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BRIO STORIES
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42 min readJul 6, 2017

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A Amazônia está sumindo às margens da BR-163, no sul do Pará. Ibama e polícia acreditam que o principal responsável pelo desmatamento é o dono de um supermercado e suspeito de grilagem, trabalho escravo, lavagem de dinheiro, suborno e até assassinato. Entenda por que Ezequiel Castanha foi caçado como inimigo número 1 do Ibama na região — e como se tornou um herói local.

Reportagem e edição de Alexandre de Santi, Carla Ruas e Leandro Demori. Uma produção Bang.

Francisco trabalhava havia mais de um mês sem folga. Naquela manhã de 13 de agosto de 2012, os primeiros raios de sol penetraram o mato da Amazônia e iluminaram a rede onde ele dormia, pendurada entre as árvores e abrigada por uma lona plástica. Nas últimas semanas, sua casa era a selva. Francisco tomava água em um córrego preto e transformava o canto mais reservado da floresta em banheiro. Uma cozinheira preparava as refeições em um fogão improvisado com quatro pedras e uma lata, aceso com gasolina. Depois de levantar da rede, Francisco e os colegas sentaram no chão e tomaram um café da manhã.

Mas não havia tempo a perder. Logo o grupo foi pressionado pelo “gato”, o gerente, para começar mais um dia de trabalho. Francisco pegou uma marmita, a sua motosserra, alguns galões de gasolina e sumiu no mato fechado.

Enquanto cortava pacientemente os troncos de jatobás, cedros e maçarandubas, ele foi surpreendido por quase 30 sujeitos uniformizados. Eram policiais militares, agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O grupo tinha recebido uma denúncia anônima de escravidão no local. A queixa era comum no Pará. Mas a área em questão tinha chamado a atenção da força-tarefa. Situado nas margens do rio Pimenta, o terreno estava inserido em uma unidade de conservação chamada Floresta Nacional de Altamira. A reserva abrange 680 mil hectares de mata fechada e é considerada uma das partes mais importantes da Amazônia — área de proteção de animais ameaçados como a onça-pintada, a ariranha e o peixe-boi-da-amazônia.

Os agentes encontraram 32 trabalhadores que já haviam desmatado 98 hectares de floresta — cada hectare é equivalente a um campo de futebol. Vários operários apresentavam sinais de exaustão. Pelo menos dois tinham febre alta e dores no corpo — sintomas de malária –, e muitos tinham cortes profundos nas mãos e nas pernas. Francisco tinha a perna direita perfurada por um espinho de tucum, uma espécie de palmeira nativa da região. O machucado já estava inflamado e tinha o tamanho de uma bola de golfe.

Francisco contou aos agentes do ministério que saíra da pequena Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso, em busca de trabalho. Aquele serviço específico de derrubada de árvores tinha começado há quase dois meses. Quando estava passando por Novo Progresso, uma cidade do Pará 600 km ao norte de Sinop, às margens da BR-163, recebeu uma proposta de um homem chamado Giovany Pascoal. Ele prometeu R$ 350 por cada “alqueire” de mata derrubada (herança do Brasil colonial, o “alqueire” é uma medida que equivale a 2,42 hectares).

Assim como Francisco, outros trabalhadores relataram uma história semelhante, e Pascoal foi chamado para prestar esclarecimentos na sede do MTE em Itaituba. Aos prantos, o homem disse que era pobre e que havia sido contratado por outra pessoa para organizar o trabalho. O fiscal do MTE pressionou para saber a identidade do mandante:

Fiscal: O senhor tem que nos dar um indicativo de quem a gente deve cobrar.

Giovany Pascoal: Pois é, mas eu não vou falar nada, não.

Fiscal: Se o senhor disser ‘cobrem de fulano’, eu não vou nunca na vida dizer que você disse para mim cobrar de fulano. Eu vou te dar um nome, que eu já tenho: Castanha. Posso cobrar dele?

Pascoal: Eu não vou falar nada para o senhor. Não posso falar.

A devastação feita com trabalho escravo era grande, e os especialistas do Ibama quebravam a cabeça para entender por que o desmatamento não foi flagrado em imagens de satélite. Desde 2004, o órgão contava com um sistema batizado Detecção de Desflorestamento em Tempo Real (Deter), operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A tecnologia fornece fotos aéreas quase diárias da mata e disponibiliza tudo na internet. Até então, os fiscais tinham de esperar até nove meses para enxergar o que estava ocorrendo na floresta. O Deter foi uma revolução no rastreio do desmatamento da Amazônia.

As fotos vinham revelando um avanço acelerado do desmatamento, resultado de uma técnica já popular na floresta: o “correntão”. O método consiste em engatar as pontas de uma corrente a dois tratores de esteira. E não é tarefa fácil, já que o cordão de metal, muitas vezes de uso naval para suportar a pressão, tem anéis do tamanho de um pé humano adulto. Após fixar a corrente, as máquinas rumam para lados opostos até o limite dos anéis e começam o trabalho: aceleram lentamente no mesmo sentido para derrubar toda mata que estiver na frente. Árvores de até 30 metros, empurradas com a força do aço, quebram e caem como peças de dominó. Em poucas horas, uma área imensa é arrasada, deixando no chão uma pilha de folhas e galhos, troncos retorcidos e ninhos aniquilados. Os tratoristas ainda retiram a corrente e circulam pela área com suas máquinas, passando por cima de árvores menores que resistem ao método. Por fim, ateiam fogo em tudo.

Correntão em ação em floresta do Mato Grosso. Imagem: GC Notícias.

Na reserva de Altamira, as fotografias do Deter ainda mostravam copas imensas de árvores cobrindo a terra. Mas, quando os agentes chegaram ao local, entenderam por quê. Perceberam uma mudança nas técnicas dos desmatadores: em vez de derrubar lotes inteiros com o correntão, eles espalhavam capangas equipados com motosserras pela mata — homens como Francisco. Era um método lento que exigia muita mão de obra para cortar as árvores, uma a uma. Mas havia uma grande vantagem para os criminosos: comprava tempo para a quadrilha. A técnica não chamava a atenção do Deter, e os desmatadores podiam preparar o terreno aos poucos.

As árvores com grandes copas ficavam para o final, dando a impressão de que a floresta estava intacta nas imagens de satélite. A semana toda, os chefes da quadrilha acessavam as imagens do Deter na internet e conferiam se o estrago chamava a atenção. Quando o terreno estava limpo na sombra das espécies mais altas, bastava serrar os últimos troncos e atear fogo para transformar o terreno em pasto rapidamente, sem dar chance para a fiscalização ambiental interromper a última etapa do processo.

“Suspeitamos que se tratava de crime organizado. Acompanhar imagens de satélite não é coisa de posseiro que está desmatando para se estabelecer na área. É indício de que havia uma máfia de grileiros”, afirma o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Luciano de Meneses Evaristo.

E tudo indicava que um empresário chamado Ezequiel Castanha era o “capo, o poderoso chefão do grupo”.

O desembarque

Ezequiel Antonio Castanha chegou na Amazônia nos anos 1980, ainda adolescente. Era uma aventura para os fortes. Os homens que vinham do Sul e Sudeste eram medidos pela capacidade que tinham de aguentar o calor, os mosquitos, as doenças tropicais, os animais peçonhentos, os felinos selvagens, a solidão, a distância, a violência e, sobretudo, pela vocação para derrubar mato.

“Aqui o homem valia o quanto era capaz de desmatar”, conta um frentista de um posto de combustíveis de Alta Floresta, uma das últimas cidades do que se costuma chamar de fronteira agrícola do Brasil, onde fica o aeroporto mais próximo de Novo Progresso.

Antes da madeira e do gado, o principal motor econômico da região era o garimpo de ouro. Fundada nos anos 1970, Alta Floresta hoje tem 50 mil habitantes, mas teve o dobro durante os anos da febre do ouro. “Chegava gente todo dia. Era tanta área pra ser aberta que algumas fogueiras pareciam eternas. Tinha dias que, de tanta fumaça, não dava pra ver o sol”, explica outro frentista.

A ecologia era assunto secundário. O fundador de Alta Floresta, Ariosto da Riva, era considerado pela imprensa “o último bandeirante”, título ostentado com orgulho por ter aberto caminho no meio do mato nos confins de um Brasil que poucos ousavam pisar. Riva havia sido discípulo de Geremia Lunardelli, um italiano que desbravou terras pelo interior do Paraná e de São Paulo derrubando árvores e deixando um rastro de plantações de café. Com incentivo do governo federal, tanto Geremia quanto Ariosto eram fundamentais para os planos de integração nacional que gravitavam ao redor dos palácios do poder desde o começo do século 20. Governos civis e militares pregavam o progresso e a manutenção da floresta sob domínio brasileiro — havia o medo de que invasores externos tomassem de assalto a Amazônia, considerada, falsamente, desabitada, já que índios e populações ribeirinhas viviam lá desde tempos imemoriais. O italiano Lunardelli chegou a receber a mais alta honraria brasileira dada a estrangeiros, a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, por seu trabalho como desbravador.

Nascido na fronteira de São Paulo com o Mato Grosso do Sul, em Tupi Paulista, Castanha migrou com os pais para as profundezas da Amazônia depois que a família vendeu uma pequena chácara para comprar um pedaço de terra muito maior no Mato Grosso, pelo mesmo preço. Depois de extinguir a floresta da nova propriedade, o pai, Onério Castanha, fez como os pioneiros e plantou café. Como a qualidade do grão era baixa, ele decidiu derrubar os pés. No lugar, botou o mais importante colonizador do interior do Brasil depois do homem: o gado. Citado já em Os Sertões, de Euclides da Cunha, no final do século 19, como alma ignorada que “não produzia impostos ou rendas que interessassem o egoísmo da coroa”, o animal dominaria as paisagens desmatadas em número muito maior do que o de seres humanos.

A produção pecuária era ainda insuficiente, e Ezequiel decidiu se aventurar mata adentro. Em 1988, aos 25 anos e solteiro, abriu um minimercado dentro de um garimpo próximo a Alta Floresta. Com o dinheiro do negócio, comprou sua primeira fazenda, localizada na cidade de Monte Verde, onde os pais moravam. Já naquela época, assim como hoje, a terra era o grande negócio da região: dela se extraía madeira nobre, metais preciosos e carne. As terras do norte do Mato Grosso estavam inflacionando, e Ezequiel buscou novas áreas para explorar. Logo ouviu falar que o Pará, seguindo os rumos da BR-163, seria a nova fronteira agrícola do Brasil. Ele decidiu então vender o supermercado de Monte Verde e rumar para o Norte.

Com mais de 3 mil km cruzando o coração do Brasil, a rodovia inaugurada em 1976 surge no mapa ao norte da cidade gaúcha de Tenente Portela, cruza o rio Uruguai, atravessa Santa Catarina pelo corredor oeste e costeia a fronteira com a Argentina. Ela passa por Campo Grande e Rondonópolis, mas é a partir de Cuiabá que a estrada se torna um personagem peculiar na colonização do país. Cruzando a Amazônia a partir do Sul, a BR-163 serve de principal ligação entre a soja e o milho do Centro-Oeste e os portos do Norte, onde os grãos são embarcados para mercados da Ásia e Europa. A estrada chega às margens do rio Tapajós, cujas águas abrigam o porto de Miritituba, responsável por escoar parte da produção agrícola e encurtar a viagem dos caminhoneiros, que não precisam dirigir até o litoral do Atlântico para desembarcar carga nos portos de Santos e Paranaguá. Uma economia medida em dias: em vez de uma semana de transporte desde o Mato Grosso, o frete pelos rios do Pará leva até quatro dias. Entre Cuiabá e o ancoradouro do Tapajós, são 1.400 km de estrada.

A BR-163 nasceu sob condições extremas: os batalhões do Exército que abriram caminho para a rodovia foram açoitados por doenças tropicais, isolamento e contatos conflituosos com indígenas. Oficialmente, o Exército registrou a morte de 32 homens durante as obras, sobretudo por malária. Durante quatro décadas, o governo federal prometeu completar o asfalto da estrada. Ela era uma das estrelas das reportagens de telejornais que denunciavam as péssimas condições das rodovias brasileiras — uma coleção de caminhões dançando no barro. Em 2004, um grupo de trabalho interministerial traçou planos para a melhorar a BR-163. Movimentos sociais defenderam os investimentos, mas chamaram a atenção para seus efeitos colaterais. A então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, demonstrou preocupação com a expectativa de pavimentação da BR-163, que atrairia especuladores e problemas socioambientais conforme ganhasse asfalto — como já tinha ocorrido em outras rodovias. “Infelizmente, ainda não temos um modelo de grandes obras na Amazônia que não traga junto grilagem, desmatamento e violência para a população local”, lamenta Rômulo Batista, membro da campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil.

Em 2012, 79% do asfaltamento previsto para a BR-163 havia sido executado. O pavimento progressivo facilitou o envio da produção do norte do Centro-Oeste, mas também fomentou o comércio dos animais criados em terras desmatadas ou tomadas ilegalmente — chamados na região de “bois piratas”. O rebanho bovino de Novo Progresso está entre os 10 maiores do país, com mais de 600 mil cabeças de gado para apenas 25 mil habitantes. Um fator estimulou a pecuária (e a pirataria): o descontrole de muitos frigoríficos em relação à procedência da carne. Por décadas, os bois que chegavam para o abate engordavam em pastos de terrenos surrupiados da União, desmatados ilegalmente com o suporte de escravos modernos. Em 2009, depois da acusação de compra de bois piratas, alguns dos maiores abatedouros do país, entre eles o JBS, firmaram acordo para estancar o abate de animais criados em terras irregulares. Mas o controle é difícil mesmo após o compromisso assumido.

Até hoje, há cerca de 200 km de terra entre Sinop e Santarém. Onde falta asfalto, sobra empreendedorismo. Para superar o barro nos dias de chuva forte, os motoristas pagam um pedágio informal para tratoristas que ficam de plantão nas margens da estrada aguardando a próxima carreta atolada. Os caminhoneiros pagam o serviço, recebem o puxão salvador do trator e seguem viagem.

Até os anos 2000, Novo Progresso era um lugarejo onde se contava uma capela, um campo de futebol, um restaurante e um armazém. Sua história está intimamente ligada à pavimentação da BR-163.

Hoje, os carros que chegam pelo Sul notam uma placa às margens da estrada: “Bem-Vindos a Novo Progresso.” Advertidos sobre o tempo de viagem, nenhum deles se deixa enganar pela proximidade, ou pelo progressismo, que o aviso sugere. A área urbana do município de 25 mil habitantes fica a mais de 300 km da sinalização de boas-vindas. Os motoristas cruzam por pastagens de bois magros repletas de enormes cupinzeiros, terras nuas castigadas pelas queimadas, marcadas por troncos de árvores pretos que resistiram ao fogo como se fossem cadáveres em pé, hectares abandonados do que antes era floresta virgem e sinais esparsos de vida humana em meio à imensidão amazônica: igrejas neopentecostais, bares, prostíbulos, postos de gasolina e borracharias.

Floresta acima, Ezequiel chegou a Novo Progresso em 2003, onde comprou terras e abriu o Supermercado Castanha, um empreendimento erguido numa esquina de chão batido do centro da cidade, às margens da BR-163. O empresário fincou raízes. Casou, teve um filho e uma filha e se tornou um dos homens mais influentes da região. Castanha é um homem alto, de pescoço largo, nariz generoso, cuja pele branca frequentemente se torna avermelhada nas maçãs do rosto com o calor opressor da Amazônia — um legítimo gringo. Em Novo Progresso, pode ser visto sempre com o mesmo uniforme: calça jeans, sapato, camisa azul enfiada nas calças e um topete no alto da testa. O empresário pouco circula na cidade, mas bate ponto no supermercado, onde recebe de clientes a políticos com conversa franca e descontraída — por vezes em meio às gôndolas. Castanha não tem medo de expor o que pensa. “Uns admiram, e outros temem ele”, diz outro personagem da cidade que preferiu não ser identificado — um pedido comum quando o assunto é Ezequiel Castanha.

Em 2004, impulsionado pelo horizonte de volumes de dinheiro que ele jamais veria no ramo do varejo, Castanha cortou as primeiras árvores. “Ele desmatou o resto de mata e colocou gado em cima”, diz seu advogado e amigo de infância, Valter Stavarengo. Derrubar a floresta não é uma atividade necessariamente ilegal: os proprietários podem retirar até 20% da mata na Amazônia Legal de acordo com o Novo Código Florestal, em vigor desde 2012, desde que autorizados pelo poder público.

Dois anos depois, especialistas do Ibama quase não acreditavam na imagem de satélite que surgiu na tela de um dos computadores do Centro de Monitoramento Ambiental do Ibama (Cemam), localizado em Brasília. Um naco de floresta havia sumido do mapa em poucos dias, possivelmente na base do correntão. Era meados de 2006, uma equipe do Ibama se deslocou ao sul do Pará para tentar flagrar os desmatadores. Os agentes se depararam com um quadro desolador: o terreno havia se transformado em uma clareira de mil hectares localizada entre a BR-163 e o Rio Curuá. A densa floresta havia dado lugar a seis fazendas: Macuco, Santa Helena, Santa Rosa, Santa Maria, Nossa Senhora Aparecida e Santa Izabel.

As autoridades tomaram depoimentos dos funcionários das propriedades e analisaram documentos, tentando identificar os responsáveis pela devastação, mas se depararam com informações desencontradas. Havia diversos nomes vinculados às terras. Os lotes já haviam sido comprados e vendidos múltiplas vezes e alguns estavam arrendados para terceiros, que alegavam não saber quem eram os verdadeiros donos. Os documentos pouco ajudaram. Não é uma situação incomum na região: o Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso aponta que apenas 300 áreas de um universo de mais de 2 mil propriedades estão em situação regular — uma estimativa considerada conservadora. Apesar do labirinto, uma análise mais cuidadosa da papelada revelou uma pista importante, um CPF que aparecia em quase todas as movimentações financeiras da área. O número pertencia a Ezequiel Castanha.

Em 2006, o empresário recebeu as primeiras autuações do Ibama da sua vida: cinco por explorar ou destruir floresta sem autorização e uma sexta por provocar incêndio na mata. Sua dívida com o órgão começou a acumular. Naquela ocasião, Castanha recebeu R$ 3 milhões em multas pelos crimes ambientais e teve as fazendas embargadas. Outros indivíduos também foram responsabilizados pelo desmatamento da área, e a maioria, constatou o Ibama, tinha algum vínculo com o empresário. Entre os autuados estão seu pai, Onério Castanha; Giovany Pascoal, que era seu ex-funcionário; e Nelson Oening, um agricultor que tinha como procurador o próprio Ezequiel Castanha.

Apesar das multas, o grupo seguiu fazendo negócios considerados suspeitos pelo Ibama. Um deles ficou especialmente engasgado na garganta dos fiscais. Em meados de 2007, Giovany Pascoal vendeu, por um valor ignorado, as seis fazendas dos mil hectares desmatados para Joviano José de Almeida, um médico bem conhecido na região — eleito vice-prefeito de Novo Progresso em 2012. No contrato de venda, a área ganhou um único nome, Fazenda Jatobá, e somou 5.233 mil hectares, dos quais 1.390 mil (ou 26%, mais do que o limite legal) já haviam sido desmatados.

Logo depois de fechar o acordo, Dr. Joviano encheu a fazenda com mil cabeças de gado. Mas o negócio tinha um vício de origem: as terras, na verdade, pertenciam à União e estavam embargadas pelo Ibama.

A Fazenda Jatobá não foi um caso isolado de acordo com o Ibama. Utilizando o método do correntão, Castanha teria coordenado um grupo especializado em encontrar, limpar e vender terras em áreas de mata virgem. A atividade teria movimentado milhões de reais e feito dele um dos homens mais influentes da região. “Aqui ele manda mais que o prefeito”, comenta um morador da cidade. “Se concorrer, se elege”.

Castanha não precisa colocar seu nome na urna: vereadores e prefeitos de Novo Progresso são críticos de primeira hora das ações do Ibama, sempre escorados por empresários e pela população. A economia local gira em torno de homens como ele. “O Ezequiel fez um bem pra região, é um exemplo, trouxe bem-estar para todos. O governo atrasa a regularização de terras imaginando que as milhões de pessoas que vivem na Amazônia desaparecerão por toque de mágica”, diz Agamenon Menezes, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso. “Nós viemos aqui porque esse mesmo governo, que agora nos abandona, nos incentivou. Antes éramos desbravadores, agora somos criminosos. O povo do Sul quer que a gente viva de catar castanha-do-pará. Isso não coloca o filho de ninguém na faculdade”, desabafa.

A oposição contra o Ibama quase virou um levante popular em 4 de abril de 2011. Naquele dia, os agentes do órgão se preparavam para uma operação no escritório do instituto em Novo Progresso quando foram surpreendidos por uma centena de populares. Furiosos, eles cercaram o órgão e amarraram cabos de aço nas hélices de um helicóptero que seria usado na Operação Disparada, planejada para apreender bois piratas em áreas como a Fazenda Jatobá. Apesar das inúmeras autuações, grileiros e desmatadores continuavam a agir.

Diante da reação popular contra a Operação Disparada, os agentes do Ibama foram obrigados a cancelar os planos do dia. “A economia dessas cidades é baseada em desmatamento ilegal, madeira de desmatamento ilegal, garimpo ilegal e serrarias ilegais. Qualquer operação que a gente faça gera o medo do desemprego e provoca caos, porque tudo gira em torno do crime ambiental”, explicou o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Luciano de Meneses Evaristo.

Para acalmar os ânimos, o coordenador da Operação Disparada, Bruno Barbosa, convocou uma reunião na Câmara de Novo Progresso três dias após a revolta. A conversa, que contou com a presença da prefeita Madalena Hoffmann e vereadores, foi tensa. Fiscais do Ibama com armas de fogo circulavam entre os 30 participantes. Um dos ruralistas logo ficou em pé e, destemido, tomou o centro da roda. Era Ezequiel Castanha. O empresário admitiu que vendeu a Fazenda Jatobá para o médico Joviano (usando o comparsa Giovany Pascoal como laranja) mesmo sabendo que a terra estava em situação irregular. Mas não sentia remorso. Pelo contrário, alegou que o Ibama trabalhava contra os interesses econômicos da região. “Se nós não desmatar, a terra nossa vira reserva. Vocês acuou nós, Bruno. Vocês que fizeram nós desmatar”, disse Castanha.

O advogado do empresário disse que, no contexto da conversa, ele se referia ao desmatamento dentro dos 20% permitidos por lei. Ezequiel ecoava um sentimento persistente na Amazônia: se o ocupante do imóvel não conseguir uma autorização para derrubar os 20% legais, o governo pode transformar a terra em área de conservação. “Aí o ocupante fica praticamente sem opção de exploração econômica do imóvel”, diz o advogado Valter Stavarengo. “Não é possível viver de planos de manejo florestal e ou coleta de frutos e sementes naturais da floresta. Eles precisam abrir o que é permitido por lei se não indiretamente perdem a terra”, completa.

A postura desafiadora do empresário na audiência tornou Castanha uma prioridade para o Ibama dali em diante. Meses depois, em agosto de 2012, o caso do escravo Francisco e seus colegas contratados por Giovany Pascoal ajudaria a consolidar uma visão dentro do órgão: Castanha seria o capo de uma máfia especializada em tomar, desmatar e vender terras ilegais.

O tiro no Mecânico

Em 13 de maio de 2013, passados nove meses da batida do trabalho escravo, uma equipe do Ibama estava acompanhada de agentes da Força Nacional para flagrar veículos suspeitos na BR-116, como carretas abarrotadas de troncos. O movimento era fraco até que uma moto e uma caminhonete Toyota branca surgiram no horizonte. Os agentes fizeram sinal para que os veículos parassem e perceberam que o motoqueiro jogou um objeto na mata. Era um revólver. A arma estava carregada com seis cápsulas: cinco intactas e uma deflagrada. Os agentes vasculharam a caminhonete e encontraram uma pasta com mapas de uma fazenda chamada Serra Azul, uma descrição do terreno e um contrato particular de compra e venda de terras entre Anivaldo Batista e Ezequiel Castanha.

Pouco antes, o motoqueiro e o motorista da Toyota haviam feito uma inesperada visita a Batista, também conhecido como Mecânico. Às 13h, a dupla chegou à Fazenda Serra Azul, localizada no limite entre Itaituba e Novo Progresso, e foi recebida por Mecânico. O homem logo reconheceu um deles, o Japa. “Você de novo aqui?”, Mecânico perguntou, enquanto o visitante descia do veículo. Japa não se deu ao trabalho de responder: sacou um revólver e atirou em Mecânico, que ainda conseguiu correr para os fundos da sua residência antes de cair morto aos pés de uma bananeira. A dupla entrou na casa, revirou gavetas em busca de documentos da fazenda e fugiu, levando a moto e uma Toyota Hilux branca da vítima.

O contrato encontrado na caminhonete descrevia uma transação de 2009, na qual Castanha comprava um lote de 480 hectares da Fazenda Serra Azul por R$ 120 mil. Parte do pagamento seria em dinheiro, mas os papéis também previam permutas para quitar a dívida. Castanha entregaria um touro, 50 novilhas, uma caminhonete Toyota Hilux branca e o serviço de desmatamento de 100 hectares, no valor de R$ 30 mil. A polícia chamou Castanha para prestar depoimento.

Os investigadores queriam saber se o empresário havia encomendado o crime depois de alguma desavença sobre o cumprimento do acordo. Afinal de contas, o contrato era uma prova irrefutável de que as duas partes tinham feito negócio juntos, e os assassinos levaram embora parte do pagamento — a Hilux branca.

Castanha confirmou que comprou a terra, mas logo revendeu para uma terceira pessoa, cujo paradeiro desconhecia. Quando a polícia localizou o novo comprador, descobriu que ele era funcionário de Castanha e não possuía terras — era um laranja. As suspeitas do envolvimento do empresário no crime cresceram quando ele contratou um peão para manter a Fazenda Serra Azul em boas condições após a morte de Mecânico.

Ao final da investigação, a polícia concluiu que não havia indícios suficientes para denunciar Castanha pelo assassinato e decretou que Mecânico foi vítima de um latrocínio.

Em junho, 48 dias após a morte na Fazenda Serra Azul, o empresário compareceu a um ato público. Centenas de pecuaristas, garimpeiros, madeireiros, comerciantes e trabalhadores lotaram um abafado pavilhão para criticar os órgãos ambientais, que apertavam o cerco contra os desmatadores. Naquela manhã de sábado, 29 de junho de 2013, o prefeito de Novo Progresso, Osvaldo Romanholi, elogiou Ezequiel Castanha: “Se não fosse pelas investidas de empresários como ele para encorajar o desmatamento em meados do ano 2000, nossa cidade não seria o que é hoje. Ezequiel foi um baluarte, enfrentou as imposições do governo e desmatou, fazendo a pecuária crescer, incentivou outros a investirem em nosso município”. Dando coro às palavras do prefeito, um vereador se levantou e declarou ser favorável à diminuição da área de preservação da Floresta Nacional do Jamanxim, criada em 2006 para proteger o rio que banha a cidade, e principal afluente do Tapajós.

Ezequiel Castanha tomou a palavra. Do palco, disse que não derrubava uma árvore havia mais de quatro anos e acusou o Ibama de inventar números sobre o desmatamento para manter fiscais na região, recebendo altas diárias. Largou o microfone sob aplausos, dando a deixa para que outros empresários se revezassem nas críticas aos órgãos ambientais.

A cúpula do Ibama pensava diferente. E estava farta. Castanha era suspeito de desmatamento, de grilagem, de venda ilegal de terras, de coordenar uma rede de trabalho escravo, de participar do assassinato de Mecânico, tinha uma pilha de multas ambientais (não pagas) e fazia aparições ruidosas em atos públicos contra os órgãos de proteção da Amazônia. Para piorar, o instituto estava perdendo o controle da floresta: em 2013 o desmatamento subiu 28%, a primeira alta depois de pelo menos cinco anos consecutivos de queda.

Como as autuações não estavam detendo o empresário, os agentes concluíram que a única forma de colocá-lo atrás das grades era provar que ele cometia crimes como sonegação de impostos e lavagem de dinheiro, que têm penas mais severas. Por isso, envolveram Polícia Federal, Ministério Público Federal e Receita Federal no caso, e uma investigação conjunta contra Castanha foi aberta em outubro de 2013. Os órgãos conseguiram autorização judicial no mês seguinte para grampear telefones e acessar dados fiscais e financeiros do empresário e de outros suspeitos.

A caçada

Em 6 de janeiro de 2014, Wilson Gomes aproveitou a hora do almoço para dar um telefonema. O empresário de meia idade era um homem muito ocupado. Possuía duas empresas em Arapongas, cidade onde morava no norte do Paraná. E, nas horas vagas, ainda atuava como corretor de imóveis rurais. Gomes tinha ouvido falar que o dono de uma construtora local tinha interesse em comprar um lote de terras no Pará. E resolveu contactar o potencial cliente.

Wilson Gomes: Oi, Fernando? Aqui é o Wilson.

Cliente: Fala Wilson, tudo bem?

Wilson Gomes: Tudo bem. Sou pai do (nome de alguém).

Cliente: Beleza, tranquilo.

Wilson Gomes: Você falou com ele sobre valor de terra no Pará?

Cliente: A gente não tem muito dinheiro não, mas fiquei sabendo que lá a terra é bem mais barata, e tão abrindo soja. A gente tá com interesse. Eu queria fazer uns investimentos que dessem mais dinheiro.

O cliente afirmou que poderia arrecadar R$ 1 milhão para investir em uma propriedade rural. Gomes ouviu com atenção. Mas alertou que uma terra pronta para plantar grãos no Pará custaria dez vezes mais. E propôs outro negócio. Tem uma situação que é mais fácil”, disse. Ele tinha um amigo que vendia áreas florestais e coordenava o desmatamento do lote após a compra. Por exemplo, R$ 1 milhão. Ele vai preparar 200 alqueires e vai te dar 100 (alqueires) de pasto”, explicou Gomes.

Seria necessário um pouco de paciência já que o processo de desmatamento leva até quatro anos. “Como a floresta é muito bruta, os troncos são muito grossos. Então, o custo de fazer a destoca imediata é muito grande”, disse o corretor. Para acelerar, só riscando o fósforo.

Cliente: E essa madeira que você tira tem comprador?

Wilson Gomes: Não. Se você for atrás de licença para tirar a madeira, é muito demorado, é burocrático, muito moroso. (…) O que o pessoal faz? Ele vai derrubar, ele vai tocar fogo e vai jogar semente de capim. Isso vai até agosto, setembro. Aí vem a chuvarada: o capinzão vem que é uma beleza. Quando chega março, abril, maio, tocam fogo de novo. Vai queimar a galharada e vai ficar só os troncos e um pedaço de toco da raiz. No segundo ano, você já pode já pode colocar gado em cima. Esse é o jeito mais barato de conseguir uma boa área. (…) No seu lugar, iria por esse caminho, que é o que eu fiz. Paguei R$ 1.800 pelo alqueire e hoje tá valendo R$ 8.000.

Cliente: Já deu uma valorização.

Wilson Gomes: Praticamente dois anos e meio, três anos.

(…)

Cliente: E ele tem muita área, esse cara?

Wilson Gomes: Esse cara tem muita área.

Agentes da Superintendência da Polícia Federal em Belém do Pará (localizada, curiosamente, no bairro Castanheira) escutavam em tempo real o diálogo de 29 minutos. Eles haviam grampeado o telefone de todos os contatos de Ezequiel Castanha — e Gomes era um deles. A partir das explicações detalhadas do corretor de imóveis, os policiais começaram, aos poucos, a entender como funcionava o esquema de venda de terras no Pará. Um negócio muito mais complexo do que haviam imaginado.

Gomes fazia parte de um grupo de corretores de imóveis que atuava no Paraná, São Paulo e no próprio Pará, vendendo lotes da floresta. O argumento de venda era contundente: “a Amazônia é a última fronteira agrícola do Brasil”. E alertavam que os clientes precisavam agir rápido. A terra estava barata, mas, depois que a BR-163 fosse asfaltada por completo, a área teria grande valorização.

A Polícia Federal acredita que o negócio funcionava em duas pontas. Enquanto os corretores faziam a propaganda, Castanha e seus colaboradores identificavam nacos de floresta propícios para a agropecuária no Pará. Eles procuravam lotes planos que tinham acesso à BR-163, o que facilitaria o escoamento da produção, como soja, milho e gado. O grupo também dava preferência para terras que não estavam dentro de reservas, para evitar complicações com o Ibama e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Escolhido o lote, contratavam uma empresa de engenharia da região de Novo Progresso para medir a área por georreferenciamento. Castanha e companhia recebiam mapas profissionais e detalhados das futuras fazendas.

Mas havia um obstáculo: muitas das áreas escolhidas pertencem à União. Para burlar esse transtorno burocrático, os criminosos faziam contratos de compra e venda sucessivos entre laranjas para ocultar o verdadeiro dono das terras (o governo brasileiro). Essa pilha de papéis complica a vida de quem desconfia da procedência das terras. Para descobrir se determinada fazenda foi roubada da União (isto é, grilada), a pessoa precisa conferir contrato por contrato ligado ao pedaço de chão, até chegar ao documento original que assegura que a terra passou do governo para um cidadão de forma legal — papel que, em muitos casos, simplesmente não existe. Poucos compradores optam pelo mergulho nos cartórios do interior do Pará.

A investigação sequer é cogitada em muitos casos. Compradores têm o hábito de aceitar contratos “de gaveta”, ou seja, que não foram registrados em cartório. São papéis irregulares, mas que têm valor na cultura local — talvez porque muitos fazendeiros saibam que os documentos não resistiriam a uma devassa e preferem fechar os olhos. “No resto do Brasil, um título de posse prova quem é o dono da terra. Aqui, a quantidade de pessoas que possui título é muito pequena. De 80 a 90% das propriedades simplesmente não têm esse documento”, lamenta Daniel Azeredo Avelino, procurador do Ministério Público Federal. A quadrilha de Castanha, de acordo com os investigadores, se aproveitava dessa cultura para não registrar oficialmente as transações.

A informalidade fundiária da região Amazônica tem origem em meados do século 19, quando as terras ocupadas costumavam ser registradas nas paróquias, sem a necessidade de qualquer comprovação. A situação permaneceu igual mesmo depois de 1972, quando criou-se o Sistema Nacional de Cadastro Rural, projeto que visava acabar com a informalidade. Durante a Ditadura Militar, a situação se agravou de acordo com um estudo realizado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Nesta época, o governo brasileiro estimulou a colonização da Amazônia. Ruralistas foram incentivados a ocupar — ou “desenvolver”, como preferiam os militares — a região. Mas nunca receberam documentos legais que comprovassem a transferência de terra por parte do poder público. Muitas famílias vivem até hoje em lotes irregulares mesmo após décadas de ocupação.

Ao longo dos anos, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) até tentou retomar parte das terras federais invadidas. Mas não deu certo. Os fazendeiros alegavam que residiam na região há gerações, e que seus terrenos já não faziam mais parte da floresta — tinham sido transformados em propriedades rurais. A encrenca jurídica se arrastou aos dias de hoje. Não existe consenso sobre como o governo deveria indenizar os colonos em caso de expulsão. Há juízes que não reconhecem a posse dos terrenos ocupados, e se opõem a qualquer indenização. Outros defendem algum tipo de reparação financeira.

A ocupação de terras públicas na Amazônia é tão caótica que já rendeu até uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), concluída em 2001. A investigação revelou uma série de irregularidades no Amazonas, Pará, Acre e Rondônia. Casos absurdos de descontrole de registros foram descobertos e anulados, como a Fazenda Eldorado e Santa Maria, no norte do Amazonas, cuja área registrada era de 1,5 bilhão de hectares, território equivalente a todo o Estado. A CPI considerou o poder público displicente por não manter um controle sobre as suas propriedades. Dos 113 milhões de hectares públicos no Brasil, 55 milhões não são destinados a nada, seja reforma agrária, demarcação indígena ou Unidades de Conservação. “Se o Estado não destinou, quem chega primeiro se sente no direito de tomar posse e fazer o que quiser da área. A situação fundiária na Amazônia é ímpar no mundo”, diz Rômulo Batista, membro da campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil.

Como tentativa de colocar ordem no caos, o governo federal criou nos anos 2000 uma série de registros para regularizar as propriedades da Amazônia. Entre eles, estão o Terra Legal e o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Pequenos produtores foram obrigados a se identificar, descrever a sua propriedade e cumprir exigências de recomposição florestal. Em troca, ganharam autorização para praticar atividades agropecuárias e, em alguns casos, o sonhado título de posse. A intenção do governo era conciliar a produção agropecuária e a conservação ambiental. Mas surgiu um problema. Nem sempre os registros permitiam separar as ocupações consideradas legítimas (pequenos proprietários rurais e agricultores em busca de subsistência) de grileiros (quadrilhas que encaram a bagunça burocrática como uma oportunidade para ocupar, desmatar e vender terras da União).

Como os cadastros podem ser completados pelo próprio fazendeiro pela internet, o grupo de Castanha se aproveitava dos formulários online para “regularizar” áreas griladas. Os registros eram usados para dar um ar de legalidade aos negócios — ainda que não fossem títulos de posse legítimos. O Estado não confere se as terras declaradas pertencem à União ou se os nomes vinculados às terras são mesmo do proprietário (ou de laranjas). “O que teria que fazer, e isso ainda não está em curso, é uma verificação do registro posteriormente. Uma checagem, ainda que por amostragem”, diz o procurador federal Daniel Avelino. Se a regularização dependesse de alguma assinatura, a quadrilha contava com um comparsa em um cartório de Itaituba para esquentar os papéis.

Em resumo, a grilagem é facilitada pela sobreposição de documentos, falta de clareza na legislação fundiária, ausência de um cadastro único de imóveis e a corrupção de servidores de cartórios. Uma burocracia permeável à pilantragem tão antiga quanto à própria palavra “grilagem”. O termo emergiu de uma antiga prática de falsários que costumavam colocar dentro de caixas decisões judiciais ou despachos da União, ambos falsos, que garantiriam a regularidade da posse. Nelas, os criminosos abandonavam grilos, e o contato com as fezes do inseto amarelava o papel. O documento ficava com aparência antiga, e o aspecto envelhecido ajudava a dar credibilidade para o falso título.

Com os papéis na mão, era hora de concretizar a venda. Cada lote de terra vendido pelos grileiros custa entre R$ 2 milhões e R$ 30 milhões. O pagamento era facilitado. Os clientes entregavam carros, prédios e outros terrenos aos vendedores, um jeitinho que os membros da quadrilha chamavam de “gambira”. Quando escolhiam pagar em dinheiro, as transações geralmente eram direcionadas para as empresas dos líderes do grupo, como o Supermercado Castanha e o Hotel Miranda, cujo dono era Giovany Pascoal. Em algumas ocasiões, o pagamento era depositado nas contas bancárias de laranjas.

O próximo passo era desmatar a floresta. Era um serviço arriscado, mas raramente interrompido pela fiscalização — as proporções amazônicas da floresta dificultam o flagrante. E, ao que tudo indica, ocasionalmente os grileiros recebiam dicas sobre onde o órgão ambiental realizaria suas batidas e fugiam. Em pelo menos uma ocasião, o vazamento saiu de um indígena que auxiliava o Ibama nas ações floresta a dentro. Em diálogo gravado no dia 18 de agosto de 2014 entre Castanha e um peão, eles se questionaram por que houve uma batida em uma das terras invadidas (usada para garimpo), já que o indígena garantiu que o Ibama não iria atuar na região:

Castanha: Cara do céu, mas é um inferno mesmo esse povo, né? Não tinham feito acordo? Parece que eles não refez o acordo, o que acontece, Roque?

Peão: Olha, foi dado o dinheiro para o (nome do indígena) segunda-feira de tarde, e terça-feira cedo o Ibama fez a operação. Garantiu que não ia ter operação do Ibama lá dentro.

Castanha: Hmmm.

O Ibama disse que não houve investigação sobre o vazamento da informação porque o indígena não é funcionário do órgão.

Nos telefonemas grampeados, Ezequiel Castanha aparece gerenciando equipes de desmatadores e orientando corretores de imóveis. O empresário era também quem, geralmente, fornecia o financiamento inicial para a grilagem. “Cada incursão na mata custa aproximadamente R$ 50 mil em serviços e equipamentos, então é preciso ter acesso a esse tipo de dinheiro”, afirma Luciano de Meneses Evaristo, diretor de Proteção Ambiental do Ibama.

Tudo indica que o investimento valia a pena. Entre 2009 e 2013, Castanha movimentou um total de R$ 3,9 milhões nas suas contas bancárias pessoais, mas nem metade desse valor pode ser explicada por meio dos seus rendimentos e de bens declarados, de acordo com análise da Receita Federal. Mas essa seria só parte do lucro angariado ao longo dos anos. Agentes suspeitam que o empresário tenha lavado milhões de reais nos livros contábeis do Supermercado Castanha. Desde a inauguração, a loja apresentou uma série de inconsistências nas finanças, tanto que foi suspensa duas vezes pela Receita. E teve pelo menos seis donos diferentes, possivelmente laranjas de Castanha de acordo com os investigadores, já que alguns proprietários sequer tinham conta bancária. Hoje, o mercado está registrado no nome do pai de Castanha e tem a fama de ter os melhores preços da região — Ezequiel alega que é apenas o gerente da loja.

Giovany Pascoal era o segundo no comando da quadrilha. Ele era funcionário do supermercado, mas aos poucos foi se inserindo no negócio de grilagem. Ambicioso, já vendia terras desmatadas por conta própria e sonhava expandir os negócios para o Amapá — Pascoal deve aproximadamente R$ 70 milhões em multas para o Ibama. Mas, no fim das contas, acabava sempre recorrendo a Castanha porque nunca tinha dinheiro para bancar a operação sozinho. Ele não era “pobre”, como alegou no depoimento sobre a acusação de trabalho escravo de 2012. Pascoal simplesmente gastava demais. Em uma ligação telefônica grampeada pela polícia em janeiro de 2014, se gabou para um amigo após comprar um avião bimotor avaliado em R$ 1,1 milhão.

Giovany Pascoal: Até hoje, todo voo dele é 600 horas. Todo voo.

Amigo: Está ótimo. Então tem 1.100 horas disponível pra você voar.

Pascoal: É, aham. Novinho, pense num trem novo.

Amigo: E saiu por quanto?

Pascoal: Um e cem (R$ 1.100.000,00).

Amigo: Ah tá bão. Vixe, bom demais!

A quadrilha ainda contava com peões, vendedores e laranjas que recebiam até R$ 10 mil por serviço prestado. Entre eles, estava Edivaldo Dalla Riva, um peão de 33 anos conhecido como Paraguai — embora natural do Pará. Homem de confiança de Pascoal que fazia cartografia, ele ajudava no desmatamento e servia como laranja. A polícia ainda suspeita do envolvimento do advogado Leonardo Minotto, que representava quase todos os envolvidos nas ações que enfrentavam contra o Ibama. Há evidências de que o advogado ajudava a forjar contratos e cadastros rurais ligados às terras griladas.

Enquanto as forças públicas recolhiam provas, Castanha dava entrevista para a TV, em uma reportagem do Globo Rural sobre o crescimento do desmatamento na Amazônia, sobretudo na região de Novo Progresso. “Você se arrepende de ter desmatado?”, perguntou o repórter Tonico Ferreira no programa exibido em junho de 2014. “Eu me arrependo de ter feito uma coisa, às vezes, ilegal. De ter desmatado, eu não me arrependo por que isso é o ideal”, disse Ezequiel com cabelo grisalho lambido para trás, camisa azul aberta até a altura do bolso e golas esticadas ao estilo de John Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite. “Eu acho que… se nós não desmatasse, não existiria o Brasil, não existiria nada”, completou. A aparição não ajudou na sua defesa.

A investigação sobre o grupo ligado a Castanha foi concluída pela Polícia Federal em agosto de 2014, em um inquérito de 422 páginas. Diante do documento, procuradores do Ministério Público Federal no Pará decidiram denunciar Ezequiel Castanha e outras 22 pessoas por um total de 17 acusações, entre elas crimes ambientais, invasão de terras públicas, falsidade ideológica, furto de bens da União e lavagem de dinheiro. Pelo conjunto da obra, cada integrante da quadrilha pode ser condenado entre 13 e 55 anos de cadeia, e os procuradores pediram a prisão preventiva do grupo.

A premonição

Tocou o celular.

Preta estava em casa naquela sexta-feira, 22 de agosto de 2014. Um galo cantava do lado de fora da janela, e o calor típico do Pará já ardia a cidade ─ fazia 29° C às 8h17 da manhã. Ela olhou para o visor do aparelho: era Ezequiel Castanha. Na noite anterior, o empresário havia encontrado a amante.

Preta: Alô?

Ezequiel Castanha: Oi. Preta? Bom dia.

Preta: Oi. Bom dia.

Ezequiel Castanha: Como você tá? Passou bem ontem? Como foi?

A noite havia sido ótima — o medo de que fossem pegos juntos esquentava o namoro. Mas, ao retornar para casa, Preta tinha sido tomada por uma enorme sensação de insegurança. A mulher se deu conta que dificilmente Castanha abriria mão do seu casamento de duas décadas. A verdade é que eles não tinham futuro, e ela sentia que precisava dar um tempo na relação. Preta estava decidida a comunicar sua decisão, mas o empresário largou uma bomba:

Ezequiel Castanha: Hoje aqui de manhã cedo saiu umas histórias. Aquele (nome de alguém) ligou, (dizendo) que eu preciso ir pra Belém, que tem uns mandado de prisão pra mim por causa dessas história de derrubada, e tal. Não sei se é verdade, ou se é história. Disse que vai vim uma operação pra me prender.

Castanha estava nervoso. O homem que sussurrava palavras de amor para Preta agora disparava frases secas. Ele sabia que estava na mira do Ibama. Entre 2006 e 2014, o empresário foi autuado 16 vezes por crimes ambientais, acumulou R$ 40 milhões em multas e teve mais de 5 mil hectares de terra no seu nome confiscados pelo órgão ambiental. Para piorar, Castanha se recusava a acertar as contas, pagando neste período apenas 0,07% do valor devido. Ele frequentemente desrespeitava os embargos do órgão, usando a terra apreendida para criar gado e até revendia os lotes para terceiros, o que aumentava o valor das multas (hoje, superam os R$ 80 milhões).

Castanha estava dividido. A ameaça parecia real, mas, ao mesmo tempo, desmatadores raramente vão para a cadeia. No Brasil, menos de 1% das multas por crime ambiental sequer são pagas, de acordo com relatório do próprio Ibama divulgado em 2011. E se fosse uma cilada? Talvez alguém estivesse querendo assustá-lo para extorqui-lo — e não seria a primeira vez. Preta, do outro lado da linha, alertou que ele precisava levar a ameaça a sério: tinha que sair de Novo Progresso até a poeira baixar.

Preta: Faz dias que estou pressentindo isso. Não vou mentir para você.

Ezequiel Castanha: Porque multa é uma coisa, mas se eles me prender, daí meu deus, desmorona o mundo, cê entendeu?

Quatro dias depois, às 20 horas de 26 de agosto, 96 agentes da Polícia Federal se reuniram no Campo de Provas Brigadeiro Velloso, uma base aérea da Aeronáutica localizada no sul do Pará. No silêncio da Serra do Cachimbo, onde o cerrado encontra a Amazônia, os policiais ouviram o briefing e fizeram um lanche. A maior parte viajara o dia inteiro, desde outras cidades do Pará, Mato Grosso e Brasília, e agora teriam de aguentar a madrugada em claro para participar da Operação Castanheira, nome inspirado em uma árvore típica da região à beira da extinção por conta, justamente, da ocupação desordenada do solo amazônico — e também do seu principal alvo, Ezequiel Castanha.

À 1h da manhã, vestidos com roupas pretas, colete à prova de bala e munidos de pistolas e metralhadoras, se acomodaram em 50 viaturas, um avião monomotor e dois helicópteros. Os agentes chegaram em Novo Progresso ao alvorecer e se instalaram na sede local do Ibama. A informação de que uma tropa federal estava na região se espalhou rápido e causou pânico na população — que vive numa peculiar fronteira cinza entre a legalidade e o crime.

Encastelada dentro do QG, a coordenação da operação pediu reforços. O apoio adicional de 70 agentes do Ibama e da Força Nacional de Segurança Pública já estava previsto, e foi acionado de última hora para, oficialmente, evitar o vazamento de informações. “Não queríamos alertar os alvos que estávamos prestes a prendê-los”, lembra Bruno Benassuly, delegado da PF e coordenador da operação.

Extraoficialmente, no entanto, o histórico da cidade pesou na decisão de encorpar o grupo de fogo. Policiais já haviam sofrido ameaças em outras operações, e o clima de tensão era permanente entre agentes da lei e a população que depende da floresta para sobreviver. Em 2003, a cidade esteve a um disparo de uma batalha campal.

Na época, 40 agentes da Polícia Federal foram acionados para proteger técnicos e agrimensores da Fundação Nacional do Índio (Funai) durante a demarcação da reserva Baú, onde vivem índios caiapós. Armados, centenas de fazendeiros, madeireiros, pequenos agricultores e garimpeiros lideraram cerca de mil pessoas e fecharam a rodovia e o comércio da cidade. Cidadãos enfurecidos entraram na floresta dispostos a retirar os agentes da Funai à bala. Sentado em sua sala na sede do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso, o presidente da entidade, Agamenon Menezes, lembra do episódio. “Eu estava cansado de segurar o povo lá na estrada”, aponta em direção à BR-163. À época, Agamenon defendia as famílias de colonos que seriam obrigadas a deixar a área da futura reserva. Quando a situação pareceu fugir do controle, com homens armados entrando na floresta em busca dos agentes federais, ele disse: “Caçador quando entra na mata atrás da paca já leva a arma pronta para atirar”. Apesar da tensão, a PF evitou uma tragédia, e hoje as terras dos índios caiapós são protegidas por lei federal.

Ao contrário de 2003, os agentes não se intimidaram quando saíram da base aérea naquele 27 de agosto de 2014 em direção a Novo Progresso. A equipe, agora completa com a chegada dos reforços, se dividiu em 15 grupos e rapidamente se espalhou pela cidade.

Uma das primeiras paradas foi o Hotel Miranda, localizado no minúsculo centro de Novo Progresso. No bairro, edifícios térreos se amontoam em calçadas sem nenhuma árvore, onde agências de grandes instituições financeiras dividem o espaço junto a lojas de saldos, farmácias populares, portinholas de grades grossas que compram ouro dos garimpos da região e casarios pobres, em sua maioria de madeira, transmutados em fornalhas sob o sol avassalador. As construções são cortadas por vielas de terra esburacada que levantam poeira a cobrir a vista em dias secos e espalham barro grosso nos chuvosos, pelas quais só passam caminhonetes 4x4 e motociclistas habilidosos, não raro sem capacete e com três ou até quatro pessoas na garupa, desviando de pedestres, vira-latas e esgoto. O prédio de dois andares do Hotel Miranda é um dos mais modernos da cidade, com sua fachada feita de vidros espelhados e letreiro prateado que anuncia seu nome em letras quase desproporcionais. Lá, os agentes procuravam os donos do estabelecimento, Giovany Pascoal e Berenice Grota. Sem sucesso: a dupla de 45 anos não estava no local, e os funcionários disseram desconhecer o paradeiro do casal. Prender Giovany do Hotel Miranda, como é conhecido na cidade, era um dos objetivos centrais da operação. Foi quando a equipe resolveu seguir uma intuição.

Há meses, a Polícia Federal vinha ouvindo os telefonemas do casal. Na noite anterior, Berenice ligou para o pastor de uma igreja evangélica depois das 23h perguntando se ele poderia abrigar “um amigo que chegou de São Paulo”. Apesar de estranhar a hora do telefonema, o pastor concordou. Os investigadores suspeitaram que, na verdade, Berenice tinha sido avisada da operação e estava procurando um lugar para se esconder com Giovany. A polícia revistou o templo e encontrou a dupla, presa no local.

Outra equipe seguiu para a casa do advogado Leonardo Minotto, de 43 anos. Pelos grampos, a polícia sabia que ele havia sido informado sobre a operação e há dias vinha orientando os integrantes da quadrilha, seus clientes, para que destruíssem documentos. Minotto abriu a porta e levou um susto — tudo indica que ele não desconfiava que também era alvo da investigação. Cauteloso, o advogado não resistiu à prisão e nem falou qualquer coisa. Os policiais também cumpriram um mandado de busca e apreensão no seu escritório, mas tiveram que aguardar a chegada de um representante da seccional da OAB de Novo Progresso para realizar o procedimento, segundo manda o estatuto da ordem. A espera valeu a pena. Saíram de lá com caixas cheias de documentos.

Os policiais também foram atrás de Edivaldo Dalla Riva, o Paraguai. Não o encontraram: ele tinha saído de casa para levar os filhos no colégio. No caminho de volta da escola, Paraguai percebeu a movimentação atípica na cidade e viu policiais cercando a sua casa. Assustado, ligou para um amigo e revelou que ia fugir. Sua linha estava grampeada:

Paraguai: Eu passei ali em frente à casa do Castanha e tinha duas caminhonetas lá. Aí eu passei ali no Giovany e tinha umas seis. Cheia de gente.

Amigo: O Giovany não escapuliu, né?

Paraguai: É. Aí quando eu subi na rua lá, que eu vou chegando pra virar pra esquina de casa olhei a caminhonete estacionada lá e eles em pé pro lado de fora da caminhonete olhando pro rumo de casa aí eu passei direto. Não tô em casa não.

Naquele dia, policiais ainda vasculharam a pequena cidade em busca de Ezequiel Castanha. Visitaram a sua casa e o Supermercado Castanha, mas não encontraram o empresário. O que não foi uma surpresa. A essa altura, a Polícia Federal já tinha escutado a conversa que Castanha teve com a amante, na qual cogitava sair da cidade para escapar da prisão. Os policiais enviaram uma equipe para Itaituba, uma cidade próxima de Novo Progresso, mas o empresário não foi encontrado.

No fim da manhã, a Operação Castanheira não conseguiu prender o seu principal alvo, mas arrecadou nove dos 18 procurados, entre presos e conduzidos para depoimento. Ainda confiscaram dezenas de documentos que, para os investigadores, comprovavam as atividades criminosas do grupo: imagens de satélite, contratos de compra e venda de terras desmatadas e informações bancárias de laranjas. Algemados, os suspeitos foram levados para a Superintendência da Polícia Federal em Belém. Desaparecido, Ezequiel Castanha virou foragido da justiça.

Em 21 de dezembro de 2014, o comerciante recebeu uma boa notícia — quase um presente de Natal. Um juiz plantonista de Itaituba revogou a prisão preventiva de Castanha. O argumento foi que já tinha passado muito tempo desde o seu mandado de prisão — quase quatro meses. No mesmo despacho, o juiz também libertou Giovany Pascoal, o único membro da quadrilha que continuava preso — os demais acusados detidos na operação já tinham sido soltos nos meses anteriores. O Ministério Público Federal do Pará estranhou as decisões. A atuação do magistrado não foi irregular, mas extremamente incomum: em geral, juízes plantonistas não costumam julgar questões polêmicas ou que não são urgentes, já que não têm familiaridade com todos os processos. Os procuradores pediram um mandado de segurança em matéria criminal na Justiça Federal — um instrumento legal muito raro que suspende temporariamente uma decisão jurídica até que seja revisada por outro magistrado. E levaram.

No Ano Novo, o juiz Illan Presser assumiu a comarca de Itaituba e se viu forçado a dar um ponto final na confusão. Presser havia trabalhado vários anos como juiz substituto no Mato Grosso até que foi promovido ao posto titular e enviado para Belém do Pará. Ao assumir o cargo, se ofereceu para atuar no interior. “Eles estavam com falta de juiz em Itaituba e ninguém queria assumir”, lembra. Ao contrário dos colegas, o cargo na pequena cidade amazônica lhe interessava. Seria uma oportunidade de atuar em questões ambientais, tema que gosta e leciona no cursinho online Ênfase, preparatório para concursos. Já nas primeiras semanas, recebeu na sua mesa o caso complexo dos grileiros de Novo Progresso. Presser não hesitou. Expediu dois novos mandados de prisão: um para Ezequiel Castanha, e outro para Giovany Pascoal. “Como parte da minha decisão, aleguei que tinha ocorrido uma redução considerável do desmatamento na Amazônia depois que a quadrilha foi desmantelada. Soltos, essa dupla poderia voltar a desmatar”, disse. Antes da operação, em agosto de 2014, foram registrados 90 km² de desmatamento ao longo da BR-163 (Novo Progresso, Itaituba e Altamira) com base em imagens de satélite LandSat 8. Após a operação, a partir de setembro, esse índice despencou 83%, mantendo uma média de 15 km² nos seis meses seguintes.

Dessa vez, a operação policial foi feita às pressas, para que não desse tempo de ocorrer novos vazamentos. Na tarde do dia 21 de fevereiro de 2015, uma equipe de agentes da Polícia Federal, da Força Nacional e do Ibama de Santarém aterrissou em Novo Progresso a bordo de um helicóptero. Eles se dividiram em duas equipes: uma procuraria Castanha, a outra, Pascoal.

Castanha não foi encontrado em casa e nem no supermercado. Mas a equipe conseguiu localizar um dos seus advogados e resolveu seguir o seu carro, na esperança que ele os levasse até o cliente. O homem percebeu que estava sendo seguido por uma viatura da Força Nacional e circulou pela cidade sem rumo durante uma hora e meia. Cansado da perseguição, parou o carro, desceu do veículo e se aproximou dos policiais. Concordou em levar o cliente ao escritório do Ibama. Quando chegou no local, horas depois, Castanha encontrou os agentes a sua espera. O inimigo número 1 do Ibama em Novo Progresso foi algemado e levado para prisão.

Ezequiel Castanha é conduzido por policiais no dia de sua prisão. Imagem: Reuters

Giovany Pascoal não estava na sua residência, nem no Hotel Miranda ou nas fazendas vinculadas ao seu nome. Tinha sumido. Mas os policiais ganharam um brinde inesperado: Edivaldo Dalla Riva, o Paraguai, fora do radar desde a operação policial de agosto de 2014, abordou a equipe e se entregou. “Ele disse que não aguentava mais fugir por estar em dificuldades financeiras”, disse Olavo Pimentel, delegado da Polícia Federal de Santarém, que liderou a ação. Castanha e Paraguai permaneceram na sede do Ibama de Novo Progresso por dois dias, já que as fortes chuvas impediram o retorno do helicóptero. Só no dia 23 de fevereiro o grupo conseguiu levantar voo, e a dupla foi levada para o presídio mais próximo, o Centro de Recuperação de Itaituba.

Com o sucesso da operação, a assessoria de imprensa do Ibama distribuiu uma nota intitulada Preso o maior desmatador da Amazônia de todos os tempos, e Ezequiel Castanha apareceu algemado e de camisa azul na edição do Jornal Nacional daquela noite. No final da reportagem, a apresentadora Renata Vasconcellos disse que o advogado do empresário negava as acusações e que, conforme a defesa, Castanha era um “empreendedor bem-sucedido, vítima de inveja”.

Xadrez fit

Às 6h30, Janaína Andrade de Sousa recebeu uma mensagem de texto de um colega. A procuradora da República no município de Itaituba havia recém acordado naquele 10 de março, 17 dias depois da prisão de Castanha. O recado dizia que ela precisava abrir o seu e-mail urgentemente. Na caixa de entrada, Janaína encontrou uma nota que o colega tinha copiado do jornal O Liberal, publicada na coluna de opinião Repórter 70.

O madeireiro Ezequiel Castanha, preso como o maior desmatador da Amazônia, é tratado como celebridade no Centro de Recuperação de Itaituba, onde está recolhido. Diferente dos outros detentos, ele tem internet, telefone celular e notebook à disposição. Para completar o festival de mordomias, agora a Casa Penal autorizou a entrada de uma bicicleta ergométrica. Só faltam camarão e vinho do Porto.

Duas horas depois, a procuradora já estava em frente ao Centro de Recuperação de Itaituba para averiguar a denúncia. Era uma visita surpresa. A única pessoa que ela tinha avisado era Juliana de Pinho Palmeira, promotora do Ministério Público Estadual de Itaituba, que acompanharia o procedimento.

Dentro do presídio, elas encontraram Castanha dividindo um quarto com o advogado Altair dos Santos, acusado de ser o mandante de um triplo homicídio. O local em nada aparentava uma prisão brasileira. A cela tinha 20 m², paredes bem pintadas de amarelo e um piso de lajota branco reluzente. Os presos dormiam em um beliche de madeira, podiam se servir de livros em uma estante de metal e trabalhar em mesa e cadeira de escritório. Era uma habitação equipada: tinha laptop, frigobar, televisão, impressora e uma cafeteira. Do lado de fora da sala estava um aparelho elíptico de fazer ginástica, ainda com o embrulho plástico da loja, recém comprado pela esposa de Castanha em uma loja próxima chamada Pedalando Gostoso.

Janaína logo constatou que os artigos não haviam sido autorizados. Apenas o colega de Ezequiel, Altair dos Santos, tinha o direito de usar um laptop por ser advogado e atuar em defesa própria. “As testemunhas informaram que a entrada dos objetos se deu às claras, o que indica, data venia, ato de total abuso de poder”, lembra Janaína. As regalias não paravam por aí. Castanha recebia visitas frequentes de parentes, extrapolando as regras da casa. O tratamento diferenciado era tão evidente que outros 275 presos da instituição, superlotado em 41%, haviam ameaçado realizar motins em razão dos privilégios.

As regalias tinham sido aprovadas pelo diretor do presídio, Márcio Ferreira da Silva. Funcionários da instituição acusaram o diretor de firmar um acordo com o preso ilustre: em troca do tratamento de luxo, o empresário concordou em transformar o frigorífico do diretor, localizado na região de Itaituba, no principal fornecedor de carnes do Supermercado Castanha. O diretor foi exonerado do cargo, e um guarda que teria auxiliado no tráfico de benesses também foi afastado.

O juiz Ilan Presser foi checar se a situação de Castanha havia sido regularizada em 21 de maio. Encontrou o empresário em uma sala muito menor, com apenas uma cama e alguns livros. Mas ainda não era uma cela: o quarto pertencia às dependências da administração da prisão. Como Castanha apresentou um diploma de graduação em História, tinha direito a cela especial e ficava isolado dos outros presos que não possuíam curso superior. Mesmo assim, o empresário reclamou muito para o magistrado. Pediu para cumprir a sua pena em prisão domiciliar em Novo Progresso. “Expliquei que a única alternativa era transferi-lo para o presídio de Belém”, lembra Presser. Castanha desistiu da mudança e, segundo o juiz, passou a elogiar a cadeia de Itaiatuba. “Acho que ele ficou com medo de não ter nenhuma influência na cidade grande”.

Castanha saiu de trás das grades na noite do dia 21 de outubro de 2015, quando a fase inicial do seu processo foi concluída. Aos 53 anos, Ezequiel aguarda o julgamento em liberdade, sob risco de pegar até 54 anos de pena. Ele responde a crimes contra flora, meio ambiente e patrimônio genético, dano ambiental, associação criminosa, contrabando e dano moral. Ainda não há sentença para nenhum dos 12 processos que circulam nos gabinetes da Justiça do Pará em Itaiatuba, Santarém e Altamira.

Desde então, leva uma vida discreta. “Você não encontra mais ele. Vive separado da sociedade, não anda mais na rua”, conta Adecio Piran, proprietário do Folha do Progresso, o jornal local. O empresário, no entanto, segue dando expediente no Supermercado Castanha.

A ação das autoridades contra o desmatamento em Novo Progresso teve pouco efeito. De acordo com dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), a área desmatada no município cresce sem parar desde 2001, quando as informações começaram a ser compiladas. O problema se estende por todo o Pará: o Prodes mostra que o desmatamento cresceu 41% no Estado em 2016 — entre os territórios amazônicos, só perde para o Amazonas e Acre, onde o corte de árvores cresceu 54% e 47% no último ano. Em média, a taxa de desmatamento anual aumentou 24% em 2015 e 29% em 2016 por toda a Amazônia.

Parte do fracasso ocorre porque Ezequiel Castanha não está sozinho. No ano passado, o empresário Antônio José Junqueira Vilela Filho foi preso em julho, acusado de derrubar uma área florestal do tamanho de Belo Horizonte e de crimes como corrupção passiva e ativa, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica — estaria no ramo do desmatamento pelo menos desde 2009. Oriundo de uma tradicional família de pecuaristas cujos filhos frequentam colunas sociais e eventos da elite paulistana, AJJ Vilela, como é conhecido, seria o líder de outra quadrilha, desbaratada pela Operação Rios Voadores. Seu caso lembra muito o de Ezequiel Castanha: o grupo contratava operadores de motosserra em condições análogas ao trabalho escravo (como é praxe debaixo das copas de jatobás e cedros) e burlava as imagens de satélite derrubando a mata pouco a pouco. Depois das queimadas, as terras, vizinhas à BR-163, recebiam gado, e os lucros eram ocultados por uma rede de laranjas. A principal diferença entre as quadrilhas era que AJJ operava tudo direto de bairros nobres de São Paulo, enquanto Ezequiel vivia o pó e o barro da 163.

Vilela e companhia foram capturados graças a escutas telefônicas e quebra de sigilo financeiro. Ele é o infrator com o maior volume de multas aplicadas pelo Ibama em toda a história do órgão: R$ 345,5 milhões na soma entre as punições individuais e de empresas ligados ao seu grupo. Para o Ibama, a AJJ é o novo “maior desmatador da Amazônia”.

Até que apareça o próximo.

Colaboraram nesta reportagem Marcela Donini, Sílvia Lisboa e Juan Ortiz.

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