Ilustração: Pedro Matallo

ATO 4: Mansões, dólares e balas

BRIO
BRIO STORIES
Published in
10 min readNov 3, 2016

--

Erguido no terreno de uma chácara da família Matarazzo, em 1966, o Shopping Iguatemi penou durante uma década até conquistar a confiança do empresariado paulistano, nova fase que coincidiu com a venda de boa parte de suas ações para o grupo Jereissati, em 1978. Até então, o seu idealizador, o construtor Alfredo Mathias, não conseguia convencer investidores a adquirirem os lotes do fundo do shopping — achava-se que a freguesia jamais caminharia até as lojas dos fundos.

Não foi o que se viu no fim dos anos 1970. Duas pequenas butiques no fundo do segundo andar, uma em frente à outra, mal conseguiam dar conta da clientela, que não parava de crescer. A inauguração do primeiro shopping do país estabeleceu uma nova dinâmica no comércio de moda de luxo na maior cidade brasileira. A burguesia começava a migrar aos poucos da Rua Augusta, onde se concentravam as lojas de alta costura, para as duas butiques do Iguatemi, a Galerie e a Elle Toi Et Moi, administradas, respectivamente, pelas empresárias Maria de Lourdes Vieira e Eugenia Fleury.

A preocupação de Maria de Lourdes não era com a concorrente. Sobravam pedidos. Ela, assim como sua rival, apostara na infalível combinação de bom gosto com produção em série, numa época em que era praticamente impossível importar tecidos do exterior. Não era preciso mais esperar meses para encomendar um vestido: elas prometiam agilidade com sofisticação, entregando peças semiexclusivas, ao gosto das madames.

O que Maria de Lourdes temia era a presença, cada vez maior, de seu filho na butique e o inevitável encantamento que ele provocava nas clientes. O casamento de Laurival com uma bela e recatada jovem de Pindamonhangaba durara apenas oito meses. E lá estava ele de novo, flanando pelos clubes chiques da cidade, sempre rodeado de belas mulheres e de homens estranhos. Ao contrário do que ocorria na Sociedade Hípica Paulista, onde era visto com certa desconfiança por alguns sócios, na butique Galerie ele era “o filho da dona”.

Eugênia Fleury conta:

As nossas lojas eram separadas por um pequeno corredor. Não cheguei a ser amiga da Lourdes, mas mantinha uma relação cordial com ela e com os seus funcionários. Eu me lembro bem de seu filho. Ele não saía de lá, mesmo não exercendo qualquer tipo de trabalho na butique. Ele ficava o tempo todo de papo com as clientes, que pareciam seduzidas por ele. Eu nunca achei nada demais nele, estava muito longe de ser o meu tipo de homem.

Para as clientes da mãe, Laurival apresentava-se como advogado criminalista, mesmo sem possuir registro na OAB. Nem poderia. Ele ainda cursava o último ano da Faculdade de Direito Braz Cubas, de Mogi das Cruzes. Na universidade, o aluno mediano seria eleito presidente do diretório acadêmico por 905 votos, uma votação expressiva levando-se em conta o número de alunos do diretório, que não passava dos 1.500.

Ninguém entendia como alguém não identificado com nenhuma corrente política, um “alienado”, podia ser ao mesmo tempo tão popular entre os estudantes. Eleita tesoureira na chapa encabeçada por Laurival, a hoje procuradora do Departamento de Estrada e Rodagem (DER), Sônia Matricardi, desvenda o mistério:

O Laurival era um típico filhinho de papai. Não ligava para política, detestava discussões sobre luta de classe, mas era um sujeito extremamente sedutor, um grande orador, que sabia cativar as pessoas, principalmente as mulheres, que eram loucas por ele. Ele estava sempre bem alinhado, com um terno impecável, importado. Era também o mais novo da turma. Eu tinha 33 anos, já trabalhava há muitos anos, como a maioria dos estudantes da Braz Cubas, e ele nem tinha feito 24 ainda. Era dono de uma energia impressionante, uma capacidade de convencer as pessoas que explica o fato de ele ter conseguido ser presidente de um diretório acadêmico sem ter nenhum histórico de militância estudantil. Parecia que ele queria apenas testar o seu poder de sedução.

Laurival não foi mais visto nos corredores do segundo andar do Iguatemi. Nem sua mãe, que, surpreendida pelo aumento da concorrência — a cada três meses, uma butique de alta costura era inaugurada no luxuoso shopping — decidiu levar a Galerie para a Rua Jerônimo da Veiga, localizada em outro promissor ponto: o bairro do Itaim. A mudança deu novo fôlego aos negócios de Lourdes. A loja era maior e a concorrência, menor. E ela ainda podia contar com boa parte da clientela do Shopping Iguatemi.

Enquanto Laurival, em plena mutação para “Dr. Neto”, já respeitado como advogado criminalista graças à extensa rede de contatos na polícia, abria um escritório na Avenida Faria Lima, o alarme soava na 4ª Delegacia de Polícia de Investigações sobre Furtos e Roubos a Condomínios e Residências. Em menos de dois meses, dez mansões e apartamentos de alto padrão haviam sido roubados, sem que a polícia conseguisse qualquer pista sobre os assaltantes.

O caso foi parar nas mãos de um dos melhores investigadores do DEIC, hoje uma das lendas da Polícia Civil Paulista: Paulo Roberto de Queiroz Motta.
Motta ouviu todas as vítimas, entre elas Leila Ione Ravaganani de Souza Barros, filha do empresário Lélio Ravagnani, casado com a apresentadora Hebe Camargo, a colunista social Vanda Helena “Vick” Campos e a socialite Violeta Lagreca Welker. Todas eram, além de mulheres muito bonitas e atraentes, clientes assíduas da butique Galerie.

Motta nem precisou ir a fundo nas investigações. Numa noite do dia 18 de agosto, Adalberto Balcasse Lopes, mais conhecido como “Abacatinho”, procurado pela polícia por roubos e furtos, foi preso num motel da Zona Leste de São Paulo.

Ele era um dos quatros integrantes da quadrilha responsável pelos misteriosos assaltos às mansões e apartamentos de alto padrão. O quarteto, segundo Abacatinho, era comandado por um sujeito de fino trato, sem passagem pela polícia, que eles conheciam apenas como “Doutor”. Motta não precisou de muito esforço para chegar ao “Ladrão de Casaca”.

O Capitão América e a Mulher Maravilha.

No fim das contas, aquela história de comandar supostos roubos a mansões traria mais dividendos do que tormentos a Laurival Aquilino. Sim, a Associação dos Advogados de São Paulo cancelara a sua inscrição, mesmo não se provando nada contra ele. Mas deixar de fazer parte dos quadros da instituição não mudaria em nada a rotina do Dr. Netto, que continuaria arrebatando o coração das mais lindas mulheres do high society paulistano.

Após o escândalo noticiado pela revista Veja, a Sociedade Hípica Paulista, pressionada pelos seus sócios, também se viu a obrigada a cassar o título de Laurival, decisão lamentada pelas filhas das madames, que sonhavam com a possibilidade de cavalgar ao lado do Cary Grant brasileiro. A alcunha de “O Ladrão de Casaca” só fez aumentar o encanto em torno de sua já sedutora imagem.

O que se tornou cada vez mais difícil para Laurival foi dar conta de outro personagem que ele criara para si mesmo, gestado num ambiente muito mais pantanoso. Uma coisa era ter que lidar com as ingênuas dondocas do Jardim Europa — outra era viver como agente duplo sem despertar ódio e desconfiança. Dr. Neto entrara para a história como um dos mais hábeis e ardilosos “gansos” da Divisão de Entorpecentes da Polícia Civil, a ponto de ser transformado em agente da DEA, após a acusação de trocar dólares falsos nos Estados Unidos.

Dr. Neto cumpriu com louvor uma parte do acordo com a DEA: fazer valer sua astúcia e sua extensa rede de contatos para ajudar a polícia americana a capturar grandes traficantes de drogas. Ele seria muito bem pago por isso — e foi quando os americanos, graças aos contatos do ganso brasileiro, conseguiram localizar Francisco Marin Martins, conhecido como “El Tio”, colombiano radicado na Bolívia, operador internacional do Cartel de Medellín em Santa Cruz, na Bolívia.

“El Tio”, segundo relato de Dr. Neto, estava em São Paulo, negociando uma remessa para o exterior. Terminou morto ao trocar tiros com a polícia num quarto de hotel no bairro dos Jardins. A apreensão de uma grande quantidade de cocaína rendeu mais uma pequena fortuna a Dr. Neto, que tinha direito, pelos acordos com a polícia americana, a 5 mil dólares por quilo de droga apreendido.

Não era o bastante para o ambicioso ganso, que, segundo informações da DEA, embolsava ainda mais dinheiro ao negociar diretamente com traficantes bolivianos e colombianos, em troca de informações que só ele tinha. Dr. Neto era, de fato, um agente duplo: faturava dos dois lados. Os americanos não tinham certeza, mas desconfiavam e, mesmo satisfeitos com o desempenho de um dos seus melhores informantes no Brasil, decidiram expulsá-los dos quadros da DEA.

Dr. Neto não trabalhava mais para os americanos, mas nenhum policial civil seria tolo o suficiente para dispensar os seus serviços e contatos. Não só pela oportunidade de liderar grandes apreensões de drogas, mas também — no caso dos corruptos — pela chance de faturar junto com o ex-agente da DEA. Segundo informações da agência americana, Dr. Neto já atuava há muito tempo em parceria com um delegado paulista.

Ambos prestavam segurança a um contrabandista de nome Renato, que morava em Miami e recebia a cada 45 dias um carregamento de 70 toneladas de mercadoria ilegal. A chegada e a distribuição das mercadorias demoravam de seis a oito dias — Dr. Neto e o delegado recebiam por cada dia de segurança cerca de 3 mil dólares, segundo a DEA. Um “troco” perto do que eles pretendiam ganhar, ao extorquir um grande milionário: o americano William Reed Elswick, mais conhecido como “Capitão América”.

Dr. Neto conhecia bem Reed Elswick. O americano, sediado no Rio, também era frequentador das altas rodas paulistanas. No Brasil, Elswick era tido como bon vivant, mão aberta e amante de esportes radicais. Com mais de 2 metros de altura e 110 quilos, seu nome estava no Guinness, o livro dos recordes, como o corredor de barcos mais rápido do mundo. O mesmo nome também constava em outra lista, essa menos lisonjeira: a da Interpol.

Elswick havia sido indiciado na corte federal do estado de Louisiana por 25 delitos vinculados ao tráfico de drogas. Sua organização possuía pelo menos quatro navios cargueiros e estações próprias de armazenamento no México, se tornando uma das principais rotas de abastecimento de maconha e cocaína para os Estados Unidos. Segundo a justiça americana, em apenas dois anos, de 1977 a 1979, Elswick conseguira traficar mais de 500 toneladas de maconha.

Sua fuga para o Rio de Janeiro foi minuciosamente planejada e facilitada pela conhecida “benevolência” das autoridades brasileiras — para escapar da extradição para os Estados Unidos, Elswick forjou um casamento com uma brasileira. Segundo reportagem do Jornal do Brasil, os advogados de Elswick conseguiram influenciar até o mesmo o então ministro da Justiça, Fernando Lyra, e o próprio presidente José Sarney, para que fosse concedida clemência para o americano, por falta de provas de sua ligação com o tráfico de drogas, acelerando assim o seu processo de nacionalização.

O que Elswick não esperava era sofrer pressão por parte de um delegado paulista e de um certo “Dr. Neto”, ex-agente da DEA, que diziam possuir provas o suficiente para levar o americano à prisão perpétua até no mais permissivo dos países. O Capitão América e o Ladrão de Casaca se encontraram no dia 9 de setembro de 1989, na suíte presidencial do Hotel Intercontinental, em São Conrado, no Rio de Janeiro.

Dr. Neto exigiu 1 milhão de dólares para manter em sigilo as suas informações. No fim, aceitou receber 650 mil dólares, dos quais 400 foram pagos ali mesmo. Os outros 250 mil foram entregues pessoalmente por Elswick no escritório de advocacia de Laurival, o imponente Edifício Central Park, localizado no bairro do Itaim, em São Paulo.

Dr. Neto sabia do que risco que estava correndo. Não só por extorquir um grande traficante internacional, mas por oferecer, dessa vez, apenas o seu silêncio. Nos tempos de agente da DEA, as negociações terminavam com vantagens para os dois lados. Laurival embolsava uma boa grana, mas também oferecia informações e facilitações ao chantageado que o compensavam no médio prazo. Expulso do DEA, Dr. Neto também se tornara um alvo muito mais vulnerável. Era muito menos arriscado eliminar um ganso da Divisão de Entorpecentes da Polícia Civil do que um informante da DEA.

E não era apenas com o Capitão América que ele deveria se preocupar. O Cartel de Medellín enviara alguns de seus homens a São Paulo para investigar a morte de Francisco Marin Martins, o “El Tio”, um dos operadores internacionais da organização comandada por Pablo Escobar, que por muitos tempo atuou em São Paulo sem ser incomodado.

No dia 19 de janeiro de 1990, Dr. Neto, escoltado por um policial civil, parceiro de muitos anos, desceu a pé os 15 andares que separavam o seu escritório do 2º subsolo. Ao abrir a porta do carro, notou a presença de uma morena de cabelos longos, vindo em sua direção. Laurival nem teve de se aprumar, muito menos de desviar dos três tiros de pistola 7.65 dados à queima roupa. Morto por uma bela mulher. Um fim digno para o “Ladrão de Casaca”.

Quer ser avisado de nossas próximas histórias? Envie um e-mail para info@brio.media com o assunto “Quero Brio”. Se você é jornalista ou estudante de jornalismo, aproveite também para conhecer nosso recém-lançado serviço de avaliação, qualificação e inserção de profissionais no mercado de jornalismo, o BRIO Hunter.

Tom Cardoso, 43 anos, é jornalista. É autor de três biografias, “O Marechal da Vitória” (Editora Girafa), sobre o empresário de comunicações Paulo Machado de Carvalho, “75 kg de Músculos e Fúria” (Editora Planeta), perfil do polêmico jornalista Tarso de Castro, criador de “O Pasquim”, e “Sócrates — A História e as Histórias do Mais Original Jogador do Futebol Brasileiro” (Editora Objetiva), livro que narra a trajetória de um dos maiores ídolos do futebol brasileiro. É também autor do livro-reportagem “O Cofre do Dr. Rui” (Civilização Brasileira), que conta a história do lendário assalto comandado pela VAR-Palmares de Dilma Rousseff no anos 1960, obra que foi uma das vencedores do Prêmio Jabuti 2012 na categoria Reportagem. Em 2013, venceu o Prêmio Abril de Jornalismo, também na categoria reportagem, com a reportagem sobre a espiã do Dops, Maçã Dourada.

--

--