesa do Museu Gardner, esperando pelo retorno das obras primas, enquanto crianças em visitas escolares e turistas passeiam pelo local do crime.

O roubo no Gardner levanta uma questão: os museus são seguros nos dias atuais? Sim — pelo menos a maior parte deles, de acordo com Erin Thompson, uma professora assistente de crime de arte no John Jay College de Justiça Criminal, faculdade localizada em Nova York. Ela tem um interesse especial em medidas contra saques.

“Muitos, mas muitos museus — mesmo aqueles que têm dificuldades para levantar fundos — têm câmeras capazes de capturar imagens de suspeitos em uma qualidade superior àquelas que temos no caso Gardner”, diz Thompson.

Ainda assim, os museus dos EUA têm maior probabilidade do que os europeus de terem problemas na sua segurança, a professora explica. “Os museus europeus recebem mais fundos dos governos e gastam uma porcentagem maior em segurança do que aqueles nos Estados Unidos, onde doadores privados preferem ver seu dinheiro pagando por novos objetos que brilhem.”

Mesmo assim, existem muitos exemplos de sistemas falhos nos dois lados do Atlântico.

Um dos casos mais famosos é o do furto, em 12 de fevereiro de 1994, do quadro de Edvard Munch, “O Grito” (1893), da Galeria Nacional Norueguesa em Oslo. Era o dia da abertura das Olimpíadas de Inverno, realizadas na Noruega naquele ano, e a galeria havia mudado a pintura de um andar mais seguro para o segundo andar, próxima a uma janela. A mudança fazia parte das festividades.

Foi como roubar doce da boca de criança. Dois ladrões demoraram cerca de 50 segundos para levar a pintura icônica de uma figura gritando em uma ponte. “Eles escalaram por uma escada, quebraram a janela, e tiraram a obra da parede. Depois desceram pela escada”, lembra Thompson.

Diferentemente do Museu Gardner, a Galeria Nacional tinha uma câmera de segurança registrando tudo. Mas as imagens eram muito pobres para identificar os ladrões.

Um dos ladrões deixou um cartão postal particularmente brega para trás, onde se lia: “Mil obrigados pela má segurança”.

A pintura foi recuperada sem nenhum dano alguns meses mais tarde em uma operação comandada por investigadores da Noruega e da Grã Bretanha.

“Isso mostra para mim um problema sistemático de segurança nos museus. Quando você pensa em um museu, provavelmente pensa em um lindo prédio antigo. É muito mais difícil fazer a segurança em um prédio antigo do que em um prédio construído com esse propósito”, afirma Thompson.

Seguindo a mesma linha de Kelly, o agente do FBI destinado a investigar o caso Gardner, a professora também acredita que, mesmo nos mais bem equipados museus do mundo, erros humanos envolvendo guardas são a maior fragilidade de segurança.

“No caso do Munch, um alarme disparou no segundo em que a janela foi quebrada. Mas o único guarda que estava no local resolveu desligá-lo sem olhar para as imagens das câmeras de segurança”, explica Thompson.

Ela acrescenta que cerca de 90% dos roubos de arte acontecem em locais de armazenamento das obras e não nas galerias de exposição.

“É muito, muito mais difícil de manter o controle do que está nesses galpões porque há casos em que ninguém mexe nas caixas durante anos”, ela diz.

Muitos museus enfatizam sua segurança na prevenção ao vandalismo — intencional ou acidental -, o que é considerado um risco maior do que roubos multimilionários de obras, mais difíceis de serem negociadas e, como muitos acreditam, fadadas a simplesmente reaparecerem em uma galeria que vende arte depois que um pretensioso dono morre e a família resolve se desfazer do seus bens.

“Muitos museus fazem checagem de bolsas na entrada”, diz Thompson. “Você irá notar que eles são muito abruptos. A checagem pode durar 25 segundos. Alguém determinado consegue facilmente entrar com um frasco de ácido. Mas o real propósito é fazer com que o primeiro ato de entrada em um museu seja um ato de submissão à segurança. Eu chamo isso de teatro da segurança. Você tem a sensação de que está sendo vigiado, mesmo que o museu não tenha o número suficiente de seguranças para vigiar todo mundo. Isso custa pouco, mas é muito eficiente.”

Stradivarius No Sótão.

Não existia nem um pouquinho de segurança para Frank Almond quando ele saiu para o estacionamento do lado de fora da sala de concerto Schan, na Faculdade Luterana de Wisconsin, onde havia se apresentado com outros músicos em 27 de janeiro de 2014. Naquela noite a temperatura atingira 21 graus Celsius negativos e o vento soprava com força. Ele vestia uma fina jaqueta North Face sobre as roupas usadas na apresentação. Pensava apenas em chegar no seu carro e ir para casa.

Almond, o primeiro-violinista da Orquestra Sinfônica de Milwaukee, estava exausto depois de tocar a parte para violino do “Quarteto para o Fim dos Tempos”, de Olivier Messiaen.

Messiaen, um auxiliar médico do Exército francês durante a Segunda Guerra Mundial, foi capturado pelos alemães e compôs essa peça etérea inspirada na passagem da Bíblia no Livro das Revelações. É a obra de um prisioneiro de guerra.

“É uma daquelas peças do século XX que são icônicas e que têm um efeito profundo no público e também nos músicos que estão tocando”, diz Almond.

O concerto daquela noite fazia parte da série chamada de Música Franca, idealizada por Almond. Ele se recorda de chegar ao concerto daquela noite pontualmente às 19h e empacotar tudo às 22h15.

“Estava muito, muito frio, um dos dias mais frios do ano”, diz o músico. “Eu estava feliz de ir para o estacionamento perto da saída do palco porque poderia entrar no carro logo.”

Estacionado próximo ao seu carro estava uma van marrom, toda batida, e descrita por Almond como se fosse a Máquina Misteriosa, o famoso carro do desenho animado Scooby-Doo. O motor daquele carro estava ligado.

Almond estava colocando a caixa do seu violino no banco de trás do seu carro, como se fosse um bebê. Por uma boa razão. Tratava-se de um Lipinski Stradivarius de 1715, avaliado em cerca de US$ 5 milhões, além dos dois arcos que, juntos, eram avaliados em US$ 50,000.

Pela lateral do olho, ele viu um homem usando um casaco de pele e um gorro também de pele caminhando em sua direção. Uma mulher usando um chapéu escuro de pele estava no assento de motorista da van.

“Ele estava chegando mais e mais perto. De repente eu vi um flash. Por um segundo imaginei por que ele estava tirando fotos de mim.”

Era um taser, uma arma de eletrochoques.

Um gancho furou sua jaqueta. Outro atravessou seu pulso direito. O choque paralisou Almond e ele despencou no solo duro e congelado.

Quando o músico recuperou os sentidos, ele viu a van indo para longe. O Stradivarius havia sido levado.

“Eles levaram o violino!”, Almond gritou para seu amigo Todd Levy, um clarinetista, que estava por perto.

Fabricado em 1715, o Lipinski Stradivarius é um instrumento musical, sim, mas também uma peça sublime de arte. Suas costas, laterais e frente são feitas de madeira de bordo, cortadas à mão. Acredita-se que o italiano Antonio Stradivarius construiu cerca de mil violinos, dos quais 600 sobreviveram.

“Uma das coisas que diferencia o Stradivarius é a maravilhosa seleção da madeira durante a carreira do artesão, devido ao fato de que ele era muito, mas muito rico mesmo”, diz Stefan Hersh, sócio da loja de violinos finos Darnton e Hersh, em Chicago.

Em 1715, Giuseppi Tartini, um aristocrata e músico italiano, tornou-se o primeiro dono do violino roubado três séculos mais tarde em Milwaukee. Ele deu o violino para um estudante, que depois o repassou a um talentoso violinista, Karol Lipinski, no começo dos anos 1800. Hoje, o nome de Lipinski é associado ao instrumento. Desde então, a história do Stradivarius usado por Almond naquela noite tornou-se nebulosa. Em determinado ponto, acredita-se que ele acabou nas mãos de um dono em Cuba, mas é tudo o que se sabe.

Até que, em 1962, a violinista profissional Evi Liivak recebeu o Lipinski de sua sogra, Rosalind Anschuetz, que havia pago US$ 19,000 por ele. O marido de Liivak, Richard Anschuetz, manteve o violino em seu apartamento em Nova York depois que a mulher morreu.

Anschuetz tinha mais de 90 anos quando se mudou para Milwaukee, com a intenção de ficar mais próximo da família. Ele morreu em 2008. Naquele mesmo ano, Almond recebeu um telefonema dos herdeiros de Anschuetz, que preferem manter seus nomes fora dos holofotes.

“Eles me perguntaram se eu gostaria de tocar com ele porque eles gostariam que a comunidade local ouvisse aquele som”, diz o músico. “Eles realmente acreditavam que o violino deveria ser tocado e não guardado em um armário ou em uma caixa de vidro em algum lugar.”

Eles procuraram Almond porque, além de ser um artista de renome mundial e professor das Universidades Northwestern e Roosevelt, também é um especialista em violinos Stradivarius. Já tocou com vários deles em sua carreira.

Almond também é amigo de longa data de Stefan Hersh, um violinista e internacionalmente reconhecido luthier baseado em Chicago, que cuidara dos Stradivarius com os quais Almond havia tocado anteriormente. Quando encontrou com os herdeiros de Anschuetz, Almond decidiu levar Hersh junto, por conta de todo o seu conhecimento técnico.

O encontro dos dois com os herdeiros aconteceu no cofre de um banco em Milwaukee, onde eles inspecionaram o violino. Mesmo sob uma luz baixa, Hersh imediatamente soube que, pela escolha da madeira e pelo modo de construção, aquela não era uma imitação.

“Ver um Stradivarius do melhor período, que você nunca havia visto antes, aquele foi um grande momento”, diz Hersh. “O momento da minha carreira, com certeza.”

“Ele precisa de um pouco de TLC”, disse Almond.

O pescoço do violino, por exemplo, precisava ser reparado. Mas logo essa “antiguidade funcional”, como ele é chamado por Almond, estava embasbacando espectadores, como aqueles do concerto na noite do roubo.

Os policiais que chegaram ao estacionamento encontraram Almond e Levy desconsolados. Eles não tinham ideia do tamanho daquela história. Mas foram “absolutamente gentis e fizeram o trabalho, recorda Almond, apesar de a importância do instrumento musical do século XVIII não ter ficado clara para eles.

“Eu tive que soletrar: S-T-R-A-D-I-V-A-R-I-U-S”, lembra o músico.

Levy percebeu que seria necessário assumir o controle da situação, para ajudar o amigo em choque. O tempo estava correndo e a van do Scooby-Doo se dirigia a toda velocidade para o aeroporto de Milwaukee, ou para Chicago, ou para outro lugar que seria o destino do violino.

Levy pegou seu iPhone. Ele começou telefonando para Tanya Mazor-Posner, diretora de desenvolvimento da orquestra. Ela ligou para um membro da diretoria, que imediatamente ligou para o chefe da polícia de Milwaukee, Ed Flynn, que já estava na cama.

“O chefe da polícia de Milwaukee é um grande fã da sinfônica”, diz Almond. “Ele entendeu o que eu estava tocando. Ele mesmo havia escutado várias vezes. Não era um instrumento qualquer que havia sido roubado de um músico local. As coisas começaram a acontecer rapidamente. Ele ligou para o sargento que estava na cena do crime.”

Em segundos, a ligação noturna para Flynn deu para aquele caso a urgência dispensada a uma investigação de assassinato, nas quais as 24 primeiras horas são consideradas essenciais para solucionar o caso.

É claro, ter sorte também ajuda.

O detetive Scott Lackovic, da polícia de Milwaukee, encontrou resquícios no estacionamento, próximo do local onde estava o carro de Almond. Ele logo percebeu que se tratava dos resquícios do disparo da arma de choque, que utiliza cartuchos de gás comprimido para disparar os fios eletrificados e pequenos pedaços de papel, conhecidos como microdardos. Cada um desses microdardos tem um número de registro do taser, para que possam ser rastreados ao dono original da arma.

Evidência. Mais evidências surgiram no dia seguinte.

Usando rastreamento por GPS (as autoridades não revelam qual aparelho foi rastreado, mas procuradores informaram que o telefone de Almond e seu iPad estavam na mesma sacola do Stradivarius), o detetive Eric Donaldson descobriu que a caixa do violino estava jogada no lixo em uma rua de Milwaukee. O violino e os arcos haviam desaparecido.

Dias depois do ataque, o Departamento de Polícia de Milwaukee pediu que o FBI ajudasse na caça ao violino e aos criminosos.

Foram designados para o caso o agente especial David Bass, um agente de rua que trabalha meio período como membro do time de Crime de Arte, e outros dois agentes. Eles iriam trabalhar diariamente ao lado da tropa de elite de detetives da divisão de homicídios local, sob a supervisão do chefe Flynn. Pelo menos mais 25 agentes ajudaram em entrevistas e buscas. O FBI entrou em contato com a Interpol, caso o violino já estivesse em outro país.

“Foi um uso massivo de recursos”, recorda Bass.

Algumas entrevistas para programas de rádio locais foram críticas ao esforço hercúleo dos policiais. Eles foram questionados se todo aquele aparato não estava tirando o foco de importantes investigações de assassinatos, roubos ou estupros na cidade.

Bass defende os esforços da polícia de Milwaukee e do FBI.

“Esse foi um enorme evento para a cidade de Milwaukee, era um item muito importante para a cidade, e eu acho que o chefe da polícia estava totalmente certo no que fez em termos de recursos usados”, afirma Bass.

Antes de se juntar ao FBI, Bass foi um oficial e piloto de helicóptero do Exército. Tornar-se agente é um caminho que muitos militares percorrem. Bass era fascinado por pinturas, fotografias e livros raros. Na realidade, começou a colecionar arte quando tinha pouco mais de 20 anos.

“Eu comecei com pequenos itens”, diz ele. “Sou um funcionário público e não um multimilionário, obviamente. Mas eu aprendi que você pode comprar coisas legais e de boa qualidade. Você acha barganhas aqui e ali.”

O colecionador que existe dentro do agente pressentiu que algo não parecia certo no caso do Stradivarius.

Presumivelmente, um multimilionário aficionado por instrumentos raros não usaria táticas tão cruas ou contrataria ladrões tão descuidados, pensou Bass. Ele começou a repensar as especulações em massa de que o violino teria sido levado para a Europa ou algum outro lugar no exterior.

Para começar, o método dos ladrões, usando uma arma de choque, era muito arriscado.

“Depois que comecei a receber detalhes sobre a natureza do crime, eu pensei que aquilo era bizarramente estranho”, recorda Bass. “Foi muito alarmante a princípio. O roubo a mão armada não fazia sentido. O fato de que eles usaram uma arma de choque era estranho. Você tem o risco de errar o tiro com uma arma daquela. O que aconteceria?”

Apesar das dúvidas sobre o profissionalismo dos bandidos, Bass diz que ele manteve a mente aberta para a possibilidade de o violino estar ainda em Milwaukee ou de já ter sido levado para outro lugar. A caixa abandonada indicava para ele que a resposta seria Milwaukee.

E ele estava particularmente preocupado sobre como os ladrões estariam cuidando do instrumento de 300 anos de idade.

“Ao lidar com crimes de arte, você se preocupa com a condição do item. Quanto mais tempo ele está sumido, maiores as chances de que alguma coisa aconteça a ele. Como sabemos por experiência, criminosos não são exatamente os que melhor cuidam das coisas que eles roubam. Isso é verdadeiro para pinturas. É verdadeiro para instrumentos musicais. Essas coisas requerem uma certa quantidade de conhecimento para armazenamento e transporte. E, geralmente, os criminosos não têm esse conhecimento.”

Depois de entrar no caso, o FBI entrou em contato com a empresa que fez a arma, a Taser International, e descobriu que o número de série encontrado pertencia a uma arma vendida pela distribuidora VCP Taser, localizada no Texas, e enviada ao endereço número 2216 norte na rua Martin Luther King, em Milwaukee, no dia 19 de junho de 2013. O homem que havia feito o pedido era chamado Universal K. Allah, um barbeiro.

No momento em que os investigadores faziam essa descoberta, um cliente visitou a barbearia de Allah, no dia 1º de fevereiro, cinco dias após o roubo. A conversa no estabelecimento, chamado Primeiras Impressões, tratava do violino roubado. O caso estava em todos os noticiários. Enquanto os clientes conversavam, alguns diziam que o ladrão era estúpido porque seria impossível vender aquele produto.

O cliente teve o cabelo cortado por Allah. Depois o barbeiro pediu a ele uma carona. No carro, Allah começou a falar sobre o caso.

Ele admitiu que havia comprado o taser para um amigo de longa data, chamado Salah Salahadyn, para que ele usasse em um roubo. Salahadyn não poderia comprar a arma porque tinha ficha criminal, explicou Allah.

Allah sabia que os policiais conseguiriam rastrear que ele era o dono da arma de choque. Mas ele contou que diria à polícia que ela havia sido roubada, se fosse questionado oficialmente.

O cliente contou da conversa que teve com o barbeiro para um policial de Milwaukee. Detetives checaram a ficha de Salahadyn e entenderam que ele era um pequeno criminoso com uma condenação em 1999. Ele pegara cinco anos de prisão por um crime de arte: tentar vender uma estátua roubada — “Mulher com Fruta (1948), de Nicholas Africano — exatamente para a galeria Michael Lord de onde o objeto havia sido roubado. A estátua avaliada em US$ 25,000 havia sido roubada em 1995 e Salahadyn tentou vendê-la de volta por US$ 3,000 em 1999, de acordo com as autoridades.

Um informante contou aos detetives que Salahadyn via a si próprio como um ladrão de arte. E em uma cidade conhecida por sua cerveja, salsicha alemã e o time de baseball dos Brewers, Almond era bem conhecido por Salahadyn como uma espécie de embaixador cultural das artes finas em Milwaukee. Não era segredo para ninguém que Almond tocava com aquele violino em concertos. Ele havia dado entrevistas sobre o instrumento, o que aumentou o interesse do público. Entre aqueles que admiravam a maestria com a qual o músico tocava o violino estava Salahadyn, que foi a um dos concertos na temporada 2012–2013, quando olhou pela primeira vez para sua presa.

Daquele momento em diante, roubar o Stradivarius tornou-se o seu sonho, segundo disse o informante aos investigadores.

Agora, o FBI e a polícia de Milwaukee tinham dois suspeitos, ambos criminosos locais. O que eles não tinham ainda era o precioso violino.

A teoria do agente Bass era de que Salahadyn estava esperando para recolher a recompensa de US$ 100,000 oferecida para quem devolvesse o violino.

No momento em que Salahadyn entrou no radar da polícia e do FBI, a investigação se moveu rapidamente. No dia 3 de fevereiro, uma semana depois do roubo, as autoridades entraram na casa do principal suspeito e na de Allah. Eles encontraram evidências de que Salahadyn não estava vivendo a vida de um cidadão modelo, apreendendo uma pistola carregada Taurus .357, cuja posse é proibida para um condenado. Além disso, encontraram pequenos sacos de maconha. Mais importante, encontraram uma pasta com cópias coloridas de reportagens relacionadas ao Lipinski.

Enquanto isso, Allah admitiu aos investigadores que havia comprado o taser para que Salahadyn pudesse roubar o violino.

A polícia prendeu Salahadyn. Em troca da informação sobre o paradeiro do violino, os procuradores concordaram em diminuir as acusações contra ele de roubo à mão armada para roubo. Salahadyn concordou em se declarar culpado pela acusação de roubo.

No dia 5 de fevereiro, os detetives da polícia local Billy Ball e Gus Petropoulos, além de Bass e outros agentes, acompanharam Salahadyn até sua casa, no bairro de Bay View, onde ele disse manter o violino.

Bass pegou emprestada uma escada com o time da SWAT, o grupo de elite para invasões. Ele subiu até o sótão com um fotógrafo especialista em registrar cenas de crimes e um policial local. O violino estava dentro de uma mala preta da marca American Tourister.

“Eu abri o zíper da mala. Verifiquei algo que aparentava ser um violino”, diz Bass.

O violino estava enrolado em um cobertor azul de bebê. Também dentro da mala estavam algumas roupas e a carteira de motorista de Salahadyn.

Bass se lembra de carregar o violino escada abaixo, como se ele fosse um recém-nascido.

“Você podia sentir naquele cômodo o grande sentimento de alívio que a gente tinha”, diz ele.

Bass e outros agentes seguraram o violino em seus colos no banco de trás de uma viatura da polícia. Eles seguiram para a sede do Departamento de Polícia de Milwaukee para guardar o instrumento em um local seguro.

“Eu me lembro de dizer ao motorista: dirija com cuidado”, afirma Bass.

Almond conta que estava fora da cidade enquanto tudo isso acontecia. Ele estava na Flórida, tocando em uma série de concertos para doadores privados da sinfônica. O violinista estava no estacionamento de um shopping, em algum lugar no meio da Flórida, quando recebeu a ligação do chefe Flynn.

“Ele disse: ‘Eu tenho boas notícias. Nós recuperamos o seu violino’”, recorda Almond.

“Eu fiquei simplesmente sem palavras. Parecia tão estranho, sabe, depois de nove dias nessa montanha russa em que eu não tinha muitas informações.”

Quando Almond retornou para Milwaukee do seu tour pela Flórida, ele e os donos levaram o violino para casa, para poder inspecioná-lo. O instrumento estava em surpreendente boas condições, com apenas algumas manchas. Ele tocou um pouco de Johann Sebastian Bach.

Almond ainda toca com o violino publicamente, mas não mais em toda apresentação.

“Ele não fica guardado no mesmo lugar o tempo todo”, diz ele. “E tem sempre alguém de guarda ou ajudando quando estou com aquele violino.”

Almond esteve frente a frente com Salahadyn algumas vezes desde o roubo. Uma delas foi na corte de Milwaukee, acompanhado de um agente, quando esbarrou com o ladrão perto dos elevadores.

“Eu realmente achei que ele iria ter um ataque do coração. Ele estava tremendo e não parecia querer estar ali”, relembra Almond. “O oficial disse: ‘Você se importa se a gente pegar o elevador?’ E ele respondeu: ‘Não, senhor, eu não me importo.’”

O segundo encontro também foi na corte, quando Salahadyn foi condenado, em 10 de novembro de 2014.

Salahadyn reconheceu que o roubo foi errado, mas nunca se desculpou com Almond, que estava na sala. Em vez disso, fez uma caracterização dele mesmo como um Robin Hood, de acordo com os registros daquele dia. Ele disse ao juiz que havia sido responsável por um complexo de seis apartamentos durante seis anos.

“Eu comecei a ver as coisas mudando durante os anos enquanto a situação econômica das pessoas piorava e elas perdiam seus apartamentos, e os novos donos compravam os apartamentos. O prédio passou por uma gentrificação”, disse, no julgamento. “Eu vi membros da minha família e pessoas que foram meus mentores ficando velhos, sem ter cuidado médico, sem segurança suficiente. E eu queria fazer algo sobre isso.”

Salahadyn afirmou que ele planejou roubar o Stradivarius para “comprar aquele mesmo prédio em que havia trabalhado para que pudesse escolher quem iria viver ali, e as pessoas que foram injustamente despejadas pudessem voltar para casa”.

“Eu entendo que eu devo ser punido. Eu tenho que cumprir algum tempo. Tudo o que eu queria era justiça”, disse ele.

Almond subiu no banco das testemunhas para buscar a pena máxima ao homem que o atacara.

“Esse foi um ataque baixo que poderia facilmente ter resultado em um efeito permanente, que acabaria com a minha carreira. Ou pior, poderia ter terminado com a destruição de um dos tesouros artísticos mais importante do mundo que encontrou — de todos os lugares possíveis — abrigo na cidade de Milwaukee”, disse Almond ao juiz.

“O senhor Salahadyn demonstrou ruidoso e uniforme desprezo pela lei e pelos moradores desta cidade”, ele disse.

O juiz Dennis Moroney concordou, dizendo a Salahadyn que seu crime não era de forma alguma “nobre”.

“A temperatura estava abaixo de zero e você ataca ele com um choque de 50,000 volts? Por favor! Isso é simplesmente errado”, disse Moroney.

O juiz sentenciou Salahadyn a sete anos na prisão. Seu cúmplice, Allah, foi condenado a três anos e meio. Os procuradores concordaram em não denunciar a namorada de Salahadyn, a motorista da van usada no crime.

“Conseguir a condenação em casos como este é fundamental para que músicos que trabalham com esses instrumentos diariamente estejam seguros — e que esses objetos insubstituíveis também”, diz Bass.

O Valor Da Arte.

O Stradivarius levemente danificado não estava pronto para voltar a ser tocado depois de seus dias em um sótão gelado.

Mas isso era esperado. Esses violinos são construções delicadas, que requerem constante ajustes e calibrações. Almond disse que todo Stradivarius com os quais já tocou precisam de um “período de ajuste”, como um carro esportivo exótico.

Frank Almond, primeiro-violinista da Orquestra Sinfônica de Milwaukee, toca o Stradivarius recuperado. Imagem: Peter Holderness.

“É um instrumento bastante enjoado”, ele complementa. “Um Lamborghini, quando está 100% em forma, com uma equipe tomando conta diariamente, é ótimo. Mas se há um fusível queimado ou uma coisinha com defeito, ele de repente se torna menos amigável.”

“Essas coisas são capazes de maximizar nossas forças, artisticamente, mas também podem iluminar suas fraquezas. É como se um se acostumasse com o outro. Você certamente faz amizade com ele”, diz o músico, se referindo ao instrumento.

Depois de nove meses de reabilitação e reaproximação com o Stradivarius, Almond traz seu velho amigo de volta à vida, em uma sala vazia de concerto no Marcus Center em Milwaukee. Era outubro de 2014.

Ele abre a caixa e pega o violino. Então ele levanta um dos dois arcos roubados, manufaturados por Émile Ouchard em 1940 e agora avaliado em US$ 20,000. Esses arcos eram conhecidos por sua perfeita simetria e balanço.

Almond aproxima o arco das cordas e toca um pouco de Bach — algumas peças que ele diz serem sagradas para a maior parte dos violinistas.

Ele me diz que estava apenas brincando com o instrumento, usando alguns minutos para mostrar o seu virtuosismo. Mas quando já está aquecida, uma voz ressonante do violino italiano preenche a sala vazia e soa sinistramente humana, como se as renomadas sopranos de ópera Jessye Norman ou Rénee Fleming estivessem por ali. A diferença é que essas duas artistas são mortais, enquanto o Stradivarius é capaz de carregar sua voz, poder e significado por um período indeterminado.

Alguns podem achar, como muitos cidadãos de Milwaukee, que é esquisito tanta devoção e um gasto enorme de recursos públicos para combater esses crimes. Mas naquele momento na sala de concerto, parecia bom e necessário que alguém esteja por aí lutando contra aqueles que são capazes de manchar, destruir ou roubar esses objetos insubstituíveis para a nossa herança cultural.

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