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BRIO STORIES
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8 min readOct 11, 2016

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Ilustração: Pedro Matallo.

(O autor tomou a liberdade narrativa de, literalmente, romantizar os diálogos presentes neste ato. Contudo, os personagens envolvidos, os ambientes e o contexto geral descrito na reportagem são, por óbvio, verdadeiros).

Ato 2: Geraldinho e Maria Lúcia

“Love is a many splendored thing
It’s the April rose that only grows in the early spring
Love is nature’s way of giving a reason to be living
The golden crown that makes a man a king”

Meados de 1976. Os vocalizes e metais da orquestra comandada por Ray Conniff ecoavam abafados pelas pequenas caixas de som penduradas no teto do salão do Clube Literário e Recreativo, no centro de Pindamonhangaba. A cidade paulista de 40 mil habitantes, encravada no Vale do Paraíba, ainda sofria os efeitos do fim do ciclo do café, nos anos 1920, decadência que afetava diretamente a estrutura do Literário, idealizado para ser uma biblioteca — os seus fundadores orgulhavam-se da coleção de literatura francesa, a maior da região, com obras de Émile Zola, Victor Hugo, Pierre Loti e Guy de Maupassant –, mas que na prática havia incorporado a palavra “clube” ao nome para também servir de abrigo às festas e aos cerimoniais da cidade.

O Literário seria palco até para a contagem de votos da eleição que definiria o novo prefeito de Pindamonhangaba, marcada para dali a alguns meses, assim como o baile de debutantes daquela noite, aguardado ansiosamente pelos jovens da cidade, inclusive pelo favorito ao pleito de 15 de novembro. Inebriado por um sentimento de mudança, tomado de uma coragem que ele mesmo desconhecia, o jovem de topete e proeminente nariz havia prometido para si mesmo chegar ao fim do baile com uma mulher em seus braços.

Ninguém entedia a razão pela qual o melífluo estudante de quinto ano de medicina, presidente de Câmara Municipal e vereador mais votado da história da cidade, em 1972, com 1.447 votos (mais de 10% de todo eleitorado) — popularidade que ele alcançara graças, se dizia à boca pequena, à fidelidade de suas dedicadas alunas de cursinho — continuava solteiro. Não lhe faltavam candidatas, moças de boa família e vocação para o lar que se perfilavam do outro lado do salão, ansiosas à espera de um bom partido que a tirasse para dançar e, quem sabe, as levasse direto para o altar. Melhor ainda se fosse ele um político em ascensão, ambicioso, que pudesse num futuro próximo livrá-las do tédio da vida interiorana.

E a despeito da timidez com as mulheres (mantinha-se casto aos 23 anos), Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho, mais conhecido como Geraldinho, revelara-se um político habilidoso, que conseguia passar a imagem de moderno e progressista, uma das novas vozes do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) na região, sem precisar romper com suas origens. Sua filiação, em 1972, à legenda de oposição ao regime militar, não azedara a relações com a família e padrinhos políticos, a maioria ligados a setores ultraconservadores da Igreja Católica.

O pai, também médico, era udenista fervoroso e simpatizante da Aliança Renovadora Nacional — após o Golpe de 64 muitos quadros da UDN migraram para a Arena. Ele pertencia à Ordem Terceira de São Francisco, ala moderada se comparada à rigidez doutrinária da Opus Dei, prelazia na qual o tio de Geraldinho, José Geraldo Rodrigues de Alckmin, ministro do Supremo Tribunal Federal indicado durante a ditadura, entrara para a história como o primeiro filiado do Brasil.

Em pouco tempo, Geraldinho passara de político aparentemente despretensioso para um dos quadros mais promissores do MDB. O vereador levara para a política a disciplina herdada dos tempos de coroinha. Influenciado pelo tio, o rosto da Opus Dei no Vale do Paraíba, ele se mostrava disposto a encarar qualquer tipo de sacrifício para emergir politicamente. Ascensão que passava obrigatoriamente por uma vitória nas eleições municipais.

Mas o vereador que se valera do sobrenome e das boas relações com a igreja local para desbancar, nas prévias do MDB, o até então candidato favorito do partido, o procurador de Justiça Thiers Fernandes Lobos (que aceitaria ser vice na chapa), não podia dar margem a nenhum tipo de boato se quisesse manter o prestígio em alta.

E um buchicho passou a ser ouvido na provinciana Pindamonhangaba, sobretudo na barbearia Ideal, onde José Rodrigues Alckmin, pai do candidato a prefeito, fazia a barba todo santo dia. Por que Geraldinho, exemplo de retidão, o professor de cursinho tão paparicado por suas alunas e solteiras da cidade, não tinha ainda uma companheira? É verdade que o vereador e quase médico não era de longe um homem garboso, sedutor, mas o excesso de fealdade havia de ser um detalhe desprezível diante de seus inquestionáveis predicados. Sendo assim, por que ele continuava solteiro?

Maria Lúcia.

“Once on a high and windy hill
In the morning mist, two lovers kissed,
And the world stood still
Then your fingers touched my silent heart
And taught it how to sing
Yes, true love’s a many splendored thing …”

Geraldinho tomou, enfim, coragem. Atravessou a passos largos o salão do Literário, desviando-se dos casais que dançavam, e postou-se em frente ao grupo de cinco moças. Ele havia combinado consigo mesmo que seria rápido, para que sua timidez com as mulheres, como sempre, não lhe atrapalhasse, impedindo-o de fazer o que tinha de ser feito: achar a mulher da sua vida. A ansiedade se justificava. Outra oportunidade como aquela só dali a alguns meses, depois da eleição para prefeito, no baile do fim de ano. E o jovem vereador não queria correr o risco de passar o resto da campanha sendo questionado pelos adversários, que o provocariam com a maldita pergunta, que ele ouvira da boca do próprio pai na barbearia Ideal:

– Por que Geraldinho continua solteiro?

Não houve tempo nem para um breve colóquio. Nem para dúvidas. Geraldinho parecia nem notar a presença das outras quatro mulheres, irmãs e primas da morena de negros e longos cabelos, caídos sobre os ombros, que sorria para ele como se o conhecesse há muitos anos:

– Muito prazer. Eu sou Maria Lúcia.

Ele nunca chegara perto de uma mulher tão linda e graciosa. Nunca. Algumas de suas alunas do cursinho de Taubaté também eram bonitas, de olhar dadivoso, mas não como o de Maria Lúcia. Mulher como aquela ele só vira na capa das revistas da barbearia Ideal. O jovem médico estendeu-lhe a mão:

– A senhorita me dá o prazer desta dança?

As pernas de Geraldinho, até então amolecidas pela ansiedade, enrijeceram. De rosto colado ao de Maria Lúcia, ele mal conseguia dar ritmo ao corpo. Era até um bom pé de valsa. Dançava sempre com suas alunas, relaxado, desprovido de compromisso, como se fosse um irmão mais velho. Mas agora não. Estava à procura de sua futura noiva, a mulher de seus filhos. Maria Lúcia?

Geraldo e Lu Alckmin, no dia de seu casamento. Reprodução do Instagram, publicado no site Glamourama.

Se ela estava ali no baile do Literário, tão bem frequentado, provavelmente vinha de boa e respeitada família. Estranho: ele conhecia, de vista, suas irmãs e primas, mas ela, não. Nunca a vira pela cidade, nem pelas redondezas. Tinha certeza absoluta: uma mulher como Maria Lúcia não se esquece depois do primeiro olhar.

Tomado pelos pensamentos, Geraldinho não relaxou — um joelho ficou praticamente grudado ao outro. A moça certamente notara seu desespero. Logo ele que dançava tão bem Love is a Many Splendored Thing. O amor podia ser algo esplendoroso, mas o medo e a insegurança, também. Por um momento ele odiou a hiperbólica orquestração de Conniff — o sofrimento parecia não ter fim. Mas teve. Salvo por um doce sussurro:

– Você me parece nervoso. Vamos nos sentar?

Numa mesa no canto do Literário, Geraldinho pode enfim saber tudo sobre a moça. Gostava do que estava ouvindo. Ambos vinham de famílias tradicionais da cidade e possuíam trajetórias parecidas: ele perdera na infância a mãe, e ela, o pai. Ele começara a trabalhar cedo, conciliando as aulas da faculdade de Medicina em Taubaté com a de professor de cursinho. Ela, que se formara em magistério no Instituto de Educação João Gomes de Araújo, também estudava corte e costura — sonhava em montar sua própria grifes de roupas.

Geraldinho assustou-se com a idade de Maria Lúcia. Vinte e cinco anos? Um ano a mais do que ele. Parecia ter bem menos, no máximo dezoito. Ele, ansioso, fazia perguntas demais. Era um cavalheiro, muito educado, atencioso, mas naquela noite, devido às circunstâncias, se mostrara um tanto afoito, com o tom de voz inquisitivo.

Quando soube que ela passara um ano fora de São Paulo, seu rosto mudou. Parecia petrificado. Passou a gaguejar, suar frio, com se soubesse o que estava por vir. Era melhor que ela fosse diretamente ao assunto, que aliviasse o sofrimento do rapaz.

– Geraldo, não podemos ir adiante.

– Por que? Eu lhe fiz algum mal?

– Não. Você, não, mas…

– Não se acanhe, diga.

– Eu cometi um grande erro na minha vida…

– Todos nós cometemos erros, Maria Lúcia.

A voz de Maria Lúcia, mesmo trêmula, não perdera a candura:

– Eu já fui casada, Geraldo.

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Tom Cardoso, 43 anos, é jornalista. É autor de três biografias, “O Marechal da Vitória” (Editora Girafa), sobre o empresário de comunicações Paulo Machado de Carvalho, “75 kg de Músculos e Fúria” (Editora Planeta), perfil do polêmico jornalista Tarso de Castro, criador de “O Pasquim”, e “Sócrates — A História e as Histórias do Mais Original Jogador do Futebol Brasileiro” (Editora Objetiva), livro que narra a trajetória de um dos maiores ídolos do futebol brasileiro. É também autor do livro-reportagem “O Cofre do Dr. Rui” (Civilização Brasileira), que conta a história do lendário assalto comandado pela VAR-Palmares de Dilma Rousseff no anos 1960, obra que foi uma das vencedores do Prêmio Jabuti 2012 na categoria Reportagem. Em 2013, venceu o Prêmio Abril de Jornalismo, também na categoria reportagem, com a reportagem sobre a espiã do Dops, Maçã Dourada.

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