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10 min readSep 21, 2016

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Ilustração: Pedro Matallo.

Parte 4.2: Finais.

A prisão de Germano assustou Axel Mees. Como homem de negócios pragmático e frio, apesar de gostar do calor do carnaval carioca, o chefão da BMW no Brasil decidiu imediatamente tirar a imagem da montadora alemã de qualquer associação com um traficante de drogas.

José Germano tinha um sócio minoritário na concessionária, dono de 20% das ações. Enquanto estava preso nos Estados Unidos, a BMW convenceu o sócio a assinar a rescisão do contrato de concessão, acabando com a empresa de Germano, que se sustentava apenas naquela concessão dos alemães, adquirida ao assumir o passivo de R$ 2 milhões da empresa antecessora.

A empresa afirmou, em documentos judiciais, que pediu a rescisão “sob a justificativa de não desejar ter seu nome associado a eventual prática de ilícito”. Com a assinatura solitária de um sócio minoritário, Germano perdeu a parceria com a BMW e ainda saiu devendo R$ 528,8 mil para os alemães.

Escreveu o desembargador José Roberto Portugal Compasso, ao decidir que foi legítima a rescisão da concessão pelos motivos alegados:

“Trata-se de comportamento plenamente aceitável, considerando a natureza dos negócios praticados e a marca de renome. A defesa da imagem é do interesse de todos e, obviamente, não tem o negociante que aguardar o “trânsito em julgado” de sentenças penais condenatórias para adotar as condutas que garantam a continuidade de suas atividades no ambiente de normalidade e o resguardo de sua marca e sua imagem”.

O desembargador Adolpho Andrade Mello deixou registrado voto divergente, considerando que o distrato foi ilegal, mas foi vencido.

O caso referente à BMW acabou de chegar ao gabinete da ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça. Está com ela para decisão desde o último dia 26 de agosto. Germano tenta uma indenização de mais de R$ 800 mil.

A prisão de Germano nos Estados Unidos fez a Justiça brasileira acender seus radares para o caso do empresário. A denúncia do Ministério Público Federal contra José Germano Neto, pelos crimes de associação ao tráfico, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, chegou à Justiça três meses depois da prisão do empresário.

O caso ficou rodando na 8ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro por dez anos. Somente em 25 de setembro de 2009 veio a sentença. Germano estava absolvido das acusações de associação ao tráfico de drogas e formação de quadrilha, mas estava condenado a oito anos de prisão em regime fechado por lavagem de dinheiro — a acusação sustenta que Germano usou dinheiro das drogas para comprar a concessionária da BMW. Zalfa Nassar pegou a mesma pena.

Essa condenação de lavagem de dinheiro foi explicitamente associada pelo juiz Gilson David Campos à condenação sofrida por Germano na França. Ele escreveu:

“A condenação de GERMANO pela justiça francesa em razão da prática das condutas acima mencionadas é incontroversa. Embora ele alegue ter sofrido uma injustiça e negue veementemente em todo o curso da presente ação penal seu envolvimento com os fatos a ele imputados, o fato é que a condenação pelo delito existiu”.

Ou seja, o juiz não viu provas para condenar Germano por tráfico de drogas aqui, mas considerou que a mera existência de condenação na França, sem exame de eventuais provas colhidas pelos franceses, seria suficiente para atestar que o dinheiro usado para tocar a revendedora da BMW era fruto de origem ilícita.

O juiz também escreve:

“É certo que GERMANO nunca fora condenado e sequer processado em ação penal por esses supostos delitos. Também é sabido que para uma condenação não bastam meros indícios ou presunções, diante do princípio da não-culpabilidade. Mas, não se pode ignorar tampouco, que nunca fora inocentado. Simplesmente, não houve investigações efetivas nos inquéritos policiais instaurados para tanto, que ficaram completamente inertes”.

O magistrado só parece ter esquecido que Germano nunca foi inocentado porque nunca tinha sido acusado. Aquela era a primeira vez.

Germano e Zalfa recorreram da sentença. Argumentaram, especialmente, o fato de o juiz ter considerado a mera existência de uma condenação na França como motivo suficiente para o chamado “crime antecedente”, necessário para as condenações por lavagem de dinheiro — ou seja, o dinheiro tem de ser ilícito.

Em 23 de março de 2010, o desembargador André Fontes, do TRF 2ª Região, decidiu pela absolvição de Germano e Zalfa do crime de lavagem de dinheiro, derrubando a decisão de primeira instância. Exatamente um ano depois, os demais integrantes da 2ª Turma Especializada do TRF confirmam a absolvição.

No dia do julgamento na turma, em sua sustentação oral, um dos advogados de Germano ainda trouxe uma nova informação: os franceses queriam enviar uma carta rogatória para comunicar a Germano que ele fora condenado na França. Os policiais brasileiros, contudo, disseram que “não seria conveniente que a Justiça francesa expedisse essa carta rogatória porque eles certamente iriam negar as imputações que lhe eram feitas”.

“Na França, o apelante não foi julgado, eminentes Desembargadores; ele foi justiçado. Não recebeu cópia traduzida de nenhuma peça do processo; não foram considerados os documentos enviados — e vejam Vossas Excelências, documentos que se consubstanciavam inclusive em certidões públicas -, sob alegação de que os documentos da Justiça brasileira não eram merecedores de fé; não foi produzida qualquer prova; não foram consideradas também provas que o inocentavam”, disse aos desembargadores Manuel de Jesus Soares, defensor de José Germano.

Nélio Machado, um dos maiores criminalistas do país e que naquele dia defendia Zalfa Nassar, afirmou que o caso “representa uma das maiores aberrações jurídicas, uma verdadeira monstruosidade aquilo que se extrai do caso concreto”.

Coube à desembargadora Liliane Roriz, ao apresentar seu voto a favor de Germano, colocar em palavras aquilo que permeia todo o caso: “Apesar de nós tendermos sempre a não querer acreditar em tantas coincidências, coincidências acontecem”.

O Ministério Público Federal recorreu da decisão do TRF-2. Em 24 de setembro de 2013, o ministro Rogério Schietti Cruz, do STJ, acabou com a via crúcis de Germano na Justiça brasileira. O recurso do MP foi negado, e agora não cabem mais recursos. Qualquer nova acusação terá de passar por novas provas.

Como essa história está povoada de coincidências, o gran finale não poderia também deixar de ser uma delas. No mesmo dia em que o STJ estabeleceu que o sistema judicial brasileiro havia chegado ao fim da linha na tentativa de condenar José Germano Neto depois de um quarto de século de suspeitas e acusações, um homem de 65 anos morria em um quarto do Hospital Penal Dr. Fábio Soares Maciel, no Rio de Janeiro, para onde eram levados os detentos enfermos do complexo de Bangu. Era a tarde do dia 24 de setembro de 2013.

Antes de chegar a esse ponto, um flashback se faz necessário.

Em 1997, dez meses antes de José Germano ser preso em Nova York acusado de transportar 80 quilos de cocaína do Rio de Janeiro para a Europa, o subdiretor-geral adjunto da Secção Regional de Investigação de Tráfico de Estupefaciantes escrevia em seu escritório na Avenida Duque de Loulé, em Lisboa, um relatório sobre investigações que os portugueses conduziam a respeito de um conterrâneo apelidado de Grego, àquela época com 50 anos recém-completados.

Ele era acusado de comandar uma rede de “mulas”, que enviava do Brasil para Portugal, escondidos em malas de viagem, dezenas de quilos de cocaína. Ele tinha até um barco para esse transporte, que incluía o trânsito de haxixe entre Marrocos e França, pelo Mar Mediterrâneo. Quando o agente policial português escrevia o relatório, o mesmo investigado já havia sido condenado a 11 anos e meio de prisão, em julho daquele ano, por traficar 2,6 toneladas de haxixe via Marrocos. O documento foi enviado para a Polícia Federal brasileira, que conseguiu prender o alvo no fim de outubro de 1997.

O nome dele era José. José Manuel da Silva Viegas Duarte. Morava no Rio de Janeiro, era dono de um restaurante em Copacabana e vivia muito bem, à beira-mar, no Leblon.

Na tentativa de provar sua inocência e conseguir as reparações financeiras pela via crúcis enfrentada desde 1989, Germano contou com a ajuda essencial de sua mulher, Zalfa. Ela conseguiu localizar o velho amigo Roland Plegat, àquela altura já recolhido pós-prisão em uma casinha no interior francês. Contando com a ajuda de um intérprete da Embratel ao telefone, Zalfa Nassar contou as agruras de Germano (e dela própria) a Plegat, cobrando uma explicação sobre a razão de o francês ter envolvido Germano num caso tão grave. Plegat pediu para ela ir a Paris, para que as coisas fossem esclarecidas.

Na capital francesa, Plegat contou tudo. Ele disse que o “José” que ele e os demais da quadrilha conheciam do Brasil, envolvido até o dedão do pé com o tráfico de drogas, era José Manuel, o português, ou o “Grego”. “Eu tinha medo, porque esse outro José era um cara muito influente, muito poderoso. Agora eu posso falar porque ele morreu”, foi o que Plegat disse a Zalfa, segundo ela.

O ex-dono do Les Muses concordou em assinar um termo de declaração, anexando uma cópia de sua identidade e escrevendo a mão todos os seus dados pessoais. Eis o que ele escreveu:

“Que quando preso, certamente em face das minhas idas ao Brasil, me foram formuladas perguntas se eu conhecia um cidadão no Brasil chamado José, que fosse ligado ao tráfico de drogas; que, nessa ocasião, eu afirmei que conhecia uma pessoa de nome JOSÉ GERMANO, o qual, entretanto, não passava de um conhecido, que nada tinha a ver com drogas; em verdade, além de JOSÉ GERMANO, eu conhecia um outro JOSÉ, que era o JOSÉ MANUEL, este sim, pessoa comprometida com o tráfico de drogas; que, entretanto, por receio de alguma represália, nunca mencionei o nome de JOSÉ MANUEL e, em face disso, as autoridades, tanto policiais como judiciárias, entenderam que o JOSÉ que tinha vínculo com drogas era JOSÉ GERMANO, o que não é verdade, eis que este não passou de um amigo, com o qual nunca tive qualquer negócio que envolvesse o tráfico de entorpecentes; que, se JOSÉ GERMANO também tinha sido preso e cumprido pena na capital francesa, sendo que a acusação que recaiu sobre o mesmo era o tráfico de entorpecentes; que, se JOSÉ GERMANO esteve preso acusado dessa prática em razão das minhas declarações, houve profundo equívoco e injustiça, pois, repito que com o mesmo nunca tive qualquer negócio e, muito menos, tráfico de entorpecentes; que, para que essa injustiça seja reparada, forneço a presente declaração, prontificando-me a comparecer perante qualquer autoridade judiciária para ratificar os termos da presente”.

No documento, Roland Plegat também fornece detalhes de sua relação com o José português, que já o conhecia de encontros em Portugal, Espanha, França e Marrocos e que, depois das visitas ao Brasil, ficou interessado em abrir uma filial do Les Muses no Rio de Janeiro. Como José Manuel também atuava no ramo de restaurantes, se aproximaram ainda mais e Plegat passou a ser contato dele para a entrada de drogas na Europa.

Em 17 de novembro de 1999, Grego foi condenado pela Justiça brasileira a 16 anos de prisão, por tráfico internacional de drogas. Por duas vezes, tentou fugir da prisão.

José Germano Neto está aliviado, não há dúvidas. Mas ele sabe que foi inocentado porque não provaram que era bandido.

Assim, o volumoso, complicado e demoradésimo processo União x José Germano Neto acabou com um suspiro.

A mancha nunca vai apagar: muita gente ainda vai achar que ele é um narcotraficante esperto que conseguiu enganar a todos o tempo todo.

No carnaval de 2016, fui novamente visitar Germano, desta vez em sua Itacuruçá. O encontrei lixando sua lancha, ancorada na baía.

O homem tinha feito uma cirurgia bariátrica e estava 50 quilos mais magro. Ficou irreconhecível. Magrão, bem disposto, cabelo pintado, remoçado. Mas ele luta agora contra um câncer, que a cada dia o deixa mais pessimista.

Ele e Zalfa continuam casados. Ela me contou que já voltou a Paris mais uma vez, para preparar a ação contra a Justiça francesa — esta pareceu uma batalha morro acima.

“Contratamos um advogado de lá para nos assessorar. O sistema deles funciona. Precisamos levar daqui uma certidão do STJ mostrando os enganos do processo para o Zé ser indenizado”.

Zé para de lixar o barco e entra todo serelepe na conversa: “O que passou, passou. Agora eu quero dinheiro. Vou buscar até o último centavo de reparação” — dinheiro deixa as pessoas mais ligadas, parece até capaz de afastar a depressão em que eu o encontrei anos atrás.

Pensei em aconselhar os dois: esqueçam tudo, chega de tribunais, aproveitem a vida. Mas me calei porque repórter não é para dar conselhos.

Era um final de tarde, com temperatura amena.

Os dois então embarcaram na lancha para fazer a travessia da marina à casa, no outro lado da baía — armados com uma garrafa de champagne francesa e um balde de gelo.

Fiquei de pé no cais vendo os dois partirem nas águas mansas. Zalfa acenou para mim.

Viver bem é a melhor revanche.

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Renan Antunes de Oliveira é, com orgulho, jornalista freelancer. Trabalhou para os principais veículos brasileiros, como as revistas Veja e IstoÉ, e foi correspondente em Nova York do Estado de S.Paulo. Em 2004, venceu o Prêmio Esso de Reportagem com o trabalho “A Tragédia de Felipe Klein”, publicada no Jornal Já, de Porto Alegre.

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