SOBRE A SEDE

BRIO
BRIO STORIES
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122 min readSep 25, 2015

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por Vitor Hugo Brandalise

ATO 1

(ou Prólogo)

“Uma boca seca”.

No domingo em que decidiu morrer, Nelson Irineu Golla acordou de súbito às seis da manhã e não pôde mais dormir. Estava ansioso e impaciente — ou, como ele próprio diria, estava de saco cheio. Vestiu uma camisa cinza-escura de manga curta, uma bermuda azul e calçou chinelos. Evitava usar meias, pois, aos 74 anos, tinha dificuldades de se curvar. Bebeu café e comeu biscoitos sem deixar de pensar na dúvida que o atormentava havia três dias: será que desta vez conseguiria? Repassou mentalmente seu plano. Se tudo desse certo e a coragem viesse, dentro de algumas horas, ele e a esposa, dona Neusa, estariam mortos. Finalmente.

Nelson resolveu passar o tempo no parque da vizinhança, que ficava em frente à sua casa. Era dia de campeonato de futebol de várzea e, sentado em um banco atrás do campo, à sombra de velhos eucaliptos de 12 metros de altura, ele escutou uma série de estampidos secos, seguidos do alarido da molecada. Soltavam morteiros. Nelson vivia ali havia muito tempo e sabia que esse era um costume em dias de jogos. Quem o viu naquela manhã de setembro de 2014, princípio de primavera em São Paulo, disse que ele parecia feliz.

O chefe da família Golla é um homem alto (um metro e oitenta, uma estatura comum entre eles) e de sorriso fácil, bom ouvinte e comunicativo; é também discreto com seus problemas e, certamente, não abre seus segredos a qualquer um — especialmente um segredo como aquele, que o levara à última reflexão solitária no parque. A verdade é que ele não andava nada bem. Um pouco antes do meio dia, Nelson voltou para casa.

Ele comeu com rapidez um almoço que preparou para si próprio. Que ele mesmo cozinhasse era algo impensável até poucos anos atrás. Nelson era o caçula de dez irmãos, o que incluía três irmãs mais velhas, além de uma mãe protetora, todas dispostas a mimar o temporão, que chegou dez anos depois de Anália, a irmã que o antecedia. Neusa também o acostumara a ter as vontades sempre atendidas. Uma série de mudanças em sua vida nos últimos anos, porém, o obrigaram a aprender a se virar, mesmo com as constantes dores na coluna, aquele braço esquerdo atrofiado e o incômodo que era sentir-se “um velho”.

Como de costume, Nelson cochilou no sofá depois de comer e, como agora era frequente, acordou sobressaltado. Havia semanas que a palavra “covarde” lhe invadia o sono e o fazia despertar. Isso o irritava bastante, pois jamais se enxergara dessa forma antes. Nelson abriu os olhos e decidiu seguir em frente. O relógio marcava duas e meia da tarde. Antes de sair, trocou uma das peças da roupa: colocou uma calça folgada, para poder levar o que quisesse nos bolsos largos sem chamar atenção. Desceu à oficina de automóveis que fica no térreo do sobrado onde vive, na Vila Prudente, um bairro que no passado era operário e que hoje é de classe média, na zona leste de São Paulo. Nelson orgulhava-se de dizer que construiu sua casa com as próprias mãos, das fundações ao terraço, no terceiro andar. Levou 30 anos e não foi fácil. Ao longo de muito tempo, terminar a casa foi seu maior sonho. Quis fazê-la grande para receber muita gente, reunir, sempre que pudesse, a família toda ali. Neusa partilhava desse desejo e ajudou o quanto pôde. A impressão de Nelson era de que passara metade da vida entre sacos de cimento e montes de entulho, e sentia-se agradecido à esposa por ter ficado ao seu lado. Costumava dizer que nem toda mulher aguentaria aquilo.

De uma gaveta nos fundos da oficina, um cômodo comprido e de pé direito alto, onde se veem peças de carros e caminhões por todos os lados, Nelson retirou os equipamentos que pretendia usar. Consultou de novo o relógio, eram quase três. Entrou no Celta vermelho da família e, antes de girar a chave, abriu o porta-luvas. Colocou ali nove folhas de papel, que mais tarde seriam encontradas pela polícia. Ele deu a partida e, como fazia diariamente, dirigiu-se à clínica de repouso onde nove meses antes internara sua mulher.

Nelson e Neusa eram casados havia 47 anos. “E mais sete de namoro”, ele sempre se apressava a dizer. “Cinquenta e quatro anos juntos; a gente não se largava.” Quando a conheceu, ele era um rapaz de 20 anos. Neusa tinha 18 anos recém-completados. Agora, após ultrapassar os 70, Nelson mantinha a saúde estável, apesar da paralisia no braço, resultado de um problema nunca diagnosticado ou tratado direito. Neusa tinha 72 anos, sofrera dois AVCs recentemente e, na clínica, era alimentada por meio de uma sonda nasogástrica. Estava lúcida, mas não podia mais mastigar ou deglutir. Recebia um soro nutritivo diretamente no estômago, inserido pela narina esquerda. Suas reações restringiam-se a grunhidos e olhares marcados por uma depressão profunda, que surgira no início dos anos 2000 e não mais arrefecera. Com esforço, ela, às vezes, conseguia resmungar algumas palavras.

Neusa e Nelson Golla. Arquivo da família.

Desde que Neusa foi internada pela primeira vez em uma clínica desse tipo, há quatro anos, Nelson não deixou de visitá-la nem mesmo um dia. Não saiu mais de São Paulo para ver os parentes em Santos ou Presidente Prudente, não foi mais passear em Caldas Novas, em Goiás, ou em Conservatória, no Rio. Há anos ele mal saía do bairro. Sua rotina era encontrar a esposa todas as tardes, fosse ou não dia de visita. Dizia que, enquanto estivesse com ela, Neusa receberia o tratamento destinado aos pacientes que têm família por perto: mais paciência, mais carinho, mais cuidado. Mas ele também admitia com tristeza que não podia se enganar: quando saía, Neusa certamente receberia dos funcionários da clínica as broncas que via serem dadas em outros pacientes. “Eu estou aqui. Se minha mulher pedir alguma coisa, vou procurar um jeito de dar a ela. Mas e quando eu saio? Ela fica abandonada como os outros. É triste, mas em mais da metade do dia e a noite toda a mãe de vocês fica abandonada”, ele dissera aos filhos, certa vez.

Era um domingo ensolarado em São Paulo, 28 de setembro de 2014, e Nelson visitaria Neusa novamente. Levava dois volumes nos bolsos da calça. Um deles era uma bisnaga de 100 mililitros que enchera com água de coco de caixinha, como a esposa gostava. Às escondidas, ele daria de beber a ela. Nelson sabia que era proibido alimentar pacientes que usam sonda, mas, ainda assim, sempre o fazia. “Bebida direto no estômago não mata a sede de uma boca seca”, dizia. O outro volume que Nelson levava era uma bomba caseira, que ele mesmo fizera e que, às vezes, apalpava no caminho até a clínica para certificar-se de que estava mesmo ali. Também carregava consigo uma caixa de fósforos.

Ilustração: Pedro Matallo.

ATO 2

“Me ensina a dançar?”.

No caminho de volta para casa após as visitas à esposa, por razões que ele ainda não se dispunha a tentar entender, Nelson lembrava-se cada vez mais da falecida mãe e das irmãs. Em sua memória, elas lhe diziam: “Nelson, é preciso dar água para as crianças, porque elas não pedem. Elas têm sede também, de vez em quando tem que dar uma aguinha para elas, mesmo que elas não peçam”. Eram lembranças antigas, dos tempos em que a família toda vivia em um casarão na Rua Torquato Tasso, também na Vila Prudente, e as irmãs mais velhas tinham acabado de parir seus primeiros filhos. Nelson acreditava que não precisava ouvir esse tipo de lição, pois ainda tinha a cabeça em outro lugar, no dominó, no bilhar, em uma ou outra paquera e — um sonho que ele acalentava em segredo — no mundo das artes cênicas. Queria ser ator, talvez, por que não?

As mulheres da casa, sem suspeitarem das aspirações do caçula, dividiam com ele seus aprendizados da vida doméstica, porque achavam que era hora de receber ensinamentos de adulto, coisas que seriam “úteis para a vida”. Ele já não era mais criança e, na opinião das irmãs, podia pensar em arranjar uma mulher. Nelson tinha 20 anos e trabalhava em uma das fábricas da família Teperman, que prosperou nos anos de 1960 fabricando assentos de ônibus, e cuja sede ficava na Vila Prudente, a um quilômetro da casa dos Golla. Um bom lugar para fazer carreira, dizia seu pai, um homem baixo chamado Rafael, que vendia balões coloridos seis dias por semana em feiras de rua das redondezas. Nelson começara como operador de prensas na estamparia, e assim continuava. O pai não sabia, mas sua vontade de subir na hierarquia da firma era nula — na verdade, pensava mais em deixar o emprego. Desde muito cedo, Nelson formou a convicção de que, se não gostasse do que estava fazendo, mais valia interromper a atividade. Ele agiu assim a vida toda.

Divertia-se com os lazeres simples da São Paulo do início dos anos de 1960. Em um bairro operário da zona leste, as opções eram ainda mais singelas: algum cinema de rua, um parque de diversões sem nome instalado em um terreno baldio, os passeios na praça e o futebol nos campos de várzea com a turma da Rua Cananeia. Nelson era centroavante e chutava com a perna direita. “Não tinha boteco naquele tempo”, Nelson repetiu muitas vezes aos filhos, anos depois. “Isso é coisa nova. Hoje, vocês saem para a noite na hora em que eu estava voltando. Mas que você vai fazer? É o costume da época, quer você queira, quer não. Tem que suportar.”

No ambiente em que vivia, o costume eram reuniões modestas, sempre na Vila Prudente ou arredores. Predominavam na região casas térreas com quintal na frente e janelas emolduradas por adornos de argamassa — típicas construções operárias de uma cidade que via florescer a indústria automobilística, ávida por força de trabalho. A vida de Nelson era quase toda por ali e quase toda feita a pé. Quando pegava a condução para o centro, ele preferia não comentar com pais e irmãos. Eram outros afazeres seus, nada que tivesse a ver com o restante da família, que não entenderia suas vontades artísticas.

Em uma sexta-feira de 1960, o chefe da prensa convidou-o para o aniversário do filho. Nelson pensou que compareceriam somente os prensistas, que beberiam cerveja e bateriam papo. Surpreendeu-se ao ver na festa as meninas da costura, a mulherada toda do andar de cima. Veio também aquela morena bonita e baixinha que ele observara no pátio da firma nos momentos de folga. Além das feições agradáveis da moça — o cabelo curto, liso e bem preto, e os dentes da frente um pouco pronunciados –, chamou-lhe atenção algo em sua postura. Ela era pequena, parecia tímida, mas mantinha o porte ereto e a voz firme, e assim impunha respeito.

Chamava-se Neusa, explicou o anfitrião, e era a chefe da seção de costura na mesma fábrica. Para se aproximar, Nelson elogiou a jovem com picardia, bem ao seu estilo — o que buscava era causar reação. Entre as galhofas, disse algo que repetiria muitas vezes: “Você é a carro-chefe aqui da firma, vai sempre à frente!” Nelson tinha bom papo e era boa pinta. O queixo furado, o topete, a estatura e aquele traço de artista o destacavam nos lugares que frequentava. Tinha também um apreço por palavras bonitas e as usava com Neusa sempre que podia. Falava dos livros que estava lendo, de como apreciava Alexandre Dumas, dos planos que fazia — iria deixar a firma o quanto antes e montar seu próprio negócio, que ela não se preocupasse: daria certo. Era um homem ambicioso sem perder a doçura, tinha boa família e gostava de trabalhar. Neusa apaixonou-se.

Começaram a namorar na mesma semana. A jovem vivia com a mãe e os quatro irmãos em uma casa modesta na Rua das Heras, a três quilômetros da casa de Nelson. Passaram a caminhar juntos na volta do trabalho, ele fazendo-a rir, ela causando-lhe a impressão de ser uma moça “boa para casar”. Ela prometeu que prepararia a lasanha cuja receita aprendera com a mãe, disse que sabia costurar e que gostava de crianças. Ele impressionou-se com as prendas e notou uma coincidência que o satisfazia: o nome dela também começava com “n”. Nelson e Neusa. Soava bem.

Quando contava essa história aos filhos, Nelson sempre enfatizava o fato de que se sentia seguro ao caminhar pelas ruas de São Paulo à noite, mesmo que estivesse muito bem vestido. As sextas-feiras agora eram destinadas ao namoro, e ele percorria a pé os quarteirões até a casa de Neusa, sempre de terno e gravata — e jamais se vira em perigo. Eram tempos de ditadura militar e ele nunca sentira repressão. Antes, pelo contrário: “Era muito mais tranquilo do que nos dias de hoje”, dizia. Acostumados à rabugice do pai, os filhos assentiam, mas suspeitavam de que, muito mais do que uma crítica ao aumento da criminalidade na Vila Prudente (que, de fato, ocorrera), isso era reflexo do saudosismo que ele manifestava desde que Neusa caíra de cama.

Nas noites de namoro, a jovem também caprichava: calçava o salto alto (chegava, assim, a um metro e cinquenta e cinco), colocava brincos e passava um pouco de maquiagem. Caminhavam até a cidade vizinha de São Caetano, a uns dois quilômetros dali, para pegar um cinema ou namorar na praça da igreja. Muitas vezes, Neusa teria preferido passar a noite dançando em algum clube das redondezas. A jovem movia-se com graça ao som de Vicente Celestino e dos boleros de Lucho Gatica. Em casa, ensinara os três irmãos mais novos a dançar.

Nelson sabia que essa era uma das paixões da namorada, mas não podia acompanhá-la. Ele nunca buscou entender o motivo, mas bastava entrar em um salão de baile para que travasse totalmente. Dirigia-se ao balcão do bar e pedia um uísque. Ao longo da vida, disse a Neusa inúmeras vezes: “Me ensina a dançar?” Mas nunca se esforçou para enfrentar a inibição. Nos tempos de namoro, levava-a sempre a lugares tranquilos, com música ambiente ou sem música. Adorava a companhia dela e não deixaria que essa incompatibilidade os atrapalhasse. Neusa estancou seu desejo pela dança.

Nelson deixava a namorada em casa antes das dez da noite e, com frequência, era convidado pela sogra, dona Maria Guilhermina, a ficar para assistir à luta livre. Era uma febre paulistana na década de 60: lutas ao vivo pela TV na emissora Record. A sogra vibrava. Por incontáveis vezes, Nelson deixou a casa da namorada depois das 23h30, o que o fazia perder o último ônibus. Voltava a pé para casa, cansado e satisfeito.

Para os padrões daquele tempo, Nelson e Neusa demoraram a casar. Já se passavam sete anos e Nelson sequer havia apresentado a namorada à família. Ele intuía o que a mãe e as irmãs poderiam dizer e, por isso, evitava levá-la em casa. Além do mais — ele dizia à sogra e aos irmãos de Neusa –, antes de casar, eles precisariam “melhorar de vida”. “Pois vocês vão ter que melhorar de vida juntos. Nós achamos que você já está embaçando a Neusinha”, disse um dos irmãos mais novos de Neusa, José, que era conhecido como Paçoca. Quando a sogra passou a tratá-lo com frieza, Nelson decidiu apresentar a namorada aos pais. Foi na véspera de Ano Novo, na virada de 1966 para 1967. Concretizou-se o que o jovem previa: suas irmãs e irmãos implicaram com a cor da pele de Neusa, morena. “Ih, Nelson, você tá namorando uma negona, trouxe aqui em casa uma mulata do Sargentelli (popular apresentador de programas de rádio da época que exaltava a beleza das mulatas brasileiras)”, disseram, com maldade. Nelson estava preparado para aquilo e, com a impulsividade de sempre, anunciou na festa de Réveillon:

– Pois vamos nos casar dentro de um mês.

Deixou os irmãos falando sozinhos. A mãe de Nelson, Maria, apoiou a decisão e ameaçou romper com qualquer familiar que alimentasse comentários maldosos.

Nelson e Neusa casaram-se em 26 de janeiro de 1967, um dia depois das comemorações de aniversário de São Paulo, na Igreja de Santo Emídio, a mesma em que ele fora batizado e crismado. O noivo estava satisfeitíssimo. A vida a dois começaria em breve e a garota da costura, o carro-chefe na firma, seria sua esposa. Pensava nela do jeito que aprendera a ver uma mulher: alguém que lhe daria filhos e que cuidaria da casa e dele.

A cerimônia foi às seis da tarde e 50 convidados compareceram. Foram os Golla e alguns poucos integrantes dos Oliveira — a família de Neusa, que emigrara de Pesqueira (PE) para São Paulo quando ela era criança. Mais de cinco décadas depois, quando tudo acabou, vi o álbum de casamento de Nelson e Neusa, com uma paisagem alpina desenhada na capa e dedicatória na folha de rosto: “A você, Neusa, com todo o meu carinho e estima, Nelson.”

Nelson e Neusa, em retrato tirado no dia em que se casaram, em janeiro de 1967. Arquivo da família.

“Qual é o Deus que rege esse negócio?”.

– Bom dia, Dona Neusa, vou te deixar bem bonita para ver a sua família — anunciara a enfermeira Luciane Teodoro, proprietária da casa de repouso Novo Lar, ao entrar no quarto e abrir a janela basculante. Tinha nas mãos uma camisola branca enfeitada com lacinhos rosados na gola e babados de renda na barra. Depois do banho, Neusa estaria pronta para receber o assíduo visitante. “Foi o homem mais presente na clínica desde que minha mãe a abriu, 21 anos atrás”, disse-me Luciane, tempos depois.

– Vamos nos arrumar, Dona Neusa, porque daqui a pouco seu esposo chega.

Neusa Maria Golla ocupava uma cama encostada na parede do lado esquerdo do quarto, com uma prateleira logo acima, onde ficavam seus medicamentos: um antidepressivo, um anticoagulante e um remédio para pressão alta, todos dentro de uma pequena cesta de plástico cor-de-rosa. Como mais tarde anotaram os policiais, viviam no mesmo cômodo (de cerca de 15 metros quadrados) as senhoras Almerinda Pereira Santos (87 anos), na cama da direita, e Luisita Matos Iacomolski (80 anos), em uma cama atravessada no quarto, embaixo da janela, por onde entravam ar fresco e claridade. Neusa e Almerinda usavam sondas (eram “sondadas”, na linguagem das clínicas), e Luisita ainda podia comer papinhas e mingaus. As três mulheres estavam acamadas no quarto de número 03, onde ficavam as pacientes mais debilitadas — as que estão “piorzinhas”, como se diz por ali.

Àquela altura da vida, nenhuma delas podia falar normalmente. Resmungavam e reclamavam, quase sempre por meio de grunhidos, e com frequência choravam. Se algo as incomodava muito, elas conseguiam gritar. Luisita e Almerinda tinham déficit severo de cognição e demência senil. Já não estavam lúcidas. Neusa mantinha o conhecimento intacto, conseguia escutar, e era exatamente a lucidez da mulher, que agora só se comunicava pelo olhar, o que mais machucava o marido. Ele preferiria que ela estivesse desacordada, que vivesse o dia inteiro na morfina “ou sei lá que diabo”, porque ficar daquele jeito, na opinião de Nelson, era um castigo pior do que o fim do mundo.

Nos últimos dois meses, a língua de Neusa começara a atrofiar e definhara até travar por completo. O mesmo ocorrera com os braços, que agora cruzavam-se imóveis sobre o tórax. As mãos de pouca carne se contorceram, não podiam pegar mais nada. Há poucos dias, a perna direita de Neusa também atrofiara. Levantou-se na clínica uma suspeita de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), que não chegou a ser confirmada. Quando ainda falava, Neusa chamou o marido para perto:

– Nelson, o que eu fiz na vida para sofrer assim?

Ele ainda quis brincar, tentou distrair a mulher e balbuciou algo como “jogar pedra na cruz é que não foi”, mas saiu de lá muito abatido e, pelo que disse mais tarde, com sérias dúvidas em relação aos desígnios de Deus. Nelson era católico de formação, fizera todos os sacramentos ali perto, na Igreja de Santo Emídio, mas há tempos sentia-se cada vez mais descrente e, em seus pensamentos, O desafiava com frequência. “Não sei onde Ele fica dentro de uma clínica como essa”, disse uma noite, ao voltar para casa. “Não sei qual é o Deus que rege esse negócio.”

A o chegar à clínica naquele domingo, por volta das três da tarde, Nelson foi recebido por uma auxiliar de enfermagem chamada Michelli. A garota de 29 anos era nova ali e ainda não conhecia direito os familiares dos pacientes, nem mesmo o Seu Nelson. Deixou-o esperando no portão da clínica — uma casa verde e térrea, que, em outra época, fora residencial, com um bem cuidado jardim à frente — e foi perguntar a Luciane, a proprietária, se ele podia entrar.

– Claro que pode, Michelli, ele vem direto aqui! Você já sabe disso, pode abrir — respondeu Luciane.

– E posso deixar ele sozinho no quarto com ela? — a auxiliar insistiu.

– Sim, claro, ele já é da casa.

“Não tem problema nenhum”, Luciane ainda comentou com a filha de uma outra paciente, com admiração, “ele vem todo dia, imagina você”. Ainda que fosse domingo, dia que não é de visitas na Novo Lar, Nelson sempre tinha permissão para ver a mulher. Bastou uma breve explicação dos filhos do casal logo na chegada de Neusa para convencer a proprietária da importância de que ele tivesse livre acesso. Não seria ela, Luciane, a ficar no caminho daquilo, ela diria meses depois, quando precisou se explicar aos policiais.

Nelson era um homem agradável e, com tanta assiduidade nas visitas, não havia como não o apreciar naquele ambiente. A dona da clínica dizia aos filhos do casal que o considerava parte da família. A própria Luciane tivera uma depressão profunda anos antes e quase morrera. Chegara a pesar 40 quilos e passara meses sem conseguir andar. Teve de reaprender várias coisas e uma delas era dirigir. Ao vê-la agarrada ao volante, sem coragem de ligar o carro, era Nelson quem dava força. “Larga de frescura, menina, vai logo!”, ele dizia. Quando a encontrava na rua, Nelson corria a passos trôpegos (como ele sempre se movia) para trás de um poste ou de uma árvore. “Da próxima vez que sair, me avisa que eu fico em casa, não quero arriscar ser atropelado!”, brincava. Ele tinha boa presença de espírito e isso o destacava na casa de repouso, onde o som que mais se ouve são queixumes e lamúrias. Uma das enfermeiras provocava:

– Dona Neusa, vamos reagir, levanta dessa cama. Seu marido é tão bonitão, não pode deixá-lo solto por aí, não.

Neusa franzia o cenho, parecia enciumada e meio brava.

– Tô brincando, dona Neusa. A senhora é que tem sorte. Seu marido vem todo dia. Que homem hoje em dia cuida da mulher desse jeito? Quero ver se meu marido vai ser assim quando eu envelhecer.

Na chegada de Nelson, com o sorriso bonachão que puxava para o lado esquerdo, o assédio era semelhante.

– Ai, Seu Nelson, a gente quer que nosso marido fique igual ao senhor.

Ele tinha mesmo um quê de galã, o que sempre o ajudara a amealhar simpatias. Na clínica, a impressão que deixava era ainda melhor. Ele acariciava os curtos cabelos brancos e o rosto de pele fina e morena de Neusa e, embora sentisse uma pontada na coluna a cada vez, abaixava-se à altura do leito, abraçava a mulher (envolvendo-a com o braço bom) e a beijava. Luciane flagrou vários momentos como esse, não tanto por curiosidade, mas porque observar os visitantes era parte de seu trabalho. Gente estranha também aparecia e era preciso estar atenta, ela disse-me mais tarde. Visitas de parentes distantes de idosos sem filhos (sobrinhos, sobrinhos-netos) recebiam atenção especial. “Vai que estejam interessados em uma herança?”, justificou.

Nelson e Neusa, por outro lado, serviam de exemplo. Eram chamados de “casal 20” e apontados para outros pacientes e visitantes como inseparáveis. Ao notar que era observada, Neusa sorria.

– Está gostando do carinho, não é, dona Neusa? — dizia Luciane — Mas daqui a pouco ele tem de ir embora, você sabe.

– Essa é minha velhinha, Luciane, e eu não vivo sem ela — Nelson interveio, certa vez.

– Agora, ela é minha, Seu Nelson, o senhor perdeu. Não vai mais conseguir tirá-la de mim.

Existiam momentos de leveza, o bom humor ainda fazia parte da vida do casal, mas se tornavam raros. Nos últimos tempos, uma mudança de comportamento de Neusa foi notada pelas enfermeiras, mas elas não souberam explicar se era importante. Sempre que Nelson deixava o quarto após uma visita, elas perceberam que Neusa ficava muito triste. Ela sofria de depressão severa e essa condição foi apontada como uma das razões para que tivesse parado de andar. Mas daquele jeito ela nunca ficara. Bastava o marido sair para que caísse em um choro copioso, que durava até de noitinha. Não adiantava perguntar, pois ela não diria o motivo. Muitas vezes, Luciane quis saber e, pelo que me contou mais tarde, Neusa chegava a abrir a boca para falar, mas mudava de ideia e virava para o lado.

Luciane quis respeitar a privacidade do casal e não insistiu. Muitas vezes, ela ouviu Nelson dizer coisas belas à esposa, outras tantas, o viu acariciando-a, e a enfermeira pensou que deveria ser apenas o efeito do cuidado do marido com a mulher que, além das limitações físicas, padece de depressão.

Nelson também notou que, desde que a sonda fora instalada, a esposa muitas vezes esforçava-se, mas acabava desistindo de tentar falar. Ele a conhecia bem o bastante para saber que nesses momentos não adiantava insistir. Quando ela virava o rosto para o lado até praticamente afundá-lo no travesseiro com um resmungo, era porque não queria mais tentar se comunicar. Um dia Nelson percebeu que Neusa fazia um esforço maior. De dentro do pescoço enrijecido e quase sem movimentos, entortado para a direita, ele acreditou ouvir breves gargarejos. Nelson aproximou-se. Escutou:

– Me ti-ra da-qui.

Ilustração: Pedro Matallo.

ATO 3

“Machadadas na árvore”.

Os primeiros anos de união do casal foram vividos em um porão na casa dos pais de Nelson, na Rua Torquato Tasso. Algo novo começava ali. Ele estava animado com o emprego novo como motorista na Villares, de São Bernardo do Campo, uma metalúrgica que ficou conhecida durante a ditadura militar pela combatividade de seu sindicato, do qual fazia parte Luiz Inácio Lula da Silva. Nelson também pagava as contribuições sindicais, embora não aparecesse nas reuniões.

Agora que eram casados, ele disse à mulher que ela não precisaria mais trabalhar, que podia largar o emprego na Teperman para tomar conta da casa. Neusa resistiu, mas o marido foi peremptório. O trabalho dela seria em casa: cuidaria dos afazeres domésticos e das finanças, com o dinheiro que ele lhe daria. Assim, ele teria mais tempo para o bilhar, o dominó, o futebol. Neusa se resignou e largou o emprego. Avisou que tentaria fazer suas costuras e vender alguns produtos para ajudar um pouco. Acreditando que aquilo não aconteceria, Nelson aceitou. Tudo bem, desde que não atrapalhasse o serviço doméstico.

Nos primeiros anos de casamento, eles nutriam ambições simples: Nelson queria se mudar do porão, pensava em ter filhos (o nome do primeiro já estava definido, seria Nilson) e em comprar um terreno para construir uma casa. Mais tarde, abriria um negócio. Nelson não admitia, mas nunca tomava uma decisão sem antes consultar a mulher — era Neusa quem “andava na frente”, como ele definia.

Agora, enquanto conduzia com dificuldade o carro da família até a clínica de repouso onde internara a esposa, Nelson pensava naqueles planos vagos do início do casamento. Segundo disse aos filhos, ele lembrava-se, cada vez com mais frequência, daquelas “papagaiadas todas de quando éramos jovens”, do desafio distante que era pensar em envelhecer juntos. “Quando formos velhinhos, tudo estará em ordem e teremos tempo e dinheiro para viajar pelo Brasil”, disse Neusa, certa vez. Esse era um dos seus sonhos.

Nos primeiros meses de internação, Nelson ainda conseguia sorrir ao se despedir da esposa na casa de repouso: já vira que Neusa estava bem e, portanto, podia dormir em paz. Mas isso também mudara. Ao chegar em casa agora, ele não queria mais conversar sobre a visita, o que falou ou sentiu. Estava triste e, hoje se sabe, muito frustrado. Nelson não acreditava em médicos ou psicólogos e — esse era outro de seus segredos — nutria uma forte esperança de que a mulher melhorasse. Mesmo que Neusa já não conseguisse falar ou comer sozinha, ele mantinha a esperança intacta.

Em família, Nelson tinha um jeito turrão, mas, algumas vezes, deixara escapar aos três filhos e três netos que o sentimento que o unia à esposa, muitas vezes, assumia a forma de uma forte empatia. “Era um apego muito grande, porque a gente nunca se desgrudava. E isso é bom e é ruim: era bom quando tudo estava bem, mas agora está ruim demais”, ele desabafou a um dos filhos, meses antes de levar a cabo o plano de dar um fim à vida dos dois.

Nelson recordava os tempos em que o problema não era com Neusa. O doente da casa era ele. Aposentou-se em 2002 por não poder suportar as dores na coluna e, desde o princípio, a mulher ficou ao seu lado. Ela o acompanhou em visitas a dezenas de neurologistas, fisioterapeutas, clínicos gerais, massagistas que usavam lama quente… Fez três cirurgias espíritas, mas a fraqueza nos braços e as dores nas costas só aumentavam. Um neurologista diagnosticou-o com suspeita de atrofia muscular progressiva (uma doença genética degenerativa dos músculos) e Nelson então entendeu porque não conseguia mais erguer as peças de automóveis, nem apertar porcas e parafusos na oficina. Ele nunca gostou de consultas médicas, por isso, o diagnóstico e o tratamento pararam ali. Mais tarde, seus filhos pesquisariam na internet e concluiriam, por si sós, que ele era portador da síndrome de Guillain-Barré, uma doença degenerativa do sistema nervoso central. Concluíram também que teria sido despertada por uma vacina para a gripe que Nelson tomou. Foi quando ele adotou o bordão “um dia ainda vou travar todo”, que repetia sempre. “E aí quero ver me carregar para lá e para cá.”

Neusa estava bem de saúde e participou do périplo por consultórios e hospitais. Insistiu para que o marido fizesse a bateria de exames solicitada pelo Hospital São Paulo para confirmar as razões de sua atrofia — a médica que o atendera dissera que havia “indícios” da síndrome, mas que a confirmação levaria alguns meses, pois se tratava de uma doença rara. Ele teria de voltar ao hospital uma vez por semana para testes periódicos de ressonância magnética. Nelson recusou com veemência. “Cobaia eu não vou ser”, disse. A fraqueza aumentou até que ele perdeu a capacidade de erguer o braço esquerdo. Conseguia mexer um pouco e carregar algum peso (uma ou duas sacolas de supermercado), mas não mais do que isso. Foi quando ele ganhou o que chamava de “braço ruim”.

Um dia, em meados de 2010, sentados num corredor de hospital enquanto esperavam uma nova consulta, as coisas se agravaram para o casal — mas, dessa vez, quem piorou foi Neusa. Ela sentiu-se mal, com uma dor forte na região dos rins que a impedia até de se levantar da cadeira. Uma enfermeira suspeitou que fosse infecção urinária e sugeriu que ela fizesse um exame, mas, como Neusa não conseguia urinar, deu-lhe um analgésico e orientou-a a voltar para casa. Foi por pouco tempo. De madrugada, ela sentiu uma dor aguda no mesmo local e teve de ser levada de volta ao hospital, acompanhada dos filhos (Chamam-se Nilson, Nilma e Nelson Junior, sinal de que um dos planos do casal, o de fazer uma família só de nomes com “n”, afinal, dera certo). Nelson e Neusa estavam casados há décadas e enfrentaram juntos muitos problemas. Coisas difíceis, como a morte dos pais, a falta de dinheiro para construir a casa, o início do diabetes de Neusa e as dores musculares de Nelson. Mas nada poderia igualar as dificuldades que viveriam a partir dali.

Neusa estava internada havia uma semana em um hospital por complicações da infecção urinária quando sofreu o primeiro AVC. Haveria sequelas, segundo os médicos.

Como isso pôde acontecer a uma mulher como ela, que sempre demonstrava tanta força e que nunca reclamava de nada? Somente então os familiares atentaram para os baques que Neusa sofrera em anos anteriores. As mortes de um irmão de Nelson, Marino, e logo depois da mulher dele, Joana, ambos próximos da família, foram sem dúvida muito sentidas. Marino e Joana eram presença certa nas reuniões familiares de domingos e feriados, que geralmente se davam no amplo salão de festas do terceiro andar. De fato, eles pensavam agora que as mudanças na dinâmica familiar após as mortes (os Golla deixaram de se reunir com a mesma frequência) nunca foram bem aceitas por Neusa. “Essa foi a primeira machadada na árvore”, como anos mais tarde resumiu o filho Junior. Logo depois, morreu a única irmã de Neusa, Josefa, amiga e confidente, que também tivera um AVC e de quem ela sempre fez questão de cuidar — insistiu para que viesse morar com eles, mas o marido não aceitou. Os filhos lembram da atitude de Neusa no velório da irmã: era madrugada, Nelson a chamou para descansar em casa, e ela, geralmente tão dócil, repeliu-o: “Pode ir, eu vou ficar aqui com minha irmã, do jeito que deveria ter sido nos últimos tempos.”

O diabetes, diagnosticado um tempo antes, era outra fonte de angústia da mãe. Reunidos os indícios, Nilson, Nilma e Nelson Junior agora entendiam as razões pelas quais a mãe andava mais calada. A depressão se avizinhava há tempos, mas agora transformava-se em algo pior. Ao menos, foi dessa forma que viram o que aconteceu à mãe.

“A gente está atrapalhando aqui”.

Com o primeiro AVC, Neusa perdeu parte dos movimentos no lado direito do corpo. Nelson notou uma nova faceta na mulher: a dificuldade em aceitar que recebesse cuidados. Não aceitava cadeira de rodas, muletas, nem mesmo a bengala de quatro pontas. Os netos tentaram convencê-la de que seria até divertido, já que ela poderia acertar com a bengala a cabeça do avô e de quem mais incomodasse, mas não adiantou. Neusa queria caminhar sozinha. Os filhos tanto insistiram que ela até carregava a bengala na mão, mas era quase um enfeite, sem que tocasse com ela no chão.

Nelson solidarizava-se e apoiava as decisões da esposa. Sentia-se revoltado com o que chamava de “injustiça divina” e reclamava sempre que podia daqueles que faziam o mal e saíam ilesos, dos filhos da puta que roubavam e corrompiam e que, no fim das contas, “morriam quentinhos embaixo da coberta.” Enquanto isso, ele e a mulher, que sempre fizeram tudo direito, começavam a passar por aquilo. Nelson olhava para Neusa, que agora sofria para mover-se pela casa, e dizia:

– É, velhinha, a gente está atrapalhando aqui. A gente está incomodando.

Ela não tirava os olhos do chão e mexia a cabeça negativamente. Os filhos tentavam dissuadi-lo:

– Está incomodando nada, pai. Vocês cuidaram da gente, por que a gente não pode cuidar de vocês agora? — rebateu, certa vez, o filho mais velho, Nilson.

Além da culpa que atribuía aos céus, Nelson dirigia sua revolta também para a classe médica. “Todos uns charlatões. A gente vai em tudo que é tipo de médico, eles receitam isso e aquilo e não dá em nada”, dizia. “É só ir ao médico para descobrir alguma doença e morrer. Então, é mais fácil não ir e morrer de uma vez!” Era uma ligação direta, que Nelson fazia com frequência: medicina e morte. O desgosto era antigo. Nelson ressentia-se dos médicos desde muitos anos antes, quando a mãe, também diabética, ficou doente e ninguém nunca conseguiu curá-la, não importasse a quantos hospitais Dona Maria fosse ou quantos doutores a visitassem.

A família relembra um episódio para demonstrar como a doença da mãe deixou marcas em Nelson. Certa vez, ao ouvir de um dentista que teria de arrancar um dente que o incomodava, ele retrucou: “Esse aí está dando problema? Arranca logo todos de uma vez, que aí não preciso voltar nunca mais.” Ele tanto insistiu que foi o que aconteceu. O dentista deu-lhe uma anestesia geral e, quando Nelson acordou, estava feito. Ele tinha pouco mais de 40 anos e já não possuía nenhum dente na boca. Usaria uma prótese pelo resto da vida, mas, pelo menos, não teria de voltar àquele consultório tão cedo. De médicos, clínicas, hospitais — ou simplesmente do sofrimento? — ele queria passar longe.

Agora, quatro anos depois do primeiro AVC e com Neusa internada na Novo Lar, Nelson já se acostumara ao ambiente de sanatório, às enfermeiras ao redor e às consultas com cardiologista, fisioterapeuta, nutricionista. Nas visitas, ele teve de se habituar também às queixas de outros pacientes, que eram geralmente emitidas a esmo, mas que, no curto caminho da entrada da clínica ao quarto da esposa, acabavam chegando até ele. Pediam água, pão com manteiga, algum doce e — isso sempre o entristecia — perguntavam muitas vezes a hora do dia. De que adianta saber as horas de dias que são sempre iguais?

Não havia como não se deprimir em um ambiente como aquele, ainda mais para um homem como Nelson. Ele achava que não valia a pena envelhecer. Muitas vezes ao longo da vida, ao ver um idoso deslocar-se em uma cadeira de rodas (ou mesmo um deficiente físico), ele meneava a cabeça, em sinal de reprovação. Surpreendia os interlocutores ao dizer que eram pessoas “sem serventia, que só ficam sofrendo”. Certa vez, Nelson conduzia seu carro pela orla de Santos quando viu um grupo de aposentados, todos com mais de 60 anos, jogando dominó em uma mesa de praça. Ele comentou com o filho Nilson:

– Velho quando chega aos 50 anos tem que ir para o inferno. Não serve pra mais nada. Se aposentam e ficam por aí, pegando dinheiro do governo.

Já não era novidade que o pai dissesse coisas do tipo, então, Nilson não respondeu. Nelson já pensava assim antes de a mulher ficar doente. Bastava que fosse confrontado com alguma limitação para que soltasse resmungos como “velho só serve pra dar trabalho” e “tem que morrer com 50 anos e fim.” Em uma noite especialmente triste, após voltar da casa de repouso, ele fez o seguinte comentário sobre a situação da mulher:

– Se vocês tiverem a infelicidade de envelhecer, podem ter certeza de que vão piorar cada vez mais. Melhor seria morrer.

Nelson também se amargurava por não conseguir mais levantar peso, nem girar uma chave de fenda, e agora, ao ver a mulher decair também, esbravejava com frequência. Citou o exemplo do campeão de fórmula 1 Michael Schumacher. “Correu, ganhou dinheiro, foi esquiar, caiu, bateu a cabeça na pedra. E agora? O que está acontecendo? Tem gente mamando direto, tem médico ganhando dinheiro, isso é lucro pra alguém. Porque ele vai sofrer cada vez mais. Ele tem muito dinheiro, mas não vai melhorar. No máximo, vai melhorar a vida do outro que está cuidando dele. E, enquanto isso, fica jogado lá.” Ele ainda replicou uma velha máxima sua, que talvez resumisse o que sentia sobre o sofrimento humano: “É uma merda. O cara não está legal, fica sofrendo. Acho que a pessoa tinha que viver o quanto fosse, mas, na hora de morrer, tinha que ser por enfarte fulminante. PAM! O cara morreu. Todo mundo fica com dó, chora e tal. Mas todo mundo ficou feliz porque não viu a pessoa sofrer e porque a pessoa não sofreu, né? É por isso que eu sempre digo: ‘Quem tem um enfarte, ganha na loteria.’ O cara que morre instantaneamente ganha na loteria.”

Diante de suas opiniões peremptórias a respeito da velhice, os filhos se perguntavam como ele trataria Neusa, que se tornava cada dia mais dependente. A ranzinzice do pai piorava a cada dia e os filhos temiam que ele a tratasse com impaciência ou de forma rude. Mas, desde o primeiro AVC, não foi o que aconteceu. Com a doença da esposa, Nelson foi forçado a enfrentar seus medos. Acompanhou de perto o que significa envelhecer.

“Mata-leão”.

Antigamente, Nelson distraía-se antes dos jantares que reuniam a família batendo papo com o anfitrião (com frequência, o Paçoca, irmão de Neusa) ou bebendo um aperitivo. Mas, nos últimos tempos, ele preferia ficar na cozinha, espiando a maneira como a comida era feita. Nelson agora fazia anotações em um caderninho de receitas e arriscava até opinar sobre o ponto do molho, da massa, dos legumes.

Foi um costume que ele adquiriu com a doença de Neusa, quatro anos antes, e espantava quem o conhecia. Na maior parte da vida do casal, Nelson esperou a comida na mesa, sempre preparada pela mulher, de quem exigia pontualidade. Um dia, ao chegar em casa do trabalho e deparar-se com a mesa vazia, fez voar um bule cheio de café, que se espatifou no chão, uma cena que os filhos não esquecem. Mas isso foi uma única vez — depois da qual, diga-se, teve de penar para conquistar o perdão da mulher –, pois Neusa cumpria com sobras as expectativas do marido na cozinha.

A feijoada da mulher era famosa na família (as irmãs de Nelson, que no início a tratavam mal, de repente, enfileiravam-se para aprender a receita) e o mesmo pode-se dizer da lasanha, da carne assada, do arroz à grega, dos salgados de festa. Nelson dava seu salário na mão da mulher (das várias ocupações que teve, como metalúrgico, serralheiro, operário de oficina mecânica e montadora de automóveis) e ela fazia com o dinheiro o que bem entendesse. Cuidar da casa era coisa dela — unicamente dela. Se Neusa não estivesse presente, Nelson talvez preparasse para si um sanduíche frio de pão com queijo e uma xícara de café com leite. Não mais do que isso.

Mas, desde que Neusa retornara à casa após o primeiro AVC, em 2010, ela já não tinha mais disposição nem condições físicas para a cozinha.

Os filhos suspeitam de que foi uma estratégia da mãe. Nelson tinha 70 anos e estava aposentado — já era tempo de aprender a se virar. Ele mal sabia ligar o forno, mas, pela primeira vez na vida, aceitou ajudar a mulher. Neusa explicava, e Nelson, aos poucos, aprendeu algumas receitas. Arroz, feijão, passar um bife — a princípio, o básico. Ele passou a preparar o café da manhã e levá-lo na cama para a mulher. Às vezes, dava a comida na boca dela, usando o braço bom.

Nelson esforçava-se não só porque a amava, mas também porque sentia pena. E, na impressão dos filhos, ao olhar para aquela mulher, uma presença sempre tão forte e que agora caminhava alquebrada, o pai também sentia culpa. Em outros tempos, seu gênio irascível provocou marcas profundas em Neusa. Atormentava-o um episódio em especial que ocorrera no fim da década de 1980, quando a família viveu um período duro: Nelson estourou o menisco do joelho esquerdo jogando futebol de areia e teve de ficar de cama durante seis meses, sem poder trabalhar. Perdeu o emprego na serralheria e a situação apertou. A casa ainda estava pela metade e quem teve de seguir com a obra foi o filho mais velho, Nilson, um adolescente à época. Foi quando ele também estourou as costas, o que o leva ainda hoje a andar meio curvado e a girar constantemente o pescoço para os lados até estalar.

Neusa decidiu, então, buscar uma nova forma de ajudar nas finanças da família: além de cuidar da casa, ela começou a trabalhar como sacoleira, uma ocupação popular no Brasil durante as décadas de 1980 e 1990. Uma vez por mês, ela viajava a Ciudad del Este, no Paraguai, onde comprava roupas, brinquedos e bugigangas eletrônicas para revender nos arredores da Vila Prudente. O filho Nilson, às vezes, a acompanhava. Entre as memórias daquelas viagens, está a fome: como o dinheiro era curto, eles não pediam comida em nenhuma parada nas 16 horas de viagem entre São Paulo e o Paraguai. Também passavam frio, pois vestiam-se mal — de propósito. Assim, poderiam retornar com várias camadas de camisetas, blusas e casacos, roupas que depois revenderiam.

Imagens e edição: Dirceu Neto

Nelson sempre admirara na mulher a capacidade de oferecer sem acanhamento os seus produtos (os que revendia e as roupas que ela costurava). Neusa interpelava as visitas com naturalidade: “Você não está precisando de um novo perfume ou pra presentear alguém? E de uma calça Fiorucci?” Era uma qualidade que Nelson não tinha. Ele “não tinha saco para isso” e só oferecia produtos se alguém manifestasse necessidade. Após alguns meses, eles fizeram as contas e notaram que as viagens sempre se pagavam. Com o marido impossibilitado de trabalhar, Neusa decidiu expandir os negócios. Passou a vender pijamas e camisolas pelo bairro. Comprava as vestes nas lojas atacadistas no Ipiranga, um bairro vizinho, sentava à máquina de costura para deixá-las mais bonitas e depois percorria as casas das redondezas com a filha, Nilma, que servia de modelo para a mãe. O talento de vendedora de Neusa rendeu boa clientela às novas empreendedoras. Nilma aprendeu a dirigir, assim poderia conduzir o Fusca azul da família até outros bairros. Com o dinheiro de Neusa e o seguro-desemprego de Nelson, eles venceram as dificuldades financeiras e até conseguiram terminar de construir o terceiro andar do sobrado da família, que está lá até hoje, em frente ao clube-escola da Vila Alpina, o parque onde Nelson costumava passear.

Ao vê-la desdobrar-se entre casa, filhos e trabalho, Nelson reconhecia em Neusa a garota firme com quem casara, uma mulher que “andava à frente”. O carro-chefe. Enquanto ele esteve fora de combate, foi a esposa quem negociou com fornecedores os últimos sacos de areia, cimento e tijolos para os últimos retoques na obra da casa. Assim que Nelson voltou a trabalhar (dessa vez, em uma fábrica de torneiras), Neusa tomou a iniciativa de abrir a primeira conta bancária da família — isso já com mais de dez anos de casados, nos idos da década de 1980. Até então, o dinheiro que haviam conseguido era pouco e eles não sentiram essa necessidade. Como as finanças da casa eram sua responsabilidade, Neusa movimentava a conta com mais frequência. Ela estudou apenas até o segundo ano do primário, mas levava jeito com os números e, ao fim de cada semana, sabia de memória até os centavos que haviam entrado e saído dos fundos familiares. Em certo momento, Neusa pensou no futuro e começou a guardar dinheiro para pagar a aposentadoria para ela e o esposo. Os filhos estavam quase criados, era hora de se pensar nos anos de mais calma que viriam.

Não contou nada a Nelson, pois sabia de suas opiniões sobre aposentados: ela presenciara vários dos arroubos radicais do marido. Como iria reagir se soubesse que ela guardava as moedas suadas para um momento tão inútil da existência quanto a velhice? Nelson nem percebeu — além do trabalho que o absorvia, dedicava tempo substancial ao bar do Laerte, na esquina de casa. Com o dinheirinho guardado, Neusa planejava um futuro tranquilo, talvez de viagens pelo Brasil. Sonhava em viajar ao Nordeste, talvez pudessem até visitar Pesqueira, sua cidade natal em Pernambuco, de onde viera ainda criança, aos 12 anos.

O lazer naqueles tempos era escasso. Saíam pouco, visitavam amigos e parentes dos arredores da Vila Prudente ou faziam as habituais viagens curtas à praia — geralmente, até a casa de Marino, em Santos — ou até Presidente Prudente, a 600 quilômetros de São Paulo, onde vivia outro irmão, Olívio. Resumia-se a isso. Compensavam os poucos passeios com reuniões da família em casa. Era Neusa quem convidava, assim como era Neusa quem mantinha acesas as amizades do casal. Quando não podiam sair, ela telefonava para bater papo, e demonstrava vivo interesse em escutar novidades e problemas. A mulher miúda e com jeito tímido tornou-se o centro da vida social do casal. Nelson, que oscilava entre seu jeito expansivo e uma rabugice que se acentuava, até conversava um pouco com um ou outro, mas não tinha paciência para falar ao telefone. Gravitava em torno das iniciativas da mulher.

Não era à toa que Nelson se sentia deprimido depois de internar a mulher na casa de repouso. Nenhum dos Golla tomava grandes decisões sem escutá-la. Nilma dizia que se sentia como uma marionete nas mãos da mãe: quando percebia, fizera o que ela queria. Foi assim na hora de batizar o filho, Giovanni, cujo nome foi escolhido pela avó. Na interpretação do filho Nilson, embora a admirasse, Nelson tinha dificuldades para admitir a presença forte da mulher. Ele, então, torcia a realidade e convencia-se de que os méritos eram seus. Quando Neusa abriu uma conta no banco, por exemplo, Nelson argumentou que isso se devia unicamente ao fato de ele conhecer o gerente. Se ele conseguia um novo emprego, mesmo que fosse por iniciativa da mulher, jamais admitiria. Afinal, ele era o homem da casa. Neusa não discutia. Deixá-lo com sua versão dos acontecimentos também fazia parte de seu jeito de manejar o marido.

Nelson viveu dois problemas quando foi internado para operar o joelho esquerdo, que machucara jogando futebol de areia em Santos. O primeiro foi na sala de operações, quando os médicos se enganaram e prepararam a perna errada — a direita — para a cirurgia. Mesmo que já tivesse sido dopado, ele notou a montagem dos equipamentos ao lado da perna sadia e teve lucidez suficiente para dizer, antes de apagar:

– Escuta, o que vocês estão fazendo aí? A perna que eu machuquei foi a outra!

– Como assim, a outra? — retrucou um médico, e imediatamente baixou os olhos para o prontuário — Ah, sim, estávamos só dando uma olhada, mas não é nada disso — prosseguiu, antes de fazer sinal para que a equipe mudasse os equipamentos de lado.

– Pô, mas vocês rasparam a minha perna, estava todo mundo de um lado, com o bisturi e tudo…

O ato seguinte foi a vinda do anestesista e aí, “pumba!”, como Nelson costumava relatar. Ao despertar na sala de recuperação, ele notou, com alívio, que a perna operada fora a correta. O fato, entretanto, não passaria batido. Seria usado pelo resto da vida como argumento para comprovar as irresponsabilidades da medicina. “Ia acabar com os dois joelhos ruins, se fosse pelos médicos. Eles só estão ali pela grana”, dizia.

Aconteceu ainda um segundo problema nessa ocasião, durante a noite que Nelson passou no hospital, recuperando-se da cirurgia. Se a quase operação na perna errada ele contava em tom jocoso, o segundo acontecimento era narrado com tom de voz baixo e solene. Havia um senhor de idade no quarto de hospital ocupado por Nelson após a operação. O idoso reclamava, chiava, grunhia, chorava. Parecia sentir dor. Durante toda a tarde, Nelson convocou os enfermeiros:

– Olha, o velhinho tá passando mal, não para de reclamar.

– Ele é assim mesmo, fica tranquilo — lhe disseram.

Após chamar os enfermeiros várias vezes, Nelson desistiu e aceitou que não havia maneira de silenciar as queixas. Um enfermeiro apareceu no início da noite e anunciou, finalmente, que daria um calmante ao idoso. Antes, colocaria um biombo entre as camas, para que Nelson pudesse “dormir sossegado”.

De madrugada, Nelson despertou com um barulho estranho, um remexer no leito contíguo, e ficou inquieto. Quando tudo ficou mais calmo, ele puxou o biombo para espiar. Deparou-se com o velhinho agora bem quieto e com os olhos vidrados. Nelson aguçou o ouvido e notou que dali não saía mais barulho algum. Segundo o relato que costumava contar, pensou: “Puuuta merda, vou fingir que não sei de nada, não vou nem me mexer aqui”. Estava cansado, ainda meio dopado e pegou no sono.

No dia seguinte, um enfermeiro fez uma pergunta que considerou esquisita:

– Tudo bem com o senhor? E o velhinho lá, o senhor viu alguma coisa?

– Eu, não. Ver o quê? Morreu?

– É, morreu.

– Poxa vida, morreu!

No fim do dia, Nelson recebeu alta e, no caminho para casa, contou a história ao filho mais velho. Nelson falava em contatar para a família do idoso da cama ao lado, pois tinha certeza de que haviam dado a ele algo mais que um calmante. “Deram um mata-leão no velhinho e ele não acordou nunca mais”, dissera. Mas, depois de refletir um pouco, desistiu de levar a história adiante. Não queria se envolver naquilo, pois não podia provar nada, justificou aos filhos. Nelson costumava relatar esse episódio se perguntassem sua opinião sobre parentes ou conhecidos seus que eventualmente desenvolvessem algum tipo de doença grave.

“Vamos ver”.

Nelson era ciumento e não deixava que Neusa usasse certos tipos de roupa. Não deixava que usasse brincos. Não deixava usar batom, nem maquiagem. Não admitia que a maior parte do dinheiro da casa viesse do trabalho dela. Era o típico “machão” — ou, pelo menos, foi assim que os filhos descreveram o pai.

Desde bem jovem, o conceito de que deveria haver um “provedor da casa” fora inculcado nele. E essa figura só poderia ser masculina. Quando o negócio das camisolas, por exemplo, estava indo tão bem que os lucros superavam e muito o seguro-desemprego de Nelson, ele não teve dúvidas: deu um jeito de terminar com aquilo. Era esse o episódio que agora, com Neusa internada na clínica sem poder sequer beber um copo d’água sozinha, o atormentava e fazia com que sentisse culpa.

Começou com uma discussão boba, naqueles fins da década de 1980. Nelson insistia que as últimas obras na casa (as que a deixaram como está hoje, embora ele nunca a tenha dado como totalmente finalizada) foram feitas com o dinheiro que ele recebera, primeiro, nos trabalhos que exercera ao longo dos anos e, depois, com o seguro-desemprego. Neusa disse ao marido que o dinheiro dela, com a revenda de produtos do Paraguai e das camisolas, também contribuíra. Nelson não gostou e a forma que encontrou para encerrar a discussão foi tentar limitar as vezes que a mulher — àquela altura uma vendedora conhecida na Vila Prudente e arredores — saía para buscar clientela.

Ele passou a solicitar tanta atenção que a esposa notou suas intenções: era só para mantê-la em casa. Neusa reagiu — pediu para deixá-la seguir com as vendas, pois era graças a elas que estava entrando dinheiro em casa. Era Neusa quem fazia as contas e sabia do que falava. Isso feriu o orgulho de Nelson. Ele insistiu que era dinheiro do seguro-desemprego e, homem impulsivo que era, explodiu.

– Vamos ver se você vende mais dessa merda aí ou se sou eu que estou dando um jeito.

O fusquinha azul em que Neusa e filha circulavam já era famoso entre os moradores das redondezas. A dupla via o negócio prosperar e podia muito bem abrir uma confecção especializada em pijamas e roupas íntimas, que elas compravam em atacadões e posteriormente embelezavam com a máquina de costura de Neusa. Mas, por enquanto, elas ainda dependiam do carro para adquirir as peças, e foi aí que Nelson atacou. Vendeu o veículo sem consultar a esposa ou quem quer que fosse.

– Vamos ver se agora vão conseguir continuar vendendo.

O fusca azul (a família não esquece a chapa: CNH 4051) havia sido comprado por Nelson e nada o impedia de revendê-lo — assim, o dinheiro que entrava na casa era dele. Do jeito que aprendera e do jeito que havia de ser. O negócio de Neusa acabou e ela jamais se esqueceu disso.

Durante um mês, a mulher não falou com ele, e só não foi embora porque… Ninguém da família soube explicar por que ela não foi embora. Talvez, porque ela já tivesse ultrapassado os 50 anos, tivesse sempre vivido com Nelson e, àquela altura, não quisesse recomeçar. Talvez, porque o amasse de todo modo e quem é que explica isso? O fato é que Neusa resignou-se mais uma vez e, embora ainda fizesse atividades-extra para complementar a renda e, às vezes, aceitasse trabalhos de costura, não mais procurou serviços que prejudicassem os afazeres domésticos.

Ilustração: Pedro Matallo.

ATO 4

“Pra isso a idade serve”.

Muitos anos depois, com o adoecimento da esposa após o primeiro AVC, Nelson se angustiava lembrando de atitudes como essa. Ele observava a esposa caminhar com passos miúdos pela casa, sentar-se à poltrona na frente da TV e ali ficar. Vê-la assim o deixava aflito. Na opinião dos filhos, foi por isso que ele passou a ajudar nas tarefas de casa. Fizera cobranças severas à mulher e, em muitos momentos, tratou-a com rudeza — isso agora o assombrava.

Nelson tentava compensar na cozinha. Preferia usar a panela de pressão, pois exigia menos do seu braço ruim. Os cunhados se surpreendiam, as irmãs achavam estranho. Nelson ia ao mercado, fazia as compras do dia (só as do dia, o que aguentava carregar) e depois dedicava-se a aprender. Seguia orientações de um nutricionista. Triturava cascas de maracujá e colocava uma porção dentro do café que ele e a mulher beberiam, pois isso era bom para o diabetes. Conhecia os gostos de Neusa e, portanto, carne vermelha tinha sempre. “Não vou ficar dando só sopinha pra ela, não é isso que vai fazer com que sua mãe melhore. Tem de ser uma alimentação forte”, dizia Nelson aos filhos. O médico havia dito que era melhor evitar alimentos gordurosos, por causa do colesterol, e Nelson aceitava apenas em termos. “Você perguntou para o médico se água pode beber?”, reclamava.

Desde que Nelson começou a ajudar a mulher, os filhos notaram que o casal se reaproximara. Havia no ar, geralmente antes e depois das refeições, uma cumplicidade que não lembravam de ter flagrado antes. Nelson fazia cafuné na esposa e beijava-lhe a testa e a pele fina do rosto. A empatia entre os dois crescia — ou, mais corretamente, estava de volta. “Pelo menos pra isso a idade serve. Não temos mais nada pra fazer, então, ficamos aqui juntos”, disse Nelson, certa vez.

Nelson também tentava melhorar o ambiente em casa e, para isso, pregava peças na mulher e nos filhos. Às vezes, comprava estalos de festa junina e atirava no chão para assustar quem estivesse por ali — geralmente, a mulher ou a Luciana, namorada do filho Junior, que vivia com eles. Comprava também uns rojões semelhantes ao que o pessoal estourava no parque da frente nos finais de semana. Quando a família menos esperava, no meio da tarde, BUM! Luciana e Neusa saltavam das cadeiras e gritavam para que Nelson parasse. “Calma, gente, é só um estalinho”, ele berrava da varanda do primeiro andar, onde acomodava-se em uma cadeira de praia para passar o tempo. Nelson sempre gostou de pregar peças, desde adolescente, nos tempos em que ainda havia bosques na Vila Prudente, onde ele se escondia e assustava quem passasse na rua. Lá na Rua Torquato Tasso todos sabiam de como Nelson era irrequieto. Essa característica antiga dele, pelo visto, reaparecia agora na velhice.

A dedicação de Nelson em ajudar nos afazeres domésticos e em criar um ambiente agradável em casa retornou à sua memória em uma outra fase da vida, mais triste. Lembrava-se muito disso quando Neusa piorou de vez na Novo Lar, quando a língua da mulher atrofiou e ela teve de receber a sonda na narina esquerda. Foi instalada numa tarde de agosto de 2014, no Hospital Sancta Maggiore, no bairro da Mooca, também na zona leste de São Paulo, e Nelson sentiu o baque. Os filhos notaram que o primeiro impacto foi na frequência das visitas. No início, antes da sonda, ele permanecia duas, três horas por dia ao lado do leito da mulher, mas agora mal podia aguentar 15 minutos. Para o diabo com o aparelho que entrava pelo nariz e atravessava as entranhas da esposa, para o diabo com aquela sonda, que o impedia de dar a ela comida e bebida na boca. Aquilo só a fazia sofrer.

Nem mesmo falar Neusa podia. E logo ela, que gostava de ficar ao telefone, de saber das novidades da família. “Para o inferno isso aí!”, esbravejou Nelson aos filhos. Agora, ela não pode nem manifestar o que quer, se está com fome, sede ou se quer saber de alguma coisa, se tem dúvida ou alguma curiosidade. Aquela sonda era o fim. Nelson se esforçou muito nos anos anteriores para mudar posturas que pareciam petrificadas ao longo da vida. Mas aquilo era demais. Como ele disse dias depois que o aparato fora instalado na mulher: “Aquela sonda me matou”.

Com frequência, Nelson chorava no caminho de volta à casa, enquanto conduzia o Celta vermelho da família. Recordava dos pedidos da esposa a ele e aos filhos, quando ainda podia falar. “Me leva para casa”, dizia Neusa. “Não aguento mais ficar aqui.” Eles tinham de ignorar. Aquilo também o “matava”, como ele dizia. “Sua mãe quer ir embora, coitada… O que a gente faz?”, perguntava aos filhos. Ele ficava desesperado porque era um pedido recorrente. “Pega uma enfermeira, paga, leva lá pra casa…”, ela pedia. “Já tentamos, Neusa, não tem como levar pra casa, tem que ter enfermeira 24 horas e a gente não tem condições. Aqui, você tem três enfermeiras que se revezam, de noite, de manhã, de tarde”, ele dizia. “Eu não posso pagar nem uma, como é que vou pagar três? Não tem jeito, Neusa.”

O quarto onde Neusa passou seus últimos meses de vida. Imagem: Dirceu Neto.

Mas agora ela já não falava mais nada. Permanecia deitada no quarto de número 03 e fitava o marido com um olhar triste. “Ela só ficava olhando para ele o tempo todo, era só o que fazia nas visitas nesses tempos”, disse-me a enfermeira Luciane Teodoro, dona da casa de repouso Novo Lar, relembrando o que testemunhou naqueles dias.

“Aproveitamos é nada”.

Ao observar a situação de Neusa agora, Nelson questionava muitas posições que assumiu na vida. Ele sempre defendeu aos filhos que trabalhassem o máximo possível, de manhã, tarde, noite, aos sábados, domingos, feriados. O espelho era ele próprio. Jornadas duplas ou triplas na empresa em que estivesse, em horas-extras e na construção da casa. O interminável bater de martelo, o carregar de sacos de cimento, o empurrar de carrinhos de mão repletos de tijolos, trabalho pesado que durou 30 anos e que arrebentou a coluna de duas pessoas. Mas, enquanto o corpo aguenta, por que não continuar? “Trabalhem tudo o que puderem pra juntar dinheiro. Depois, quando vocês estiverem velhos, estarão sossegados”, ele costumava dizer. Neusa concordava com o marido e acreditava que o momento de descansar ainda viria. “Quando a gente ficar velhinhos juntos”, ela dizia, “vai ser a hora de aproveitar.” Pois a velhice havia chegado e agora Nelson lamentava. “Podíamos descansar, mas cadê a mulher? E esse meu braço e minhas costas? Nós não aproveitamos é nada!”

Para tentar se confortar, ele refletia que, sim, eles aproveitaram — um pouco. Tiveram cinco anos de descanso, nos seus cálculos. Foram os anos anteriores ao primeiro AVC, quando adquiriram o hábito de fazer pelo menos uma viagem por semestre. Foi um tempo bom. Os filhos incentivavam e os passeios do casal se tornaram rotina. Era para viver aqueles momentos, afinal, que tanto trabalharam. A casa estava praticamente pronta. Nelson já se aposentara e deixara para os filhos uma oficina mecânica — especializada no conserto de eixos cardan (peça que transmite a tração do motor às rodas do veículo). Nilson e Junior agora tocavam o negócio. Nilma estava bem, terminara o magistério e dava aulas de português para crianças até a quarta série em uma escola estadual do bairro. Ela já estava casada. Nelson e Neusa podiam aproveitar.

Dias antes dos passeios, Neusa já tinha as malas prontas. Nelson também ficava satisfeito. Ele não admitia, inventava alguma implicância, queria fazer parecer que aceitava passear a contragosto. Apenas mais uma de suas birras, que Neusa ignorava, pois conhecia o marido. Inscreveram-se em uma agência de viagens em um bairro vizinho, na Vila Zelina, que telefonava para oferecer excursões.

Foram três vezes a Caldas Novas, em Goiás, onde ficaram hospedados em uma estância termal e fizeram caminhadas na natureza. Foram a Conservatória, no Rio de Janeiro, perto de Volta Redonda, onde visitaram o museu do cantor Vicente Celestino, um dos ídolos de Neusa na juventude. Foram a Atibaia, ficaram em um hotel fazenda e fizeram turismo rural. Nessas viagens, Neusa viu se acentuar uma faceta curiosa do marido. Era um homem afável com estranhos e, muitas vezes, fazia amizades nos hotéis em que se hospedavam. Passavam três, quatro dias passeando com um casal de novos amigos e trocavam intimidades. Almoçavam e jantavam juntos, batiam papo. Mas, ao chegar a hora de ir embora, Nelson acordava mais cedo, se trancava no quarto, fugia do alcance dessas pessoas — como ele dizia, “se tornava inimigo” delas. Tudo para não ter de se despedir dos novos conhecidos. Bastava que Nelson criasse intimidade (por menor que fosse) para se emocionar a cada vez que partia. Era uma “manteiga derretida”, como diziam os netos. Nas visitas ao irmão Olívio, em Presidente Prudente, ele ficava apenas um fim de semana e, mesmo sabendo que voltaria dali a algumas semanas, não conseguia se despedir.

Nelson e Neusa, em uma das viagens que fizeram a Caldas Novas (GO). Arquivo da família.

Tinha dificuldades para lidar com as emoções. No casamento do filho Nilson, na igreja da Vila Prudente, nem quis entrar na igreja. Ficou do lado de fora fumando (ele ainda fumava), tentando dissipar a comoção. Os netos notavam que um único dia na companhia de alguém querido era suficiente para que, no fim da visita, o avô se esquivasse. “Ele não aguentava. Você olhava para a cara dele e ele saía de perto. Era sempre assim”, disse-me o neto Giovanni Golla, em um bar de esquina na Vila Carrão, perto de onde ele trabalha, na zona leste de São Paulo. “Por trás daquela pose de machão, o vô sempre foi um chorão.”

Nelson levou algum tempo para se acostumar (principalmente para se permitir gastar dinheiro com isso), mas logo pegou gosto pelas viagens com a esposa. Eram todas pagas com sua aposentadoria — ele agora agradecia à mulher por ter providenciado a reserva. Neusa era boa em organizar a vida de Nelson. Foi o dinheiro extra que proporcionou a primeira e única viagem de avião do casal. O cunhado Paçoca propôs um passeio a Pernambuco, de onde a mãe dele e de Neusa havia saído com os filhos. Fazia mais de 40 anos que Neusa viera para São Paulo e jamais retornara a Pesqueira. Ela ficou radiante com o convite e ficou mais feliz ainda quando Nelson aceitou. Ele pensava na viagem de avião. Morria de medo, mas o que poderia dar errado? Rezaria antes e durante a viagem, e sairia tudo bem.

Ficaram 15 dias em Pernambuco. O álbum de fotos que a filha Nilma guarda em seu apartamento na Vila Ema, a três quilômetros da casa dos pais, mostra uma típica viagem de retorno, em que visitaram pontos turísticos e velhos lugares da memória familiar. Neusa reviu o clube onde deu os primeiros passos de dança, a igreja onde foi batizada, num bairro chamado Aldeia Velha, a primeira casa onde morou com a família e a fábrica de doces onde fizera alguns bicos. Visitaram o cemitério onde estava enterrado o pai de Neusa, que se chamava Antonio, e morreu quando ela era pequena. Nelson quis bater uma foto com o pároco local — naquela época, ainda se respeitavam os religiosos. Vê-se também Nelson na cabine do avião, com o sorriso bonachão que puxa para a esquerda e uns óculos de aviador comprados para a ocasião. Ele gostou tanto que, ao voltar, passou a dizer que, “se pudesse, ia de avião até à feira”.

Não era hora de Neusa ficar tão mal. Quando começou a piorar, após o primeiro AVC, era Nelson quem a instigava a viajar. Ele arrependia-se das vezes que negara, por não querer gastar dinheiro, por preguiça ou por birra. “Você não queria viajar? Então vamos! Eu quero também!” Mas ela já não tinha disposição. Ficava longas horas sentada na “poltrona do papai” — um presente do filho Nilson que acabou sendo usado principalmente por Neusa –, assistia à TV e caminhava o menos possível.

Neusa não aceitava usar andador, nem bengala e, um dia, a situação se complicou. Nelson lavava louça na cozinha quando escutou um estrondo. Foi até a sala o mais rápido que pôde e viu a mulher no chão, gemendo. Neusa perdera o equilíbrio no caminho entre o banheiro e a poltrona e tentou se apoiar na mesa da sala. Sua mão esquerda escapou e ela caiu. Nelson agachou-se ao lado da mulher e tentou levantá-la, mas — maldito braço — não conseguiu. Gritou pelos filhos, que subiram aos pulos a escada da oficina para acudir a mãe. Ergueram-na e a puseram-na sentada na poltrona.

Não tiveram paciência para esperar a ambulância e levaram-na escada abaixo sentada na própria cadeira. Neusa gemia de dor enquanto o carro sacolejava de hospital em hospital, pois não havia vagas. As ruas esburacadas da região não ajudavam. Finalmente, encontraram um leito no Albert Sabin, em São Caetano, onde os médicos diagnosticaram fratura do úmero e da patela. Havia quebrado o ombro e o joelho esquerdos. Neusa reclamava muito de dor e Nelson não conseguia permanecer ao lado dela no quarto coletivo onde a haviam colocado. Os filhos espantavam-se. Foi a primeira vez que viram a mãe totalmente entregue. “Foi estranho ver uma mulher forte como ela assim, como se dissesse: ‘vão, façam o que quiserem fazer comigo, podem fazer’”, disse-me Nilson, quando o encontrei em uma lanchonete na Vila Prudente e pedi que relembrasse o que havia acontecido com os pais. Nelson fazia alguma graça para tentar animá-la, mas logo virava o rosto, emocionado, e deixava o quarto. Não falava com os médicos.

Neusa fez duas cirurgias para colocar pinos e uma placa de titânio no joelho e no ombro, e passou 20 dias internada no Hospital Ipiranga. Nelson não foi visitá-la. Era algo provisório, ela logo voltaria para casa, não tinha porque impregnar-se de cheiro de hospital. Não via razão para ir até lá só para ver a mulher acamada. Os filhos visitariam a mãe e, logo que ela voltasse e melhorasse, estaria novamente junto dele, em casa.

Dias antes da alta, os filhos ouviram de um médico que a recuperação não era simples e que Neusa precisaria de muitas sessões de fisioterapia para continuar caminhando. Nilson, Nilma e Junior anteviram um problema: já fazia mais de um ano desde que a mãe tivera o primeiro AVC e, em casa, ela quase não fazia os exercícios recomendados. Dizia que não precisava daquilo. Nelson tampouco insistia — acreditava que bastava alimentar-se bem e tudo melhoraria. O médico prosseguiu no diagnóstico e relatou que ela precisaria de cuidado integral de enfermaria: teria de usar fralda geriátrica, por exemplo, e não conseguiria mais tomar banho sozinha.

Aquele primeiro ano com a mãe debilitada em casa já foi difícil e os filhos estavam cansados. Eram os idos de 2012. Optaram por interná-la em uma casa de repouso até que ela se recuperasse. O médico previu três meses de recuperação, apenas. Eles tinham dinheiro para aquilo e pareceu-lhes uma boa solução. Nilson e sua mulher, Magali, se informaram pelas redondezas e souberam de um local chamado Raio de Sol, em São Caetano, distante nove quilômetros da casa da família. Tinha boa área verde, piscina, sala de fisioterapia. Oferecia atividades culturais, visitas médicas regulares, quarto com apenas um ou dois outros ocupantes. A Raio de Sol aceitava visitas diárias para familiares — isso não seria problema. Nilson apresentou a sugestão aos pais e o drama cresceu. Ao confrontar-se com a ideia de ser internada, o vigor voltou às opiniões de Neusa.

– Vocês vão me levar para um asilo? Isso é coisa pra louco. Não quero ir para asilo, vocês vão me largar lá! Vão me abandonar.

Nelson não quis participar da discussão. Ao relembrar a história tempos depois, Nilson disse acreditar que a mãe deixou-se convencer quando os filhos falaram que não era asilo, mas, sim, uma “clínica de enfermagem”. Ele acredita ter sido a única opção possível, já que “ninguém podia deixar o trabalho” e “afundaria a família mantê-la em casa com um cuidador 24 horas”. “Então, usamos a razão: não podíamos manter a mamãe dentro de casa simplesmente por paixão, por querer que ela ficasse”, disse-me Nilson. “O melhor para ela naquele momento era se recuperar numa clínica, onde teria todo o cuidado, o tempo todo. E era para ter sido por apenas três meses.”

“Apague essas luzes”.

Criou-se aí um novo hábito na vida de Nelson: as visitas diárias à esposa. No início, ele reagiu mal. Acostumar-se com um ambiente daqueles seria difícil para um homem como Nelson, isso levaria algum tempo. Ele imaginava o lugar como via em novelas na TV — um local ordeiro, idosos caminhando pensativos no campo, outros, jogando cartas ou xadrez. A realidade era mais diversa: havia quem jogasse damas e dominó, mas também havia os gritos, as queixas, havia homens que circulavam falando sozinhos. Um dia, Nelson encerrou a visita um pouco antes. Voltou para casa furioso.

– Vocês erraram, Nilson! Só tem louco ali, gente largada, gritando AAAH, AAAH, que que é isso? Vocês erraram!

Neusa também tinha dificuldades em aceitar a nova condição. “Eu estou numa casa de loucos”, ela dizia aos filhos. Eles perceberam que a depressão voltava a se manifestar com força. Neusa não tinha impedimentos físicos, mas, cada vez mais, comia e caminhava pouco.

Diariamente, por volta das quatro da tarde, Nelson dirigia até São Caetano para visitá-la na Raio de Sol. Ficava até três horas por dia na clínica e costumava levar alguma surpresa, numa tentativa de alegrar a mulher. Milho-verde cozido, salgados de padaria, chocolates e caramelos — sempre dietéticos, por causa do diabetes. Como Nelson passava bastante tempo na clínica, as enfermeiras advertiram a família: ele tratava a mulher com excesso de zelo, era preciso cuidado para que ela não se tornasse dependente dos cuidados do marido.

Nelson dava-lhe comida na boca (as enfermeiras diziam que não precisava) e não insistia para que ela se exercitasse, se não quisesse. Como a vontade de se movimentar só diminuía, Neusa acabava ficando ali mesmo, sentada ou deitada. Já haviam se passado mais de três meses, o joelho e o ombro cicatrizaram, mas o ânimo não melhorava. Para as enfermeiras, os cuidados de Nelson, ainda que com a melhor das intenções, deixavam a mãe “preguiçosa”, como elas disseram aos filhos. Nelson recebeu advertências de que não desse comida na boca da mulher, mas isso não impediu que ele continuasse — disse aos filhos e às enfermeiras que sabia como tomar conta da mulher com quem era casado há mais de 40 anos, que ela queria assim e que, por isso, continuaria fazendo suas vontades. Fazia tudo aquilo para ajudá-la, nada mais, e que os deixassem em paz, segundo disse aos filhos.

Nos finais de semana, a família tirava Neusa da clínica. O passeio mais comum era no carro, sem que precisassem sair do Celta vermelho. Nelson dirigia, a esposa sentava ao seu lado e no banco traseiro iam os netos Giovanni e Bruno. Na lembrança dos rapazes, a avó sorria bastante e passava o tempo com o rosto grudado no vidro, olhando para fora. Giovanni criou uma tradição para animar a avó nesses passeios. Assim que ela embicasse na saída da clínica, caminhando com dificuldade e sempre com o avô do lado segurando-lhe o braço, o neto começava a entoar uma música funk que estava na moda naquele ano: “Ela não anda, ela desfila, ela é top, é capa de revista!” Neusa aproximava-se do carro já rindo e recebia abraços e beijos dos netos que ela ajudara a criar e que agora a ultrapassavam em altura um bom bocado. “Para, Giovanni! Para, Bruno! Já falei que essa música me deixa com vergonha!”

Neusa pedia sempre que “pegassem estrada”, que deixassem a capital paulista e se dirigissem às rodovias que levam ao interior do estado. “Por que isso, Neusa?”, Nelson perguntou certa vez. “Me lembra as viagens que fizemos”, respondia a mulher.

Nelson conduzia até a Rodovia Fernão Dias, que liga São Paulo ao estado vizinho, Minas Gerais, e, depois de 40 minutos de estrada, invariavelmente, faziam uma parada no Rancho da Pamonha, rede de restaurantes de beira de estrada muito presente em rodovias da região sudeste do Brasil. Havia produtos artesanais, bons sanduíches e um restaurante. O lugar trazia boas memórias: era onde Nelson e Neusa levavam os netos quando recebiam o pagamento nos tempos em que faziam figuração em novelas e minisséries de TV — uma “mania”, como Nelson chamava, “que veio e foi na nossa vida”. Agora, eles passavam algumas horas ali, antes de levar Neusa de volta à Raio de Sol. Antes de partirem, Nelson comprava um coco verde, para que a mulher pudesse beber água direto do fruto, de canudinho. Ele sabia que essa era uma das bebidas preferidas da mulher. Nelson comprava ainda um segundo coco pra viagem, para que Neusa bebesse mais tarde na clínica, quando sentisse sede.

Não foi fácil o retorno de Neusa para casa. A previsão dos médicos era que ela voltasse caminhando dentro de três meses, mas oito meses se passaram até que ela subisse novamente as escadas do sobrado. Venceu os degraus devagarinho, amparada pelos filhos. A decisão de trazê-la de volta se deu por duas razões: ela pedia insistentemente, e as enfermeiras da Raio de Sol começaram a dizer que, na clínica, com tantos cuidados em volta, Neusa ficaria sempre dependente. Seu problema era mais psicológico do que com sua forma física, e bastava que tratasse a depressão, rodeada daqueles que a amam, para que ela melhorasse.

Enquanto ela ainda estava internada na clínica, um médico a examinou e insistiu:

– Mas a senhora já operou há meses. O que está fazendo na cadeira de rodas?

Neusa permaneceu calada.

– Por que a senhora não está se mexendo? Já era para estar andando.

– É porque dói.

– Se continuar desse jeito aí a senhora vai morrer na cadeira de rodas. Olhei seus exames, está tudo certo. A senhora não tem nada.

Neusa continuou olhando para o chão, quieta. O filho Nilson, que a acompanhava, ralhou com o médico por causa dos modos grosseiros e saiu dali. Deveria estar de mau humor para tratá-la daquele jeito, só podia. Mas, depois, em casa, refletiu e deu razão ao doutor. Se as enfermeiras diziam que o problema era a depressão e um médico analisara os exames e dissera que estava tudo em ordem, não havia por que duvidar. Encontraram uma cuidadora (R$ 1.500 por mês, mais barato do que a clínica) e decidiram tirá-la da Raio de Sol.

Nelson ficou satisfeito com a notícia de que a mulher voltaria à casa. Acreditou que Neusa em breve estaria curada do que quer que tivesse. Ficaria o tempo todo junto dela e, dentro de pouco tempo, ela voltaria a ser a Neusa de sempre.

Aconteceu justamente o contrário. Neusa voltou para casa, mas caminhava ainda menos — e sempre amparada pela cuidadora, pelo marido ou pelos filhos, nunca com a bengala ou o andador — e agora nem mesmo a poltrona do papai servia. Queria ficar deitada na cama o dia inteiro, assim como era na casa de repouso. Mesmo que a dieta preparada por Nelson fosse “forte”, como ele dizia, ela emagreceu muito e os netos se acostumaram a ver a avó como uma senhora frágil, bem diferente daquela vovó robusta que ajudou a cria-los.

Nilson dedicou-se a investigar as causas da decaída da mãe. Levou-a a psicólogos, psiquiatras e neurologistas (foram pelo menos quatro profissionais, segundo ele me disse, depois de tudo) e conseguiu uma gorda receita medicamentosa. Além dos remédios para diabetes e para pressão alta, Neusa passou a tomar um suplemento de cálcio, um relaxante muscular para as dores e Rivotril para a depressão. Para dormir, ela tomava Flunitrazepam, poderoso calmante que ficou conhecido no Brasil por sua utilização em golpes chamados de “Boa Noite, Cinderela” (em que a vítima do crime é colocada para dormir com esse remédio). O médico indicou no máximo quatro gotas do calmante, mas Neusa tomava oito e, ainda assim, tinha dificuldades para pegar no sono. Queixava-se de tudo: dores, claridade, barulho.

Neusa passava a maior parte do dia e da noite no quarto. Nelson, a essa altura, já não sabia o que fazer. Sentia-se útil, porque a mulher — que começava a ter dificuldades para falar –, muitas vezes, só se acalmava na sua presença. Pedia para o marido colocar música e Nelson já sabia quais CDs ela queria ouvir: ou a coletânea de canções do padre Marcelo Rossi ou o CD caseiro produzido por amigos da Igreja São Pedro Apóstolo, no Jardim Independência. Era onde Nelson, com aquele vozeirão, cantara no coral durante quatro anos. Neusa adorava acompanhar o marido nos ensaios e nas missas, e o fazia com frequência — deixava-o triste, apenas, o fato de que os frequentadores da paróquia mal se cumprimentavam ao sair dali. “Mesma igreja, mesmo padre, mesmo Deus… E quando acaba vai cada um pra um lado? Cada um vira inimigo assim do outro? Mas que que é isso?”, repetia Nelson.

Era satisfatório que a mulher quisesse ouvir o seu CD, mas ele sabia que as coisas não iam bem. Neusa pedia com frequência para ficar sozinha no quarto, com as janelas e portas fechadas, na escuridão. “Não vou dormir, só não quero ouvir a voz de ninguém”, ela dizia. Nelson era o único a entrar quando ela tinha esses humores. Os filhos instalaram uma babá eletrônica e escutaram algumas conversas dos pais nessas ocasiões.

– Neusa, o que você tem?

– …

– Você quer alguma coisa?

– …

– Neusa, os filhos estão nervosos, querem que a gente vá em outros médicos.

– Não…

– Mas eles estão só tentando ver se você melhora com outro remédio. Então, você tem que se incentivar, tudo bem?

Neusa falava pouco nessa época. “Li-ga o rá-di-o”, ela dizia e, logo depois, podia voltar atrás “o rá-di-o in-co-mo-dan-do”, segundo a memória do filho Nilson. Pela babá eletrônica, os filhos ouviam os pais rezarem juntos. “Pai nosso que estais no céu… Creio em Deus pai… Salve a Rainha…”, entoava Nelson, aos sussurros. Neusa acompanhava da maneira que agora conseguia, numa fala minguante. Durante horas, antes de dormir, ele podia ler para ela, sempre o mesmo Ágape, do padre Marcelo, ou um livreto com “gotas de sabedoria” — leitura que Nelson apreciava. Ele contava à mulher dos assuntos rotineiros, um estímulo para que reagisse. Ela, às vezes, participava.

Quando a esposa dormia, Nelson saía do quarto. Sentava-se no sofá e ali ficava, até cochilar. Muitas vezes, ele dormia a noite toda assim, sentado, com a cabeça apoiada no ombro, as pernas esticadas, os braços cruzados no colo. Nelson não deitava na cama porque o sono de Neusa era leve, e Nelson nunca fizera o tratamento para o ronco que certa vez prometera à mulher. De madrugada, ele ia até o quarto para cobri-la. Nelson sabia que a esposa sentia calor nos pés e que, por isso, dormia com os pés descobertos e no meio da noite podia sentir frio. Ele, então, despertava, levantava-se e jogava o cobertor em cima da mulher, com o braço bom.

Duas cuidadoras passaram pela casa dos Golla. A primeira delas adoeceu e deixou o posto em poucas semanas. Quem mais ficou foi Dona Rita, que até começou bem, mas que caiu em desgraça com Neusa ao perguntar se podia cozinhar para a família — o marido incluído. Dona Rita cozinhava bem — e esse foi outro problema. Não demorou para que Neusa começasse a implicar com ela. “Nilson, ela me empurrou”, queixou-se. “Junior, ela me pegou de jeito, me empurrou”, prosseguiu. “Ela cuspiu na minha comida”, adicionou. Nelson perguntou por que razão ela não permitia que Dona Rita a levasse ao banheiro ou desse banho nela, e a resposta foi: “Eu não gosto dessa mulher.”

O filho Nilson passara um tempo espiando o trabalho de Rita e concluíra que a mãe, simplesmente, não queria que um estranho cuidasse dela. Neusa um dia se jogou no chão quando a cuidadora tentava levá-la até a poltrona e não deixou que a levantasse mais. Dona Rita foi embora com tanta pressa que esqueceu um par de chinelos.

Se com cuidadores não havia funcionado, eles mesmos tomariam conta de Neusa. Nilson imprimiu uma escala em que cada filho passaria uma noite da semana com a mãe. Sua mulher, Magali, e a namorada de Junior, Luciana, além de Nilma, seriam responsáveis pelos banhos. Neusa enrolava a fala e se queixava de dores no pescoço, no peito, nas pernas. Não andava e não comia sozinha. Chamava pelos filhos o dia todo, para que arrumassem o travesseiro, levassem-na ao banheiro, levassem-na para a cama, para o sofá, mudassem sua posição no sofá, trocassem sua posição outra vez, fossem à farmácia e levassem-na ao médico. Nelson cozinhava, cortava tudo em pedaços pequenos e dava-lhe a comida — não seguiu a indicação das enfermeiras de deixar que ela se alimentasse sozinha. Instalaram barras no banheiro e aprenderam a trocar fraldas.

A dedicação para interromper o quadro depressivo, porém, se mostrou infrutífera. Depois de alguns meses, Neusa piorou e, do quarto, passou a gritar. Era dor ou algum incômodo, os filhos nunca entenderam bem. Na memória de Nilson, os gritos eram assim: “AAAAAHN, AAAAHN, HÃ, HÃ, HÃ, AAAAHN.” “Parecia criança. Regrediu muito”, ele me disse. Neusa se queixava de sonolência e confusão pela manhã — “fico toda grogue e borocoxô”, ela dizia — e os filhos diminuíram a quantidade de remédios. Não consultaram médicos, decidiram sozinhos. Queriam proteger o estômago dela, justificaram depois.

Nos piores momentos, Neusa não queria ouvir nada, nem os CDs do padre Marcelo, nem as gravações de Nelson. Gritava e grunhia de dentro do quarto. “Ela sentia uma agonia muito forte, que ninguém nunca explicou”, disse-me Nilson. Foi nessa época que Neusa afirmou pela primeira vez algo que o filho não esqueceria. Falou com dificuldade, mas de forma clara:

– Quero morrer! Apague essas luzes e me deixe.

Foi Nilson quem tomou a iniciativa de procurar a segunda casa de repouso, no início de dezembro de 2013. Quando Neusa parou de vez de sair da cama, os filhos concordaram que não podiam mais lidar com a situação daquela maneira. Lembraram que a tia Durvalina, irmã de Nelson, havia ficado em uma clínica perto dali. A prima Antônia confirmou que, sim, haviam cuidado bem de sua mãe por lá. Nilson anotou na agenda: Clínica Novo Lar, no Parque São Lucas, a três quilômetros dali. Após telefonar e descobrir que havia vaga, os filhos concordaram que era o melhor a fazer. Faltava comunicar a decisão aos pais.

“Mãe, vamos colocar a senhora numa casa de repouso”, disse Nilson, segundo ele me contou. “Não vou trocar a senhora na cama. A senhora está num ponto que não consegue mais sair da cama. Lá é o melhor lugar para que a senhora se recupere”, ele continuou, segundo o seu relato. Neusa não aceitou. Ele se emociona ao lembrar o que veio depois. “Falei pra ela da tia Durvalina, que havia ficado lá, falei que teria um quarto para ela e disse que era isso, não tinha discussão. Nós íamos levar ela pra lá. Com muito sacrifício, extremo sacrifício, ela acabou aceitando ir. Quase que forçando.”

Faltava consultar o pai e eles não sabiam como ele reagiria. Nessa época, Nelson perdia a calma com frequência, porque Neusa não apresentava melhoras. Ele não recebeu bem a decisão. “A gente estava se virando bem aqui! Vocês é que não estão nem aí com a sua mãe!”, esbravejou ao filho mais velho. Ao notar que a decisão estava tomada por aqueles que tinham condições de cuidar dela o dia todo, mandou-os “para o diabo” e saiu de casa. Voltou um tempo depois e não disse nada além de que visitaria a mulher “sempre que quisesse”.

– Vou lá todo dia e não quero nem saber — disse.

Os filhos não discutiram. Nelson passaria alguns dias sem falar com ninguém. Antes, deixou um recado amargurado.

– Pode deixar que, quando for a minha vez, vocês não vão precisar passar por nada disso.

ATO 5

“Ou você se ajuda, ou não vai levantar”.

Nelson se despediu do filho Junior com um aceno de mão e um insuspeito “falou” naquele sábado, véspera do dia em que decidiu morrer. Era 27 de setembro de 2014, por volta das dez ou onze da noite, segundo o caçula me contou tempos depois, relembrando o que aconteceu. Nos últimos dias, Nelson seguira a rotina de sempre: às três da tarde, visitava a mulher na casa de repouso, ficava pouco tempo, porque já não aguentava mais, e voltava para casa. Havia um único detalhe que destoava, uma ligeira modificação nos seus hábitos que foi ignorada. Antes de dirigir-se à clínica, ele costumava telefonar aos netos mais velhos, filhos de Nilma. Giovanni, que tinha 20 anos, e Bruno, de 17. O celular tocava sempre por volta das duas e meia.

– Giovanni, Bruno, vocês vão? Estou saindo, pego vocês na frente do prédio.

Nelson não tinha paciência para esperar e, se os netos não estivessem ali, seguia direto para a clínica. Desta vez, porém, ele não telefonou. Para ser exato (mais tarde, eles se esforçariam para relembrar em detalhes), o avô não havia ligado nos últimos três dias: nem quinta, nem sexta, nem sábado. Os jovens estranharam, mas acreditaram que ele esquecera e ocuparam-se de outros afazeres. As visitas à avó eram, afinal, sempre tão sofridas, ela já não falava e eles todos saíam de lá tão cabisbaixos...

O avô não telefonou porque preferia estar sozinho com Neusa naqueles dias. Vestia sempre uma mesma calça folgada e ninguém notou os volumes que levava nos bolsos. Três dias haviam se passado e ele ainda não tivera coragem para levar a cabo o plano que fizera para acabar com a vida dele e da mulher. Martirizava-se por sentir-se incapaz de tomar uma decisão.

Agora era sábado e Nelson estava só em casa, assistindo a uma reprise de futebol na TV afundado na poltrona do papai. Os pensamentos, como de hábito, derivaram para a situação da esposa. Neusa quase não levantava daquela poltrona nos momentos que antecederam a internação na Novo Lar. No início, ele conseguira levar, mas agora as visitas estavam tão duras… Era desesperador não aguentar meia hora ao lado da mulher com quem passara a vida. Naquela noite de sábado, Nelson adormeceu na poltrona, já de madrugada.

Antes que o filho e a namorada saíssem, ele deixara acertado que faria o almoço de domingo, nada muito especial, talvez, um estrogonofe. O caçula, ao se despedir, combinou que ligaria na manhã seguinte, quando ele e Luciana decidissem se almoçariam mesmo em casa. Junior é o filho temporão de Nelson e de Neusa — 11 anos mais novo do que Nilma e 14 anos a menos do que Nilson — e, ao longo de anos, carregou o apelido “Bolinha”, por causa do talento no futebol. Ele jogava na meia esquerda e passou por todas as categorias de base do time do Corinthians. Chegou a se profissionalizar na equipe do São Bernardo-SP, mas, a certa altura, desistiu do futebol. Desiludiu-se com tantos empresários e tantos pistolões. Assumiu a oficina do pai junto ao irmão e, nos últimos anos, dedicou-se também a outra paixão: é DJ de festas Rockabilly e possui um Chevrolet 1951, que aluga para eventos. O pai achou “uma papagaiada besta” quando soube da compra, mas depois que Junior restaurou o carro antigo, Nelson rendeu-se. “Êta coisa linda!”, dizia, acariciando a lataria do veículo preto.

O caçula é o único dos filhos que sempre viveu na casa dos pais. A namorada, nos últimos tempos, também. Como estava ali o tempo todo, Junior acompanhava de perto as reações de Nelson à doença de Neusa. Estranhou quando, dois meses antes, em uma noite de julho daquele 2014, o pai subiu ao terceiro andar da casa — que de salão de festas reduzira-se a despensa — e começou a reunir pertences em caixas de papelão. Livros de autoajuda, fitas VHS com programas de auditório, algumas roupas.

– Ué, pai, pra que isso? Vai viajar? Vai se mudar?

Nelson respondeu que pretendia doar aquilo tudo, porque “não precisava mais dessas tralhas.” Luciana imaginou que era uma resposta a críticas recentes dela de que a casa, tocada agora apenas pelos homens, andava muito bagunçada. Alguns dias mais tarde, Nelson deu na mão de Junior cerca de R$ 5 mil que havia sacado da aposentadoria, para que o filho guardasse fora do banco. Não queria que ninguém mexesse na conta conjunta da família. Ofereceu também a Junior um relógio de pulso, com o qual o filho gostava de brincar quando criança. O caçula atribuiu o gesto à depressão que o pai sentia desde que levaram a mãe para a Novo Lar, meses antes.

A essa altura Nelson já havia formado sua convicção a respeito de casas de repouso: ele agora dizia que aqueles lugares não proporcionavam paz, nem descanso. “São depósitos de velhos, que significam bem o que essa palavra diz. É um ‘depósito’, para onde você leva o que não serve mais. Minha conclusão é que só servem para enriquecer os donos”, reclamou aos filhos. “Não tenho nada contra os outros melhorarem de vida, mas ganhar dinheiro com isso é progredir às custas da desgraça dos outros, porque clínica de repouso é um lugar onde a pessoa fica guardada, esperando a morte chegar.”

Neusa Maria Golla foi internada na Novo Lar em 17 de dezembro de 2013, segundo os registros da polícia, que consultei tempos depois. Ela ocupou inicialmente um quarto nos fundos da casa, com uma só cama. Passava boa parte do dia vendo TV, calada. A Nelson também agradava o fato de estar só com a mulher, em um quarto fechado, sem ninguém gritando, gemendo ou falando sozinho. Gostava daquele quarto, parecia-lhe um bom lugar para a esposa se recuperar. Mesmo que não comentasse com ninguém, como as orações à beira da cama com a mulher ainda em casa, ele mantinha intactas suas esperanças de melhora.

Nelson tentava “incentivar a cabeça da mulher”, como ele dizia. Inicialmente, fazia palavras cruzadas junto dela, sentado no sofá ao lado da poltrona em que ela estava. Mas agora ela havia sido trazida para a clínica e mal podia falar, quanto mais escrever. Nelson buscava outras saídas. “Vamos, Neusa, fala ‘aaa’! Agora ‘bê’! Isso, ‘cê’!”, ele dizia, numa tentativa de estimulá-la. Contava de 1 a 30 também, e Neusa repetia. Nelson ficava satisfeito quando a mulher conseguia falar, ainda que notasse a dificuldade — ela praticamente soprava as palavras para fora da boca, com um biquinho. Como recompensa, no fim da sessão, ele distribuía carinhos. Dava um beijo na testa, passava a mão no cabelo. Para conseguir acariciá-la no rosto, mexia o ombro todo, pois seus movimentos também eram limitados. Muitas vezes, acabava por atingir a mulher com “uma baita mãozada na cara” — como os netos descreveram para mim. Neusa se assustava e, às vezes, sorria, resignada. Nelson fazia o que podia com aquele braço ruim.

Apesar dos esforços, a depressão não dava trégua e as sequelas do AVC se intensificavam. Neusa piorou em pouco tempo. O braço direito, atrofiado, não se recuperava e agora a perna direita também definhara. Exercitava-se com o fisioterapeuta da clínica três vezes por semana, mas pouco adiantava. Neusa entrou como cadeirante e nunca caminhou normalmente na Novo Lar.

Em uma noite de junho de 2014, ela sofreu um segundo AVC. As sequelas pioraram e Neusa foi transferida dentro da clínica para o quarto número 03, reservado para as pacientes mais debilitadas. A saúde de Neusa, que pareceu melhorar na chegada à clínica, declinara novamente. Ela gemia o tempo todo, queixava-se de dores nas pernas e no pescoço.

“Ela tinha uma tristeza tão grande que eu passei a pensar que nada adiantaria. Já tive depressão e não tem jeito: ou você se ajuda, ou não vai levantar”, relembrou a dona da clínica.

“Cuida do teu pai”.

Neusa passou a se comunicar apenas por resmungos depois do novo AVC. Na memória do seu filho mais velho, ela emitia um som parecido com um arfante “wra, wra, wra!” e apontava se tivesse sede para um copo de água especial que havia ali (com um canudo embutido) ou para a janela, se sentisse frio. Para um lado e para o outro ela mexia o pescoço, que a essa altura estava endurecendo. Parecia angustiada. Se precisava das enfermeiras, o mais comum é que gritasse. Às vezes, conseguia falar, em monossílabos.

– Ca-sa! Ca-sa! — Neusa passou a repetir.

Ao ouvir a mãe pedir para sair dali, o filho mais velho, Nilson, sentia um misto de culpa e impotência. Certa vez, ao retornar da clínica após uma visita (comparecia uma ou duas vezes por semana), desabafou com alguns vizinhos sobre o que acabara de ver. Era triste a parte em que Nilson contava que a mãe destinava as poucas forças que ainda tinha para pedir para voltar para casa. O grupo permaneceu calado ao fim do relato. Gibão, um vizinho que tinha alguma deficiência intelectual e por isso ganhara o apelido de Doidinho, quebrou o silêncio: “É que ela quer morrer em casa.”

Nelson nunca deixou de levar guloseimas que pudessem alegrar o dia da mulher. Os preferidos agora eram chocolate diet, castanhas e biscoitinhos de aveia e mel. Neusa recebia a comida na boca em pedaços miúdos, mastigava e engolia lentamente. Ela gostava também de alguns salgados gordurosos e era claro que, na dieta da clínica, eles não figurariam. Nelson incrementava o cardápio da mulher: levava principalmente as esfihas de queijo que Neusa adorava, e as oferecia à mulher às escondidas, quando as enfermeiras não estivessem perto. “Não é hora de a sua mãe parar de comer o que gosta”, disse ao filho Nilson, certa vez. Satisfazia-se ao pensar que podia fazer da vida o que bem entendesse e não seria agora, aos 74 anos, que modificaria esse hábito.

Nilson até pensou em discutir, mas, ao ouvir o pai invocar uma velha história familiar, ele entendeu que era melhor deixar. Era uma tristeza que Nelson carregava há décadas e que chamava de “trauma”. A sogra de Nelson, Dona Maria Guilhermina, tinha diabetes e, embora adorasse doces, era sempre impedida de comê-los. Já no fim da vida, sua vontade por açúcar aumentou, mas a família mantinha o controle, seguindo a orientação médica. Em um domingo, a sogra pediu com insistência por um pouco de sorvete, pois viu os familiares comendo a sobremesa após o almoço. “Dá sorvete pra ela, pô, só uma colher, que seja!”, Nelson insistiu, segundo seu relato. Mas não deram. No dia seguinte, ela entrou em coma e morreu dias depois. “Morreu com vontade de sorvete, tá vendo?”, Nelson concluía. “E aí, valeu a pena deixar de dar sorvete para ela?”

Se, naquele momento, essa história reaparecera, era melhor deixá-lo satisfazer as vontades da esposa. Ele sabia cozinhar, conhecia os gostos da mulher, ainda podia dirigir e tinha algum dinheiro da aposentadoria guardado. Podia dar à esposa tudo o que ela quisesse.

Mas, apesar da esperança que nutria, Neusa não melhorava. As enfermeiras relataram que ela começou a recusar a comida. Sua dieta (oficial) consistia basicamente em sopas, mingaus ou papinhas, mas assim mesmo Neusa não engolia. As enfermeiras tentavam dar comida, ela travava a boca. Elas forçavam um pouco e ela jogava para fora. Neusa emagrecera ao menos dez quilos. Se continuasse assim, a fraqueza poderia levar a algo pior.

A dona da Novo Lar, Luciane Teodoro, teve de chamar a família para tratar disso. Compareceu Nilma, e Luciane foi direta: “Nilma, não tenho condições de manter sua mãe aqui desse jeito. Vocês têm de levá-la a um hospital para passar uma sonda”. Ela edulcorou o discurso com palavras de otimismo: “Vocês vão ver como ela vai melhorar, porque a dieta vai ser mais hiperproteica, ela vai ganhar peso e melhorar esse quadro depressivo.” Nilma perguntou apenas se seria o melhor para a mãe (“era o que eles sempre perguntavam, se era para o bem dela”, disse-me Luciane depois) e aceitou que marcasse a colocação da sonda para os dias seguintes.

Nelson não quis ir junto — já que os filhos haviam concordado com aquilo, eles que agora se responsabilizassem. Nilson estava presente quando uma médica passou o aparato por dentro da narina esquerda da mãe, que fez caretas de dor durante todo o procedimento. O filho esforçava-se para acreditar que aquilo — a passagem de um tubo de borracha da narina ao estômago, com engasgos e obstruções no meio do caminho — era para o bem e que ele deveria aguentar firme ali ao lado, apertando-lhe a mão. Depois de dez minutos, tudo se resolvera. Nilson suava e Neusa chorava baixinho. Ela falava pouco e com dificuldade, mas de volta à clínica, já com a sonda, chamou o filho para perto e disse uma única frase: “Cuida do teu pai.”

Ela parecia entender como o esposo reagiria à colocação daquela sonda. Nelson sentia que agora oficialmente não havia mais nada que pudesse fazer pela mulher. Ele não poderia cozinhar e há tempos já não a levava para passear (pois ela não queria mais sair da clínica). Para completar, não podia mais nem mesmo oferecer guloseimas à mulher, um refresco na dura rotina. Um dia, uma auxiliar de enfermagem o flagrou dando água com o copo de canudinho na boca da mulher e o repreendeu. Agora que ela usava sonda, ele deveria apenas molhar os lábios da mulher com uma gaze úmida. Nada além disso. Foi quando Nelson adquiriu, em uma farmácia perto de casa, uma bisnaguinha com que daria água e água de coco à mulher. Era um conforto poder levá-la no bolso para oferecer a Neusa um pequeno alívio, também às escondidas. Quando a enfermeira do turno saía de perto, Nelson apertava a bisnaga (um recipiente de plástico parecido com o de um colírio oftalmológico, mas mais volumoso, como mais tarde anotou a polícia) e espirrava o líquido na boca da mulher. “Saem umas gotinhas só, não dá nem pra engasgar com aquilo”, dizia.

Vê-la com aquela sonda o entristeceu demais. “Tem que tirar esse negócio!”, reclamava em casa. Pouco tempo depois, Nelson observou que a língua da mulher definhara, como se estivesse enrolada para trás. Não mexia mais. “Puta que o pariu. Ela não consegue mais falar nada! Tenta e não dá para entender nada do que ela resmunga. Fica apontando e ninguém entende o que quer”, disse ao filho Nilson. “Olha a situação da sua mãe. Ela não fala mais nada, só escuta. Está sofrendo, só isso, nada mais.”

Tempos depois, quando pedi à enfermeira Luciane que relembrasse o que aconteceu naqueles últimos dias do casal na casa de repouso, ela disse que, após a colocação da sonda, eles não faziam mais do que se olhar. Pelo menos era assim que agiam quando ela estava por ali. Segundo sua memória, depois que ele partia, Neusa apenas chorava.

“Ontem já faz muito tempo”.

Nelson não conseguia entender o motivo de a mulher ter decaído dessa forma. Ele estava sempre ao lado dela, tentara ajudar de tantas maneiras, como pôde apenas piorar? Por que nunca melhorava? Em uma tarde de agosto, ele se aproximou do leito da mulher e disse:

– Precisamos dar um jeito de ir embora, você e eu.

A vida que levavam mudara completamente em relação ao que Nelson se acostumara ao longo das décadas, quando Neusa capitaneava o lazer do casal. Antes, havia reuniões regulares, mesmo que para um café da tarde ou um almoço de domingo. Antes, eles eram chamados para visitar tantos amigos e primos que Nelson ficava irritado, porque preferia ficar em casa assistindo à TV ou passar tempo no bar do Laerte. Agora, ninguém mais telefonava. Será que ninguém se importava com ele? Será que, ao longo desses anos todos, ele tivera contato com tanta gente apenas por causa da mulher? Mas — ele agora refletia — a verdade é que era sempre Neusa quem organizava os programas.

O jeito que encontrou para combater a solidão foi pegar papel e caneta certa noite e debruçar-se à mesa da sala para escrever alguma coisa. Entre outros pensamentos, anotou a seguinte frase: “Façam muitos amigos para não terem uma velhice solitária.” Naquele momento, ele não mostrou a ninguém os apontamentos, mas seu objetivo era que logo todos ficassem sabendo o que escrevia. Tampouco alguém perguntou a ele o que tanto anotava, pois vê-lo escrevendo debruçado à mesa era algo com o que os filhos habituaram-se há muitos anos. Nessas ocasiões, deixavam-no ali, absorto e calado. O neto mais velho, Giovanni, costumava espichar o olho para o que o avô escrevia. “Ficava curioso, porque ele sempre foi um homem inteligente pra caramba.”

Nelson gostava de frases e pensamentos que pudessem, como ele dizia, “ativar o otimismo nas pessoas” — em geral, ele próprio e, no caso de ler em voz alta seus escritos, os alvos eram quase sempre os filhos. Neusa não ligava para essas coisas. Depois que se aposentou, Nelson começou a anotar, em um caderno de capa dura, centenas de frases cujo único objetivo era “empurrar as pessoas para frente.”

Trecho de caderno onde Nelson anotava frases sobre a vida. Imagem: Dirceu Neto.

Ele sempre sentiu pendor para algum tipo de arte, mas nunca soube como explorar e nunca teve estímulo para tal. Na adolescência, gostava de ler tudo o que caísse em suas mãos. Quando o pai, Rafael, percebeu no caçula esse gosto, sua atitude foi passar-lhe uma reprimenda: “Para de ler tanto, rapaz. Quem lê demais, fica louco!” Alguns anos mais tarde, quis ser ator. Chegou a fazer testes na companhia de José Mujica Marins, que ficaria conhecido como Zé do Caixão. Pegava a condução escondido dos pais e cruzava a cidade até o centro de São Paulo, na Rua Conselheiro Crispiniano, onde eram feitas as audiências. Na volta, comprava livros em uma livraria ali perto. Acreditava que podia fazer algo diferente, mas acabou cansando, depois de meia dúzia de ensaios e nenhum cachê. Quando completou 16 anos, começou a trabalhar e desistiu das investidas artísticas. “Chega no fim da vida e a gente vê tanta coisa que não realizou… O que a gente mais diz é ‘poderia ter feito isso ou aquilo’. Tente fazer tudo o que você quiser e, então, não terá espaço pra arrependimento”, aconselhou ao neto, certa vez.

Somente muito mais tarde, depois de uma vida de trabalho pesado, Nelson viu ressurgir alguma possibilidade artística. A convite de uma amiga, ele descobriu, junto a Neusa, o mundo das figurações. Eles apareceram em telenovelas e minisséries de emissoras como Rede Globo, SBT e Record. Recebiam cachê de figurantes (entre R$ 50 e R$ 150) e ficavam felizes com a proximidade com atores que antes só viam do outro lado da tela. Sentiam orgulho de dizer que “contracenaram” com Eva Wilma, Lima Duarte e com os cantores Chitãozinho e Xororó, por exemplo. Apareceram em pontas travestidos como um casal de padeiros (na novela “Cristal”), um casal de imigrantes, um casal que assistiria a uma peça no Teatro Municipal de São Paulo (na minissérie “Som e Fúria”, dirigida por Fernando Meirelles), além de participarem de comerciais como clientes em lojas de departamento. Nelson chegou a fazer um book fotográfico em um estúdio para apresentar a possíveis empregadores. A ideia não avançou, pois veio a doença da mulher e a vida e os planos mudaram.

Também já depois da aposentadoria Nelson pegou gosto pelos livros de autoajuda e por programas de rádio com a mesma temática. Era dali que ele tirava as anotações que fazia em seu caderno de capa dura. Entre 2005 e 2012, preencheu 88 páginas com frases como “crie uma super mente, com sua esposa, com seus filhos”, “ontem já faz muito tempo, amanhã será tarde demais: encare a vida com otimismo”, “quem perde a coragem e o ânimo, perde tudo; o sucesso é ser feliz” e “trabalho sem amor é escravidão, aos poucos, vai te deixar com depressão.” Em um dos trechos, citou personalidades que o inspiravam e que teriam uma mente desse gênero: “Ayrton Senna, Caetano Veloso, Roberto Marinho, Abraham Lincoln, Gandhi, Buda, Jesus, Krishna, Madre Teresa, Chico Xavier e Silvio Santos.” Suas escolhas demonstram apreço pela comunicação (citou dois dos comunicadores mais poderosos da história do Brasil) e à espiritualidade (ele era católico, mas tinha tendências ao sincretismo — era, em suma, um curioso).

A espiritualidade reaparece em vários outros momentos. “Entusiasmo, palavra grega que quer dizer estar com Deus: entusiasmo significa Deus”, ele anotou no caderno. Mais tarde, ficaria clara a consideração de Nelson pelo termo. Ele carregava esse ensinamento dos tempos da Seichô-no-iê, uma filosofia oriental que ganhou ares de religião no Brasil e cujas reuniões Nelson frequentou na década de 1990. “Entusiasmada é aquela pessoa que acredita em si, que acredita nos outros, acredita na força que as pessoas têm de transformar o mundo e a própria realidade. Deixe de lado o ceticismo, abandone a descrença, seja entusiasmado com sua vida e, principalmente, entusiasmado com você. Estar com Deus. Agir com entusiasmo”, ele escreveu na página 87, a penúltima do seu caderno.

Nelson gostava desse tipo de ensinamento e chegou a gravar fitas K7 que intitulava de “Monólogos de Nelson Irineu Golla”. Ele admirava a forma de se expressar dos locutores e tentava imitá-los em seus monólogos. Em um Natal nos anos seguintes, transformou as fitas K7 em CDs e distribuiu aos filhos como presente. “Você está aí, numa casa quentinha, gostosa. Quantas pessoas não estão perambulando pelas ruas, horrorizadas? E você aí reclamando da vida? Meeeeu Deus do céu, obrigado. Muito obrigado, meu Deus, por esta casa”, dizia Nelson, num dos trechos. Os monólogos com frases de autoajuda eram vistos com graça entre os filhos, que debochavam. Nelson defendia-se: “É o tipo de coisa que só vai fazer vocês irem pra frente. Mas escutem se quiserem, vocês é quem sabem se querem ou não progredir na vida. Se não quiserem, quebrem esses CDs e joguem fora.”

“Você não tem mais vontade de viver?”.

Quando Neusa foi internada na Novo Lar, a família explicou a Luciane que ele andava deprimido por causa da situação da esposa e que era preciso cuidado quando o pai ficava assim. Contaram o histórico familiar de Nelson. Diante dos argumentos dos filhos, a enfermeira não teve dúvidas: Nelson poderia ir a hora que quisesse.

Nilma contou a Luciane uma história da família Golla pouco comentada mesmo entre eles. Começou no início dos anos 2000, com um sobrinho-neto de Nelson, um dos netos de seu irmão Marino. Era um jovem de 20 anos, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras, centro de formação do Exército em Resende, no interior do Estado do Rio. Há tempos ele queria deixar o serviço militar e, pelo pouco que a família soube, o pai não permitia. Certo dia, no ano de 2004, o rapaz resolveu acabar com o que o atormentava. Ligou uma câmera de vídeo, empunhou uma pistola e matou-se com um tiro na cabeça. Dedicara a filmagem ao pai.

Foi um choque enorme, especialmente para Marino, tido como o tio mais brincalhão e divertido, “um dos pilares da família”, como Nilma me contou. Ele era presença certa nas reuniões no terceiro andar da casa de Nelson, levava sempre uma enorme salada de frutas e queria saber das histórias de todos. Era o irmão mais próximo de Nelson, e, nessas ocasiões, sentavam-se lado a lado e passavam horas conversando. Falavam muito de abrir um negócio juntos. Nelson e Marino tinham a criatividade como característica comum: eram tidos como “inventores”, gostavam de resolver problemas cotidianos à sua maneira. Marino criara uma máquina de fazer bolsas plásticas de praia, que vendia em lojas na orla de Santos. Nelson produziu na oficina aparelhos de academia parecidos com os que há em praças públicas (como um simulador de caminhadas, por exemplo), usados principalmente pelo filho Junior. Chamavam-lhes de “professores Pardal” e a fama na família é que bastava que eles observassem um objeto por alguns minutos para serem capazes de produzir um igual. Com a morte do neto, Marino passou a aparecer menos.

Neusa também era próxima de Marino e da esposa, Joana. O casal vivia em um apartamento confortável em Santos, com ampla varanda, perto da orla. Em um fim de semana de 2009, Neusa e Nilma tinham tudo pronto para passar o domingo em Santos, mas um telefonema obrigou-as a mudar os planos. Marino assistia à missa das oito pela TV, em companhia da mulher e do casal Luís, seu irmão, e Lourdes, quando pediu licença para ir ao banheiro. Os outros levantaram-se e foram à cozinha preparar um café. Na verdade, Marino foi até a varanda. Jogou-se do quinto andar. As causas seriam problemas de saúde. Ele tinha 84 anos e enfrentaria nos meses seguintes quatro cirurgias complicadas, relacionadas a um câncer de pele. Temia pelo sofrimento que podia causar à mulher. A família atribuiu o suicídio a isso. Nelson foi ao enterro, mas não quis ver o irmão.

Nilma relatou ainda um terceiro caso à dona da casa de repouso, também ligado a questões de idade e de saúde. Foi em 2011, quando o irmão de Nelson, Luís, perdera a esposa, Lourdes. Como ele já tinha mais de 80 anos, seus familiares contrataram uma cuidadora. Luís teve um relacionamento amoroso com ela e passaram a morar juntos em sua casa, em São José dos Campos, a 200 quilômetros de São Paulo. Os filhos, quando souberam, não aceitaram. Demitiram a cuidadora e trouxeram Luís para morar na capital. Poucos meses depois, ele atirou-se da janela do apartamento. Nessa época, Neusa já estava na clínica Raio de Sol e os filhos só contaram a ela por insistência de Nelson, que defendia que ela não fosse impedida de saber das notícias (mesmo as ruins) por estar internada. Nelson foi ao velório e novamente ficou do lado de fora.

Eram todos casos de depressão, de alguma forma, relacionados à idade, disse Nilma a Luciane. A enfermeira reforçou que as portas da clínica estavam sempre abertas a Nelson. Mais tarde, ela relatou essa história à polícia, pois era absolutamente importante justificar o fato de ele permanecer na clínica, mesmo fora dos horários de visita.

“Para os que amam, o tempo é a eternidade”, escreveu Nelson. Imagem: Dirceu Neto.

A dona da Novo Lar havia dado um recado às três auxiliares de enfermagem que trabalhavam para ela: que dispensassem mais carinho e mais cuidado à Dona Neusa, porque ela não estava bem. “A gente percebe quando o paciente vai se entregando, então, falei para dar mais conforto a ela”, disse-me Luciane Teodoro, depois de tudo. “Deus é que é dono da vida e da morte, mas eu trabalho com idosos há mais de 20 anos e via que era uma questão de tempo. Eu falei isso também para a delegada.”

Era início da tarde daquele domingo de primavera em São Paulo, e Luciane e uma das auxiliares de enfermagem, Michelli, conduziram Neusa do quarto de número 03 até o banheiro, do outro lado da casa, onde lhe dariam um banho. Neusa reclamou desde o momento em que a retiraram da cama no canto esquerdo do cômodo até quando a higiene terminou. Gemia quando era sentada na cadeira de banho (um apoio colocado sobre uma banheira comum) e também quando a esfregavam, pois era preciso limpar bem o braço e a perna atrofiados, e isso lhe doía. Queixava-se quando mexiam no pescoço dela, que, após o segundo AVC, entortara para o lado direito. Era preciso secá-la com cuidado, pois sua pele era bem fina, propícia à formação de feridas. Nem sempre conseguiam, pois, nos últimos tempos, escaras surgiram. Cada etapa do processo lhe doía. Quando o banho já havia terminado, sentada na cama enquanto a enfermeira passava um hidratante, Neusa chorava baixinho. As enfermeiras davam-lhe um analgésico e um calmante.

No dia em que conversamos em seu escritório ao lado do quarto 03, Luciane me disse que procurava ficar próxima a Neusa, assim como fazia com outros pacientes depressivos, pois ela sabia o que era sofrer desse mal. Neusa tomava Sertralina, um antidepressivo comum, mas claramente não era o bastante. A enfermeira falava da família, de como o marido, filhos e netos estavam sempre por ali. “Você tem que reagir, Neusa. Olha a sua família, até os seus netos vêm sempre visitar a senhora! Você não tem nada grave, não tem um câncer, tem que se animar, cadê a força de vontade?” Era a fase em que Neusa apenas chorava. Um dia, quando ela já estava com a sonda, a enfermeira foi mais longe. “Essa situação não é pra sempre, Neusa. Você não tem mais vontade de viver?” Neusa praticamente não falava e balançou a cabeça que não, para um lado e para o outro.

“Vou ali com a minha velha”.

Naquele domingo, 28 de setembro de 2014, a equipe estava reduzida na Novo Lar. Era o dia mais tranquilo da semana, e a Rua Lótus, uma travessa da movimentada Avenida Luís Inácio de Anhaia Melo, estava agora em silêncio. Não se ouvia nem mesmo o habitual bate-estacas dos operários que em dias de semana trabalhavam nas obras de um monotrilho ali perto. Luciane deixou sua casa, a cinco minutos dali, e chegou à clínica pouco antes das 12 horas. Esperava que o dia passasse rapidamente, porque “nenhum cristo merece trabalhar aos domingos.”

Logo que chegou, ajudou a dar banho em Neusa. Foi ela quem trouxe a camisola branca com lacinhos rosados na gola com que a vestiria depois. Tentou estimulá-la: daqui a pouco seu esposo chega. “Cheguei toda bagunceira, como eu sempre faço pra tentar animar as pacientes mais tristinhas, é meu jeito de trabalhar”, contou-me. Depois do banho, a enfermeira cruzou a rua até o restaurante que fica em frente e comprou uma fatia de lasanha e um bife de alcatra — o almoço de domingo que comeria ali mesmo na clínica, um pouco mais tarde.

Mais um trecho do caderno de Nelson Golla. Imagem: Dirceu Neto.

Nelson já havia recebido um telefonema de Junior, avisando que não chegariam a tempo para almoçar. Ele decidiu, então, dar uma caminhada no parque, um lugar que apreciava — apesar da frequência, que piorara: “Muito maconheiro ali.” Ele já tinha tudo preparado. Há três dias, tentava reunir forças para levar a cabo o plano que fizera, mas ainda não conseguira. Irritava-se por sentir-se covarde. Quem o viu naquele dia, como o marido da diretora da escola onde Nilma trabalhava, disse que ele parecia bem, feliz até. O jogo ainda estava no primeiro tempo quando Nelson levantou-se do banco e, com um aceno cordial e o caminhar um pouco trôpego de sempre, despediu-se dos companheiros.

– Tchau! Vou ali com a minha velha.

três dias, Nelson levava no bolso o explosivo que havia preparado, com a pólvora de rojões de número 4 comprados em uma loja perto de casa (cada artefato com cerca de dez centímetros de altura e oito de espessura) e um pedaço de tubo de aço que encontrara na oficina. Ele considerou usar veneno, mas escolheu um método mais à mão. Faltava-lhe apenas um pouco de coragem. Em comparação com os outros dias em que levara a bomba à casa de repouso — a quinta, a sexta e o sábado –, Nelson não sentia nada de diferente naquele domingo. Isso lhe causava um misto de raiva e incompreensão. O que faltava para conseguir fazer tudo aquilo terminar?

Ele ultrapassou o portão verde da Novo Lar e, pelo pouco que a dona da clínica pôde ouvir, resmungou alguma coisa com Michelli, a auxiliar de enfermagem que o barrara no portão. Depois, seguiu direto para o quarto de número 03, sem falar com Luciane, que almoçava na mesa no pátio. Nelson permaneceu ao lado do leito da mulher, como tantas outras vezes fizera ao longo dos últimos nove meses. Neusa apenas o observava.

A promessa que fez de tirá-la dali, a angústia de saber que Neusa apenas pioraria, o sofrimento que ultrapassara há tempos os limites que acreditava poder suportar. Nelson estava atormentado e queria tomar uma decisão. Ele colocou a mão no bolso da calça e tirou dali a bisnaga com água de coco — proporcionaria, pelo menos, algum alívio à mulher.

O que aconteceu depois foi “rápido como um relâmpago”, para usar o palavreado de Nelson. Foi incontrolável.

Ele esguichava o líquido para dentro da boca da mulher, como fizera tantas vezes, quando a auxiliar de enfermagem Michelli entrou no quarto. Ela queria trocar as fraldas da paciente da cama ao lado, Almerinda. Ao notar o que Nelson fazia, Michelli se irritou.

– Que que é isso, Seu Nelson? O senhor sabe que não pode dar nada pra ela pela boca, ela pode pegar pneumonia! –, disse a auxiliar de enfermagem — Ela toma água aqui pela sonda, o senhor me dá aqui esse frasco que vou levar para a Luciane.

– É só água de coco, menina! — defendeu-se Nelson — Sonda! Experimenta jogar água no teu pé pra ver se mata a sede, tem que dar na boca! E não estou dando um copo cheio, são só umas gotinhas — ele continuou.

Mas a essa altura a auxiliar de enfermagem já lhe havia tomado o frasco das mãos e saía porta afora, batendo o pé até o pátio.

– Luciane, olha o estado disso aqui que ele está querendo dar pra Dona Neusa. Um frasco todo sujo!

Nelson ficou sozinho no quarto com Neusa. A esposa apenas o fitava, do jeito que fazia desde que parara de falar. Nelson, então, pensou na mãe. Veio-lhe à mente a velha passagem familiar em que Dona Maria dizia a ele: “Precisa dar água pras crianças, Nelson, porque elas não pedem. Elas têm sede também, de vez em quando, tem que dar uma aguinha para elas…” Lembrar disso naquele momento lhe causou tristeza e raiva. “Porra, não vou poder mais nem dar água pra minha mulher, puta que pariu!”

E, então, ele sentiu. Era a hora.

Nelson tirou do bolso da calça folgada o tubo de aço cheio de pólvora. Acomodou-o sob o braço esquerdo de Neusa, onde julgou encontrar-se o coração. Pegou a caixa de fósforos e acendeu o pavio. Deitou-se em cima da esposa. Abraçou-a como pôde, com o braço bom. Escutou o fogo consumindo o rastilho. Disse suas últimas palavras à mulher: “Pronto, agora nós vamos embora.” Fechou os olhos e esperou.

Ilustração: Pedro Matallo.

ATO 6

“Morri”.

A dona da clínica almoçava no pátio, ao lado do quarto, quando escutou o estrondo. Levantou-se num pulo e correu para os fundos da casa. Caíram no chão o prato de lasanha e a bisnaguinha com água de coco, que estavam em cima mesa. “Estourou o poste de luz, Luciane, corre pra desligar a TV!”, gritou Dona Guiomar, a faxineira da clínica. “Não! A casa da frente é que tá desabando!”, respondeu a enfermeira, enquanto corria até os fundos.

Ao passar pela janela do quarto de número 03, olhou para dentro e estacou. Viu Nelson deitado no chão. Viu que a cama hospitalar de Neusa estava do outro lado do quarto, quase em cima do leito de Almerinda. Sentiu o cheiro de fumaça e pólvora. Olhou para Neusa. Começou a gritar.

– Ele matou! Ele matou! Ele matou!

Luciane saiu voando pelo pátio, sem parar de gritar.

– Ele matou! Ele está armado, vai matar todo mundo!

A enfermeira correu para os fundos da clínica e tentou entrar em um quarto. A porta estava trancada.

– Pelo amor de Deus, ele está armado, deixa eu entrar, pelo amor de Deus!

Dentro do quarto estava a faxineira, que a barrou.

– Tenho duas filhas pequenas, vai para outro quarto!

Luciane esbravejou algo como “tenho dois filhos também!”, e refugiou-se no quarto mais próximo, onde havia dois idosos. Dali, ela ligou para a polícia.

– Um homem armado entrou na minha clínica e matou a mulher dele. Pelo amor de Deus, venham logo para cá, antes que ele mate todo mundo!

Nelson sentiu no peito uma porrada forte e surda, que lhe pareceu o coice de um cavalo. “Morri”, ele pensou. Acreditou ter visto o outro lado. Caído no chão, em meio ao torpor, ele olhou ou imaginou olhar para a esposa. Pareceu-lhe que Neusa estava tranquila. Pareceu-lhe que ela tinha um sorriso nos lábios. Teve a impressão de que ela agora descansava. Notou que ela estava morta e suspirou. Finalmente. Tudo ficou escuro e ele não sabia se isso também era a morte ou se havia fechado os olhos. Sentia o corpo fraco. As pernas tremiam e uma dor subia do peito ao pescoço. Nelson talvez tenha desmaiado nesse momento.

A polícia chegou em dez minutos. O número incomum de viaturas (nove) se deve à informação de que um atentado a tiros estava em andamento. Havia agentes com metralhadora e fuzil em punho. Ao entrarem no quarto de número 03, viram um homem idoso caído, traços visíveis de pólvora no chão, uma cama deslocada de lugar e, sobre ela, uma senhora com um ferimento profundo no tórax. Os policiais verificaram que ela estava morta. Duas ambulâncias do resgate já estavam a caminho. Luciane telefonou para o filho Nilson — pediu-lhe que viesse à casa de repouso com urgência, mas não contou o que havia acontecido. Nilson vivia perto da clínica. Avisou que iria a pé e que em pouco tempo chegaria.

Ainda caído no piso, Nelson alternava momentos de lucidez e desfalecimento, enquanto os policiais anotavam os detalhes da ocorrência. Ele tinha “roupas chamuscadas, queimaduras no tórax e um sangramento no rosto”, como eles descreveram no Boletim de Ocorrência 6307/2014. Observaram também que as duas outras moradoras do quarto não demonstravam tomar conhecimento da explosão: Almerinda dormia e Luisita resmungava palavras ininteligíveis, como costumava fazer naquele período da vida.

Antes de a ambulância chegar, os policiais perguntaram a Nelson o que havia ocorrido. “Eu usei um artefato para explodir”, teria dito Nelson, segundo o B.O. Os policiais perguntaram o seu nome, pois Nelson não levava documentos, e, sem dizer nada, ele entregou aos policiais a chave do carro. O que havia no porta-luvas explicaria tudo.

A primeira ambulância chegou praticamente junto do filho Nilson. Luciane acreditou que ele reagiria “de forma violenta” à morte da mãe e avisou aos policiais que ficassem de olho. “Ele é o filho!”, disse. A enfermeira surpreendeu-se com a reação de Nilson ao entrar no quarto. “Ele não fez nada, ficou só olhando. Parecia em choque”, ela relembrou. Depois de algum tempo parado, encostado no batente da porta, Nilson notou que a mãe tinha os olhos abertos e perguntou se poderia fechá-los. O policial disse que não.

Ele, então, atentou para o pai. Nelson continuava no chão do quarto, ainda deitado. Os paramédicos se equivocaram e retiraram Neusa antes. Encaminharam-na à ambulância, enquanto Nelson permaneceu no solo, ofegante e machucado, semidesperto, com a cabeça voltada para os pés do que era o leito da mulher. Nilson agachou-se ao seu lado. Perguntou:

– Pai, por que você fez isso?

Nelson, ainda atordoado, ergueu os olhos para o filho. Seus ouvidos zumbiam. Começou a chorar.

– Desculpa, desculpa, desculpa. Deu errado. Deu errado.

“Entusiasmo”.

Por volta das 15h30 daquele domingo, dois policiais do 42º Distrito Policial encontraram, no porta-luvas do Celta vermelho, R$ 300 em espécie, documentação (RG e CNH) em nome de Nelson Irineu Golla, natural de São Paulo (SP), 74 anos de idade, casado. Eles também retiraram do compartimento nove folhas de papel. O veículo estava estacionado na Rua Lótus, altura do número 200, no Bairro Parque São Lucas, zona leste de São Paulo, em frente à casa de repouso Novo Lar. Nas folhas manuscritas, Nelson explicava as razões pelas quais decidira matar a si próprio e à esposa. Lê-se o seguinte:

Ideia antiga

São Paulo, … de 2012.

1. Sei que para alguns vai ser considerado um ato de loucura. Mas cansado e preocupado com o meu futuro e de minha esposa, dei um fim ao sofrimento de ambos. Que meus filhos me perdoem, mas será um descanso para todos. Desculpem o trabalho que vou dar, mas isso é necessário. Sabedor de que nem eu nem ela temos recuperação, que Deus receba de braços abertos a companheira querida, e que me perdoe. Eu Nelson Irineu Golla e Neusa Maria Golla fomos muito felizes. Lembrem-se de nós nos momentos de alegria. Adeus.

2. Dê baixa no nosso benefício INSS. Senão os juros para vocês serão desastrosos. Não saquem nada além do que está no extrato atual, que deve girar em torno de 2 mil reais. Nilson, Nilma, tinha que deixar alguém tomar conta do dinheiro que ainda resta. Se eu pedisse pra vocês pra guardar esta quantia vocês ficariam com uma pulga atrás da orelha e apreensivos. Porém, o Jr. não desconfiou, não levantou a menor sombra de dúvida. Deixei com o Jr. cheques assinados do BB e o valor do saldo atual. Não discutam com o Jr. Ele recebeu esta quantia na maior inocência e pedi para não avisar vocês para não levantar suspeitas. Jr. me perdoe por te enganar.

3. Nilson, Nilma, Jr, vocês já são bastante grandes e eu atualmente ando nervoso e discutindo por qualquer coisa. Me perdoem, pois a única coisa que eu mais quis foi o bem e a felicidade de vocês. Não consegui realizar o meu desejo, mas espero que vocês consigam tudo de bom. Amem-se, esqueçam as desavenças, procurem cada vez mais um ajudar o outro. Amem a Deus para que floresça em seus corações a Harmonia. Sejam uma família exemplar. Leiam os meus rascunhos, ouçam as fitas e os CDs. Depois, se não gostarem, joguem tudo fora, façam a faxina e desfaçam tudo o que está errado ou atrapalhando na casa. Desculpem-me, tudo é difícil na despedida. Eu os amo muito.

4. Muito obrigado pela minha casa, onde a convivência com filhos, netos, genro e nora foram maravilhosos. A toda minha família que sempre me apoiou, aceitem as minhas desculpas. Sou muito emotivo (chorão) e não consigo expressar os meus sentimentos. Façam muitas amizades, para não ter uma velhice solitária.

5. Entusiasmo. Palavra grega que quer dizer “Estar com Deus”. Estar nervoso não deixa a inteligência funcionar, você fica fora da sua razão, mude suas crenças, acredite que você pode vencer, crescer, prosperar. Acredite e agradeça. Em tudo e para tudo, tenham “entusiasmo”. 25/08/2014

O que fazer com pai e mãe com problemas irrecuperáveis? Sofrimento para os filhos e os próprios pais. Afora o tempo que é desperdiçado tentando ajudar. É triste no princípio, mas no futuro vocês verão que foi a melhor e mais corajosa decisão. Faço com lágrimas nos olhos, pois a separação de vocês… Foi difícil tomar essa decisão. Por favor, mantenham-se unidos, deixem de lado as desavenças. Amem-se, procurem se ajudar mutuamente. Esse é o caminho mais certo para que vocês tenham sucesso e felicidade. Amem-se.

A Casa de Repouso Novo Lar, me perdoe, mas não pude mais suportar o estado que aconteceu à minha querida esposa Neusa. Isso que eu fiz é simplesmente uma eutanásia. Mais uma vez o meu sincero apreço, a todos que sempre me trataram muito bem. Sem mais, Nelson.

Não se esqueçam de dar baixa no INSS (pai — mãe) porque eles (INSS) irão pedir a devolução do dinheiro (benefício) com juros e correção monetária e de repente até com multa. Benefício do pai: dia primeiro do mês. Benefício da mãe: meio do mês.

Pesquisem qual o mais prático. Se possível cremem os dois corpos. Sua mãe sempre desejou ser cremada.

Nota da polícia: Constando ao final de cada folha uma assinatura ilegível.

Os policiais embolsaram as nove folhas manuscritas, as quais Nelson não veria novamente. A essa altura Neusa já havia deixado a casa em uma maca, coberta dos pés à cabeça com um lençol branco. Nelson não levantou o olhar enquanto a esposa partia.

Nelson Golla em sua casa, na Vila Prudente, em São Paulo. Imagem: Dirceu Neto.

“Deu errado”.

Na ambulância, Nelson recebeu uma dose de morfina e apagou. Quando acordou, já no quarto 209, do Hospital Estadual Sapopemba, a sete quilômetros da clínica Novo Lar, Nelson notou que um lençol apertado o retinha à cama. Tentou se livrar e percebeu uma algema no pulso direito, presa a uma barra de ferro no leito. Olhou em volta e viu dois policiais. No mesmo quarto, havia um rapaz baleado. Nelson pensou na mulher. Olhou para a janela e notou que estava trancada.

Deram-lhe mais morfina, havia uma bolsa de sangue ao seu lado. Ele sentiu inchaço no pescoço e no rosto. Tinha um curativo na porção esquerda do peito — ao jogar-se em cima da esposa, sua intenção era que o explosivo atingisse o seu coração e o coração de Neusa. Mas o plano funcionou só pela metade. Nelson analisou sua situação: preso à cama do hospital, semiconsciente, com a mulher que não lhe saía da cabeça. Voltou a atentar para a janela e percebeu que estava lacrada com arames. Talvez, pudesse desenrolá-los e jogar-se dali. Ou arrebentar o vidro com uma cabeçada — por que não? Em que andar estava, afinal?

Nelson acordou e pediu aos policiais que o deixassem ir ao banheiro. Entrou no cômodo contíguo e, novamente, observou a janela: pequena demais. Bateu levemente no espelho: plástico, não podia quebrá-lo. Naqueles primeiros momentos, ele tinha a ideia fixa de acabar com o que restara do seu tormento. Voltou à cama e, ao olhar o suporte para o soro, vislumbrou uma possibilidade. Era uma haste metálica que se dividia em duas, encaixadas no meio. Trabalhara em uma funilaria e sabia como funcionava. Quem sabe, em algum momento em que o livrassem da algema, não poderia desatarraxar o suporte, subir na cama e jogar-se em cima da metade que ficava no chão? Entraria pela barriga e sairia nas costas. Ele pensou que, numa distração do policial, poderia tentar. Sob efeito da morfina, dormiu.

Nelson sentia vergonha por ainda estar ali. Planejara mal. Ele não poderia prever a dinâmica da bomba que fizera. Seu peso sobre Neusa teria direcionado a explosão para baixo, para a mulher, ao mesmo tempo em que o lançou para longe. Era isso? O maldito braço ruim tampouco ajudara: Nelson não foi capaz de abraçar a esposa com força, o que contribuiu para que fosse lançado para fora do leito — se tivesse conseguido apertar-se junto a ela, quem sabe seu corpo tivesse absorvido mais da bomba? A explosão parou em uma costela de Nelson, sem que chegasse a quebrá-la. Ele deu entrada no hospital, segundo sua ficha médica, com “traumatismo torácico, contusão no pulmão e queimaduras de segundo grau na porção esquerda do peito e no pescoço.”

Neusa recebeu impacto maior: “fraturas em arcos costais e osso esterno; ferida lácero-contusa no coração; laceração do pericárdio; contusões pulmonares direita e esquerda; hemotórax à esquerda”, conforme o laudo necroscópico do Instituto Médico Legal Leste, assinado pelo médico legista Gonçalo Pinto de Oliveira. “O exame realizado nos leva a concluir que a causa da morte foi traumatismo cardíaco.” Mais tarde, quando sentia-se culpado, Nelson procurava aliviar-se com um pensamento: não foi a explosão, não foi o impacto. A esposa estava tão fraca que o próprio estampido, o próprio estouro já fora suficiente para que ela “morresse na hora” — ou seja, rapidamente. Em seus pensamentos, Neusa nem havia sentido.

O filho Junior foi o primeiro a vê-lo no hospital. Ao entrar no quarto, ele notou o inchaço e as algemas. Segundo a memória de Junior, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Nelson se adiantou.

– Me perdoe, me perdoe. Eu fiz errado. Não deu certo.

– Pai, por que isso? Pra que isso? Não precisava. A gente estava fazendo tudo para ela viver um pouco melhor.

– Deu errado, deu errado, deu errado.

Nelson levou o queixo ao peito. Junior sentiu pena e disse que a seu tempo tudo seria explicado. A namorada, Luciana, disse a Nelson que “tudo ficaria bem.” Os dois abraçaram-no e saíram, pois os policiais não permitiriam visitas longas naquelas primeiras horas e dias. Junior contou-me mais tarde que não consegue lembrar do que aconteceu depois. “Só sei que eu saí andando. Fiquei caminhando ao redor do hospital. Foi estranho, eu fiquei desnorteado.” Luciana pediu a um vizinho que aparecera para acompanhá-lo a distância. “Vai que dá um estalo e ele faz alguma besteira? Sei lá eu.”

Nelson manteve a intenção de suicidar-se durante um bom tempo, mas nunca como naqueles primeiros momentos. A vontade começou a arrefecer quando ele recebeu sinais de compreensão. Primeiro, das psicólogas do hospital, que conversaram com ele pela manhã e no fim da tarde. Depois, de algumas enfermeiras. Nelson passava a maior parte do tempo calado, mas seu temperamento afável com estranhos ressurgiu e, com isso, ele ganhou a simpatia dos funcionários. A história de Nelson e de Neusa, então, se espalhou pelo hospital e o quarto 209 ficou concorrido. Nelson surpreendeu-se ao ouvir algumas palavras de incentivo. “Olha, é uma paixão, um amor, uma dedicação muito grandes. Ninguém fica casado mais do que uns dez anos hoje, e vocês passaram a vida toda juntos”, disse uma enfermeira. “Mas não é possível que agora você esteja sendo tratado assim por esses policiais.” Nelson sentiu-se um pouco melhor.

Ele ainda teria de lidar com outro fato novo em sua vida: as questões legais que se criaram. O policial sempre de plantão no quarto e a algema que o prendia à cama lembravam-no de que, agora, ele era um criminoso. A delegada que atendera ao flagrante, Virginia Furlaneto Campos, do 42º Distrito Policial, comoveu-se com a história (levava-a a pensar no sogro, que morrera dois anos antes numa cama de hospital), mas não pôde deixar de indiciá-lo. Nelson foi acusado de homicídio qualificado com “emprego de meio insidioso ou cruel”, que traz “perigo para a vida ou saúde de outrem” e deveria ser recolhido à prisão “tão logo receba alta médica”. À luz da lei, não passava de um assassino. Um homem que matou sua mulher. A pena prevista era de até 20 anos de cadeia.

Quando o caso chegou à Justiça, em 29 de setembro de 2014, dia seguinte à morte de Neusa, a prisão em flagrante de Nelson foi convertida em prisão preventiva. Tão logo saísse do hospital, ele seria levado a uma penitenciária ou, na melhor das hipóteses, a um manicômio judiciário — locais que no Brasil estão longe de serem considerados seguros para idosos com pensamentos suicidas. Esperaria detido até que fosse julgado em um tribunal.

A essa altura, os filhos se desdobravam entre o enterro da mãe e a atenção para a situação do pai. Ainda na noite do domingo em que Neusa morrera, o filho Nilson telefonou para um advogado, que deu a primeira orientação: Nelson não poderia deixar o hospital de jeito nenhum. Ele que se queixasse de dores — e ninguém poderia dizer que não sentia mesmo — enquanto providenciavam a defesa formal. “O senhor vai ter que ficar aqui até a gente falar que pode sair”, disse Nilson, em uma rápida visita ao pai. “Porque, senão, depois, daqui é pra cadeia. Cadeia, o senhor está entendendo? É cadeia e não vai ter saída.”

ATO 7

“Inabalável caráter moral”.

Por uma indicação de familiares, os advogados Ivan Tozzi e Audalécio Oliveira assumiram o caso. Apresentaram um prognóstico aos filhos: Nelson tinha domicílio fixo e era réu primário (nunca tivera passagem pela polícia), o que poderia convencer um juiz a que respondesse o processo em liberdade. O problema era que, por se tratar de um crime hediondo (“em tese, assassinato”), seria preciso algo mais. Os advogados fizeram um pedido: eles teriam de provar ao juiz que Nelson realmente amava a esposa, mostrar que todas as suas ações eram pelo bem de Neusa, para abreviar um sofrimento que ele julgava insuportável. Seria preciso produzir, como disseram os advogados, um “atestado de amor”. Teria de ser rápido.

A partir daí, tudo teria de ser feito muito rapidamente.

Neusa foi enterrada no cemitério da Vila Alpina, a 10 minutos a pé da casa dos Golla, às 8h30 de terça-feira, 30 de setembro de 2014.

Os netos, Giovanni, Bruno e Breno (o filho único de Nilson, que tinha 12 anos) não queriam olhar para a avó no velório, pois não sabiam como ela poderia estar após a explosão. Depois de Nilma prometer que a mãe estava “bem natural e sem maquiagem, como ela ficava sempre”, eles entraram para se despedir. Entre os braços de Neusa havia uma fotografia dela com o marido, feita anos antes na cozinha da casa que construíram. Nelson passava o braço sobre os ombros da esposa e os dois sorriam para a câmera. Os netos haviam enfeitado a imagem no computador — fizeram um coração colorido que envolvia avô e avó.

Como Nilma passou a dizer, “junto com a mãe ela enterrou o luto”, pois não havia remédio: ela agora tinha de pensar no pai. Seria ela a responsável por correr atrás de quem pudesse atestar o bom relacionamento do casal, como pediram os advogados. Em frente ao túmulo de Neusa, lembrou-se de um dos pedidos da mãe, nos tempos em que ainda podia falar: “Cuida do teu pai, não deixa ele sozinho”, ela pedira algumas vezes. Nilma respondeu mentalmente. “Eu sei que a gente está enterrando só a carne, mãe, e que você vai estar aqui dentro de mim o tempo todo. Agora eu vou fazer o que a senhora pediu: vou lá cuidar do velho.”

Nilma voltou para casa e passou o resto do dia ao telefone. Pediu que os amigos escrevessem em cartas como viam o relacionamento dos pais. Tinha de ser pra ontem, pois o pai estava sob risco de ser preso. No dia seguinte ela percorreria as casas para pegar o que tivessem escrito. No fim Nilma reuniu 17 cartas manuscritas, que imediatamente repassou aos advogados. Ivan e Audalécio receberam o material nos primeiros dias de outubro de 2014, quando Nelson ainda estava internado no Hospital Sapopemba. Os advogados disseram que “fariam o possível” para entregar os documentos ao juiz.

Amigos da família leem carta atestando amor de Nelson por Neusa. Imagens e edição: Dirceu Neto.

O pedido de revogação da prisão preventiva de Nelson foi redigido com base no apoio dos “irmãos da própria vítima”, nas declarações de conhecidos e da proprietária da Novo Lar, que atestavam “a boa índole do acusado”. “Nelson Golla possui inabalável caráter moral e de carinho, seja com vizinhos, amigos ou parentes”, escreveram. Na sexta-feira, 3 de outubro de 2014, encaminharam o pedido à juíza que cuidaria do caso, Marcela Raia de Sant’anna, da Primeira Vara do Tribunal do Júri da Comarca de São Paulo. Esperavam que fosse o suficiente para provar, se não o amor, pelo menos que nada daquilo fora feito por maldade.

José (o Paçoca), Plácido e Jair ficaram chocados com a atitude do cunhado, mas não podiam acreditar que Nelson tivesse feito aquilo por querer o mal à mulher com quem estivera durante 54 anos. “Nunca, em nenhum momento, acreditamos que ele faria qualquer coisa de ruim para a Neuzinha. Ela estava tão fraca que eu ficava só esperando o telefone tocar para avisar que ela tinha falecido. A gente tratava como se fosse questão de tempo”, disse-me Paçoca, em um encontro em sua casa, nos arredores da Vila Prudente, meses depois do acontecido. “Ele fez o que fez porque não conseguiu aguentar ver a mulher sem poder nem mesmo beber um copo d’água.”

“Ninguém está preparado”.

No hospital onde Nelson foi tratado, os policiais também se afeiçoaram pela história do casal. Ismael era o nome do guarda que tomava conta do quarto no período da tarde. Um dia, após o café da tarde (ele tinha de se virar para comer com um dos braços algemado), Nelson desabafou: “É, Ismael, a nossa cultura não aceita esse tipo de coisa. Nossa cultura é isso que você está vendo aqui: você tem que morrer à míngua em um hospital. Aí está tudo certo e dentro dos conformes. É isso que Deus quer pra gente e é o que a Justiça quer pra gente. Agora eu virei criminoso. Infelizmente, estou errado. Sou um criminoso”.

Visitas médicas se sucediam e, aos doutores, Nelson queixava-se de dores no peito. Disse que sentia gosto de sangue na boca e que sentia tonturas. Passou por fisioterapeuta, clínico geral, psicólogo, neurologista. Sempre havia alguma dor a indicar e, como ele sobrevivera a uma explosão no tórax, os médicos não se negavam a pedir mais exames. Conhecendo-se o histórico de Nelson em relação à medicina, era irônico pensar que agora ele não queria deixar o hospital de jeito nenhum. A outra opção era a cadeia.

Por volta das 21 horas de quinta-feira, 2 de outubro de 2014, em seu quarto dia de internação, ele recebeu a visita da delegada Virginia Furlaneto. Ela vinha para tomar oficialmente seu depoimento. Nelson a recebeu de bom grado. Queria mesmo relatar sua história. “O interrogado acredita que Neusa descansou; o interrogado informa que apenas pôs fim ao sofrimento de Neusa; sua intenção era pôr fim ao seu sofrimento e ao da esposa. Nunca foi preso ou processado. Quer consignar que gostaria “que alguém acabasse com sua vida” (sic).”

O depoimento foi anexado ao inquérito policial e enviado no dia seguinte para a juíza Marcela Sant’anna, que decidiria se ele poderia ou não responder o processo em liberdade. A rapidez com que o caso se desenrolou a partir daí (do encaminhamento do testemunho de Nelson e das cartas de amigos e parentes até a decisão da juíza) surpreendeu os advogados. Na segunda-feira, dia 6, a juíza proferiu seu despacho.

Em que pese a gravidade do crime atribuído ao autuado, as circunstâncias em que ele foi cometido, a comprovação de residência fixa e de emprego lícito, aliadas à sua primariedade, demonstram que, em liberdade, não representará risco à garantia da ordem pública, à lisura da instrução processual nem à futura aplicação da lei penal. Revogo, pois, sua prisão preventiva.

No mesmo dia foi publicado o alvará de soltura de Nelson Golla. Ele poderia responder em liberdade ao processo por assassinato da esposa. A alta médica veio logo no dia seguinte, em 7 de outubro, uma terça-feira, nove dias após a internação. Apesar da saúde estável, Nelson necessitaria de acompanhamento psicológico e psiquiátrico. De todo modo, ele ficou “feliz da vida” quando recebeu a notícia da alta — estava ansioso para voltar à casa, para poder sentir-se novamente em um ambiente familiar. Ao despedir-se do guarda Ismael, como lhe era de hábito, Nelson chorou.

Mesmo com a alta, os médicos do Sapopemba fizeram um alerta aos filhos sobre um risco maior do que eventuais complicações dos ferimentos. O receio era o de que, sozinho, ele poderia recorrer ao suicídio — como fizeram dois de seus irmãos. Ele teria de ser acompanhado 24 horas. Nilson, Nilma e Junior decidiram que era uma responsabilidade grande demais zelar o tempo todo pela sua vida. Seria melhor procurar ajuda: levá-lo a uma clínica psiquiátrica, talvez? Os três netos se ofereceram para revezar-se nos cuidados ao avô, mas a família achou melhor não.

Para ganhar tempo, os filhos marcaram exames no hospital Sancta Maggiore, no bairro da Mooca. De Sapopemba, Nelson foi levado diretamente para lá. Ele acreditava estar indo para casa e, com um calmante circulando nas veias, cantarolava no banco de trás. Quando notou o local em que os filhos estacionavam o carro, revoltou-se e não parou mais de reclamar. “Puta que o pariu, eu recebi alta, que que eu tô fazendo aqui”, era a tônica dos seus resmungos.

Nelson ainda estava fraco e precisava de ajuda para andar. Os filhos temiam pelo que ele poderia fazer quando o calmante perdesse o efeito e avisaram a uma enfermeira que preparasse uma nova dose. Enquanto aguardava, Nelson dormiu em uma cadeira. Acordou minutos depois e começou a falar. Estavam ao seu lado o filho Nilson e Giovanni, o neto mais velho.

– Puta vida, eu errei lá. Estourou tudo lá, um barulhão danado. E as velhinhas lá, estão bem?

– Estão bem, pai, não aconteceu nada com elas.

– Caramba, uma hora dessas aqui vocês estariam rezando por mim no cemitério. Essa hora aqui eu já estaria lá no céu ou lá no inferno.

– …

–Tá vendo aquela janela ali? Vou ver se pulo aquela janela. Já que não deu certo lá na clínica.

Nilson e Giovanni se entreolharam. Nelson continuava dopado, a moleza na voz o denunciava, mas eles nunca o ouviram falar daquele jeito antes.

– Já estou fodido mesmo, já pulo essa janela, já vou pro beleléu e se acaba tudo.

Nilson e Giovanni se olharam novamente e a mesma ideia ocorreu aos dois.

– Ó, pai, você quer se jogar daquela janela? Vai lá, pula. Pode pular.

– Eu ajudo, vô! Quer que eu abra a janela para o senhor? Pode pular!

Nelson fitou-os com confusão.

– Sério, pai, a gente abre… Vai lá.

Nelson continuou olhando-os.

– O senhor está no térreo! — disse Giovanni, irrompendo em risos.

Os familiares não sabiam ainda como lidar com aquela situação e pareceu-lhes que bom-humor não faria mal. Nos meses seguintes eles teriam de enfrentar um tema que é tabu em muitas sociedades no mundo. Ou poderiam calar sobre o assunto, como fazem muitas famílias.

A médica que atendeu Nelson no Sancta Maggiore indicou uma clínica psiquiátrica. Havia vagas, o convênio cobria — àquela altura nem era preciso muito mais. Naquele mesmo dia, no início de outubro de 2014, Nelson foi internado na clínica Vera Cruz, no bairro do Jaçanã, zona norte de São Paulo. Ele reagiu mal, como era de se esperar: “já que todo mundo acha que eu sou louco mesmo, vou lá com os outros loucos pra ver se me encontro”. Os filhos aliviaram-se por poder deixá-lo em mãos profissionais. Eles saberiam o que fazer com um homem que, de marido dedicado, reduzira-se a assassino e potencial suicida. Era duro, mas era assim que a sociedade o veria.

Na clínica, um prédio de dois andares construído em um grande terreno arborizado, Nelson teve tempo de refletir sobre o que fez. Sentia falta de Neusa, pensava na mulher todos os dias, durante a noite e durante as longas caminhadas no pátio, sombreado por uma frondosa mangueira, uma amoreira, alguns pinheiros. Mas não se arrependia. Era um alívio não acompanhar mais a queda da mulher. Como escrevera em uma das cartas que deixara, endereçada à clínica Novo Lar, acreditava que seu ato foi eutanásia — do grego “morte boa”, quando há consentimento com a pessoa que vai morrer.

Nelson falou bastante desse assunto na Vera Cruz, em consultas diárias com psicólogos e em terapias de grupo. Seu entendimento de eutanásia, basicamente, era evitar um sofrimento que considerava desnecessário. Neusa estava sofrendo, há quatro anos só decaía e dava sinais de que não melhoraria mais — o que estava fazendo aqui, ainda? “Aquilo é uma judiação. Você vê que eram pessoas que não tinham mais recursos, não tinham mais conserto. Ficam vegetando lá. Isso não pode”, ele dizia, com tom de voz baixo e melancólico. Exaltava-se logo depois: “Ficam vegetando lá na cama! Tenho um pensamento de que é melhor morrer do que deixar sofrer. Eu via as velhinhas lá. Puta que o pariu. Dava dó! Fica só deitadinha, esperando a morte chegar. Se é pra deixar os velhos esperando a morte chegar, já dá um jeito de abreviar a morte deles, fazer morrer mais cedo.”

No caso de Nelson, a incapacidade de tolerar a vida que levava (e que a mulher levava) foi fundamental para que tomasse sua decisão. Aos profissionais da clínica Vera Cruz, ele repetira suas razões: “Você pode até ser contra a eutanásia, mas basta ir numa casa de repouso, num asilo, e vai mudar automaticamente de opinião. A não ser que vá só uma vez. Mas se for todos os dias… Se for todo dia, você muda de opinião”.

Após quatro anos acompanhando o declínio da mulher, ele julgou que a qualidade de vida que ela tinha já não era mais suficiente para que se mantivesse viva.

Ao tomar sua decisão, Nelson disse ter pensado nos pedidos feitos por Neusa meses antes, quando ainda podia falar. Ela dizia “quero morrer” e aquilo não lhe saía da cabeça. Depois que tudo acabou, Nelson disse aos filhos, à polícia e aos seus advogados que Neusa sabia do que ele planejava. Foi também o que ele disse a mim. Não era um pacto, não era um plano fechado, com data e hora para acontecer. Mas ele tinha essa ideia. Tinha essa intenção. Nelson comprara os morteiros e queria tomar uma decisão. Havia dito à mulher mais de uma vez que a tiraria dali. Conversava com ela sobre isso. Neusa já não falava, mas ele acreditou que ela entendia. Após mais de meio século juntos, como não iria entender? Ele achou que a compreensão era mútua e considerou que aquele também era um desejo dela.

Só não foi mais enfático, não criou um “pacto” porque nem ele próprio tinha certeza se teria coragem suficiente para fazer aquilo. Em uma de nossas conversas, deixou isso claro.

“Ninguém está preparado para nada disso. Pode refletir o quanto quiser, que, na hora, ninguém está preparado.”

“Tinha que conscientizar, porra”.

Legalmente, não faz diferença a Nelson se o que ele fez foi ou não foi eutanásia. Como o processo que corre contra ele não o deixa esquecer, a prática de eutanásia é crime no Brasil (enquadrada como homicídio) e considerada antiética pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Médicos não podem dar a um paciente em final de vida a chamada morte piedosa. Quanto mais um cidadão comum. Outro problema era a forma como Nelson escolhera fazer o que fez.

Nas sessões de terapia individuais, ele falou com os psicólogos sobre lugares onde a eutanásia era permitida. “Lá na Europa tem lugar que pode, mas no Brasil ainda vai muito longe, o país é muito religioso.” Os profissionais citaram alguns casos emblemáticos, como a da americana Terri Schiavo, que, em 1990, sofreu uma lesão cerebral que a deixou em estado vegetativo, aos 27 anos. Em 2005, sua família conseguiu permissão para retirar o tubo de alimentação que a mantinha viva e ela se tornou um dos símbolos do movimento pelo direito de morrer nos Estados Unidos. Hoje, cinco estados americanos permitem a eutanásia: Oregon, Washington, Vermont, Montana e Texas.

A eutanásia também é permitida por lei na Holanda, Bélgica e Luxemburgo. A Suíça permite suicídio assistido — com clínicas especializadas na prática — desde 1942. Vários outros países europeus autorizam ajuda para morrer — como Alemanha, Áustria, Suécia e Dinamarca, entre outros — com gradações de tolerância e legislações específicas. Na América do Sul, Uruguai e Colômbia a Justiça não penaliza quem comete o “homicídio piedoso”, embora a eutanásia não esteja legalizada como prática.

Nelson dissera aos psicólogos que “por aqui, ninguém quer levar esse assunto adiante.” “Os políticos engavetam esse tipo de coisa, aborto, tudo, quando chega pra eles. Tinha que se conscientizar, porra”, completou. No Brasil, a discussão sobre a liberdade para escolher a própria morte ainda é incipiente. Há avanços, como a Lei estadual nº10.241, de 1999, que permite às pessoas, dentro do Estado de São Paulo, “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida.” Outro avanço ocorreu em 2006, quando o CFM aprovou uma resolução (1805/2006) que prevê que, “na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, é permitido aos médicos limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.” Nelson não sabia da existência dessas normas, nem foi informado nas instituições de saúde por onde passou se o caso de Neusa poderia se encaixar em alguma delas.

Procurei o professor de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Reinaldo Ayer de Oliveira, autor de 13 artigos acadêmicos sobre eutanásia e terminalidade da vida, e contei-lhe a história de Nelson. Ayer participou das discussões que culminaram na Resolução nº1805, do CFM, e expôs um panorama sobre como a terminalidade da vida vem sendo tratada no Brasil a partir de meados dos anos 2000. “Primeiro, o código de ética médica decidiu o que não queremos: devemos denunciar a morte ruim, que é a distanásia, o prolongamento desnecessário da vida. Isso é proibido”, iniciou o professor, que também é conselheiro do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp). “Depois, chegamos à conclusão de que o que queremos é a ortotanásia, a morte natural, no tempo certo, sem interferência da ciência em casos incuráveis e sem persistência terapêutica em pacientes irrecuperáveis. É um assunto que vem evoluindo. Agora, eu acho que está chegando a hora de discutir a eutanásia. A gente tem muito temor, não está no Código de Ética Médica, a legislação brasileira proíbe, mas estou notando que está chegando a hora de discutir a fundo a eutanásia e o suicídio assistido no Brasil.”

Não se trata apenas de crença, mas de pressão social, ele explicou. Quando um tema começa a ser discutido nos conselhos de Medicina, disse-me, é porque, de alguma forma, já acontece na sociedade. “Temos uma situação interessante hoje. Há pacientes que são mantidos em cuidados paliativos, às vezes, recebendo algum tipo de tratamento, e eles estão desesperançosos. Então, eles não veem mais motivo, não encontram mais um porquê de estar vivendo. E eles reclamam disso: estou cansado, não é o que eu quero… E poderia ser ofertado a esse indivíduo: então, o senhor quer partir? Ah, eu acho que eu quero. E, então, a gente pensa: será que isso já não está acontecendo? A gente sempre discute em função daquilo que pode estar acontecendo. Há alguns médicos que têm essa dinâmica com seus pacientes. ‘O que o senhor está achando?’ ‘Estou achando que não está bem.’ E aí a ciência entra para ajudar.”

A angústia causada pelo próprio envelhecimento da população está na raiz do crescimento do apoio ao direito de morrer, especialmente em países ricos. Não é à toa que Estados Unidos, Canadá e muitos países europeus — onde pessoas acima de 65 anos compõem os grupos populacionais que crescem mais rapidamente — se mantêm na dianteira desse debate. O assunto, inclusive, foi capa da prestigiosa revista britânica The Economist, no início de julho de 2015. Essa também é uma das críticas de quem se opõe à prática: que não são os grupos idosos os maiores interessados em saídas como o suicídio assistido, mas uma geração mais jovem, que busca o conforto de saber que poderão decidir como terminarão suas vidas.

“Matar-se, em certo sentido e como no melodrama, é confessar. […] Trata-se apenas de confessar que isso ‘não vale a pena’. Viver, naturalmente, nunca é fácil. Continuamos fazendo os gestos que a existência impõe por muitos motivos, o primeiro dos quais é o costume. Morrer por vontade própria supõe que se reconheceu, mesmo instintivamente, o caráter ridículo desse costume, a ausência de qualquer motivo profundo para viver, o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento”, escreveu o filósofo franco-argelino Albert Camus, em seu célebre ensaio sobre o suicídio, O Mito de Sísifo.

Nelson já não conseguia mais refletir sobre o que estava vivendo — queria apenas tomar uma decisão. Atingira um daqueles “lugares desertos e sem água onde o pensamento chega aos seus limites”, como escreveu o filósofo francês. Ele sentiu o impulso necessário apenas quando foi contrariado pela auxiliar de enfermagem. “O que desencadeia a crise é quase sempre incontrolável”, prosseguiu Camus, para quem um gesto pequeno “pode ser suficiente para precipitar todos os rancores e todas as prostrações ainda em suspensão.” No mesmo ensaio, Camus disse que “é difícil fixar o instante preciso, o percurso sutil em que o espírito apostou na morte.” No caso de Nelson, pode-se iluminar pelo menos parte desse caminho, com base em suas memórias, angústias e frustrações.

Em determinado momento, ele deixou de ver sentido na vida que levava: de casa para a clínica, algum tempo com a mulher debilitada, de volta para casa. Ele acreditava que seu outro braço logo ficaria ruim, depois, as pernas, e ele em breve também estaria acamado. Não quis esperar por isso. “Não há nada mais especificamente humano que o suicídio, pois apenas o ser humano é capaz de refletir sobre sua própria existência e de tomar a decisão de dar-lhe fim”, escreveu o sociólogo francês Jean Baechler, outro estudioso do tema.

No mundo, uma pessoa se suicida a cada 40 segundos — são 1 milhão de mortes por ano, segundo dados da OMS compilados pelo psiquiatra brasileiro José Manoel Bertolote, criador do Programa Global de Prevenção ao Suicídio da mesma organização. Comparando-se com as médias mundiais, as taxas de suicídio no Brasil são consideradas baixas: aparece na 72ª posição na classificação de países com maiores “taxas” de suicídio no mundo (chega-se a essa medida dividindo-se o número de casos de suicídio pelo número de pessoas em risco). Consideradas as médias mundiais, as taxas de suicídio mais elevadas são encontradas entre as pessoas mais idosas — com pico na faixa etária dos 75 anos. “Há mesmo uma relação direta positiva entre idade e taxa de suicídio”, escreveu Bertolote no livro O Suicídio e sua Prevenção.

Poucos estudos no Brasil relacionam suicídio e idade avançada. Um dos mais completos deles, feito em 2012 por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, mostrou que, em dez anos, 91.009 pessoas se suicidaram no país. Do total, 14,2% (12.913 óbitos) ocorreram com pessoas com 60 anos ou mais — média anual de 1.076 idosos, ou três suicídios de pessoas idosas por dia no Brasil. Os autores do estudo fazem a ressalva de que os números não refletem toda a realidade, pois sabidamente há um sub-registro da mortalidade por suicídio, por questões religiosas, estigma, preconceito, implicações policiais e legais. “O suicídio, em todas as idades, é um fenômeno complexo, de causas múltiplas, e não se pode atribuir sua ocorrência a um único evento”, ressalta a coordenadora do estudo, Cecília Minayo. Pode-se falar em fatores de risco comuns a essa fase da vida. “Os principais fatores são o apoio social reduzido, o isolamento, o luto, o abuso do álcool, a perda da independência, a depressão e doenças limitadoras típicas da idade”, explicou.

O estudo mostrou também que suicídios masculinos ocorrem muito mais do que os femininos: em alguns municípios, chega a ser até quatro vezes mais frequente. Os métodos escolhidos por homens costumam também ser mais violentos. Para homens e mulheres, a forma mais comumente escolhida é o enforcamento (58,2% dos suicídios masculinos e 49,8% dos femininos). Entre os homens, aparece em segundo lugar o uso de armas de fogo (14,9% dos homens se suicida assim, ante 4,5% das mulheres).

O governo brasileiro lançou em 2006 um Plano Nacional de Prevenção ao Suicídio, que contempla “organizar uma linha de cuidados integrais, com promoção, prevenção, tratamento e recuperação, em todos os níveis de atenção” no sistema de saúde brasileiro. Foram elaboradas cartilhas e feitos discursos sobre a prevenção do problema. Falou-se em tratamento da depressão, programas de exercício físico, de estímulo para o contato social e em projetos de identificação de pessoas sob risco. Mas o plano não saiu do papel.

Em relação à eutanásia, em comum entre os países que permitem essa prática está um forte reconhecimento do princípio da autonomia — cada cidadão tem liberdade e poder de decisão em relação a todas as fases da vida, inclusive à morte. “Um dos pilares dessa autonomia é a preocupação com a dignidade da pessoa. Eu me relaciono com o meio, com quem quero me relacionar, como me relaciono. Em determinado momento, a pessoa pode decidir se quer ou não continuar”, disse-me o professor Ayer. Na Bélgica, um dos países que autoriza a prática, a eutanásia é definida como “o ato, realizado por terceiros, que faz cessar intencionalmente a vida de uma pessoa, a pedido dessa pessoa.”

Trecho do diário de Nelson Golla.

“Pareceu estar sorrindo”.

Nelson deixou a clínica Vera Cruz em uma sexta-feira, 19 de dezembro de 2014. Haviam se passado quase 50 dias desde a explosão que matara Neusa e que o poupara. A partir daquele mês, encontrei os filhos de Nelson e de Neusa em várias oportunidades. Eles disseram acreditar que a mãe sabia e concordava com o plano do pai. “Se eu estou junto à minha mulher há cinco anos e nos entendemos só pelo olhar ou pelo tom da voz, imagine como é depois de mais de cinco décadas casados?”, disse-me Junior. “Ela falou tantas vezes que queria morrer. Desde que começou a piorar, ainda em casa, quando não queria mais sair do quarto. Depois, na Novo Lar, ela falou várias vezes. Nos momentos deles sozinhos, ele deve ter falado a ela, eles devem ter combinado. Ele não cometeria esse ato sem que ela consentisse. É como eu acredito que aconteceu”, disse Nilson.

A filha Nilma diz que o pai “não ousaria” fazer o que fez sem o aval de Neusa. “A vida inteira meu pai sempre esperou uma resposta final da minha mãe. Antes de fazer alguma coisa, ele sempre perguntava e ela tinha que responder: sim ou não. Tenho certeza de que, se minha mãe manifestasse ‘não, não vai fazer isso’, com certeza ele não faria”, ela disse.

Nenhum dos filhos e netos disse guardar rancor da atitude de Nelson. “A forma como ele escolheu dá pra questionar, isso é óbvio. Mas ele estava desesperado. O que ele fez foi um alívio para todos nós, principalmente para minha mãe”, disse Nilson, o único que entrou no quarto na Novo Lar após a explosão. “Olhei para ela lá na cama e ela pareceu estar sorrindo. Acho que naquele momento ela teve uma prova de que ele realmente a amou de verdade todo esse tempo. Pensou ‘poxa, ele realmente me ama até o final’. Por isso, eu acho que ela estava sorrindo, teve aquele sentimento, sentiu uma realização. Uma realização total.” Para Nilson, a mãe morreu realizada. É como ele vê.

A enfermeira Luciane estava no pátio da clínica, sentada a menos de três metros da janela do quarto de Neusa. Ela disse à polícia e, depois, a mim, que não ouviu som algum vindo do quarto. Nem os resmungos habituais que Neusa emitia quando sentia dor, nem os gritos que soltava quando a levavam para o banho, ou quando a mudavam de posição na cama. Era domingo e a clínica estava em silêncio, quebrado apenas pela explosão. Luciane acredita que esse é um bom indício de que Neusa sabia dos planos do marido. “Imagina você em uma cama, uma pessoa vem e põe uma bomba no seu peito. Você não tem reação? Ela podia gritar. Mesmo que tivesse dificuldades de falar, ela gritava. Mas não houve gritos. Na hora, estava um silêncio tão grande que eu pensei que ele deveria estar parado na beira da cama, sem conversar. Então, eu acho que ela queria isso. Porque, imagine, você numa cama, vem alguém fazer alguma coisa, sua defesa vai ser o grito. Vai gemer alto, pelo menos. E ela não teve estímulo nenhum. Estava um silêncio, só escutei o estouro. Aquele estrondo horrível.”

“É preciso imaginar Sísifo feliz”.

Nelson dorme no sofá de couro cinza da sala da casa que construiu. Desperta de repente, no meio da noite. Pé ante pé, dirige-se ao banheiro. Tenta não fazer barulho para não acordar a mulher. Neusa tem o sono leve e ele não quer atrapalhar seu descanso. Nelson abre a porta do quarto devagar e coloca meio corpo para dentro. Então, se recorda que a esposa não vive mais ali.

Mais de 30 anos juntos naquela casa. Não foram uma nem duas as vezes em que Nelson levantou de madrugada e foi até a cozinha preparar o café, pensando que preferiria trocar de roupa no quarto antes, mas que seria melhor não, pois não queria despertar a esposa. Levava alguns momentos para perceber que já podia dispensar esse zelo. Entristecia-se. Ou, por outro lado, seria possível que naquelas horas mortas da manhã, naqueles segundos de confusão e torpor, Neusa estivesse mesmo ali, novamente em casa, ao seu lado? Ele esperava que um dia a mulher aparecesse, para falar como era o lugar onde estava.

No início, Nelson me contava apenas histórias tristes como essa.

Encontrei-o pela primeira vez na noite de 4 de fevereiro de 2015, uma quarta-feira, após meses de contatos e encontros com seus filhos. Fazia um mês e meio que ele voltara à casa e pouco mais de quatro meses desde a explosão. Naqueles dias, Nelson evitava sair, pois poderia encontrar conhecidos que perguntassem sobre o que fizera. Ele me disse que sentia vergonha, que era melhor evitar.

Nelson Irineu Golla, 74 anos. Imagem: Dirceu Neto.

Minha preocupação era não dizer nada que pudesse o magoar — tudo era muito recente ainda. Perguntei como ele estava e Nelson imediatamente levou a conversa para os tempos de internação na clínica Vera Cruz. “Lá fui tratado que nem criança, sabe? Todo mundo me cuidando e me paparicando, dizendo o que eu podia e não podia fazer. Eu até estranhava, pode comer isso, não pode comer aquilo… Gostei muito.” Não percebi na hora, mas, após alguns encontros, pensei entender o que ele sentia: depois de anos cuidando de outro, era satisfatório ser cuidado novamente.

Sempre sentado no sofá da sala, escutei-o contar sua história. Perguntei sobre como ele conheceu a esposa e Nelson resumiu os 54 anos de união em menos de três minutos. Ele preferia falar sobre o que fizera na casa de repouso. Pensei com uma espécie de alívio que minha presença ali poderia servir pelo menos para que ele desabafasse. “Ainda antes de casar, a gente já tinha a intenção de construir uma família, ter filho, comprar uma casa. Já tinha o nome do primeiro filho antes de nos casar! Você se transforma completamente, fica enraizado, e já não tinha como viver sem ela”, ele disse. E prosseguiu, resumindo a decaída da mulher e a decisão que tomara em uma só frase: “Ela ficou ruim, ruim, ruim, e aí eu fiz isso aí que você já sabe.” Foi a forma como ele introduziu o tema que me levou a procurá-lo.

Foi ele também quem trouxe à tona uma das questões intrigantes de sua história: por que escolheu uma bomba?

“Eu tinha que fazer alguma coisa. Aí eu vi esse pessoal que fica soltando rojão no parque. Quando tem jogo, eles soltam esses fogos. E aí me deu a ideia. Era uma coisa que estava à mão. Comprei umas bombas para testar, vi que o estouro era forte… Não sei de onde tirei força. E aí foi.”

Seria mesmo apenas isso? Facilidade, porque estava à mão? Mais tarde, depois de falar com Nelson muitas vezes, lembrei-me de Camus. A palavra que definiria a escolha dele, para mim, passou a ser reconhecimento. Para o filósofo francês, a existência humana é definida pelo que ele chama de “absurdo”, que nasce do confronto entre duas forças opostas: o apelo do homem pelo conhecimento de sua razão de ser, de encontrar um sentido para a vida, e o silêncio irracional, ou o desprezo, do mundo que o cerca. Esse absurdo, para Camus, seria a força geradora de uma energia que, embora rejeite o homem, alimenta sua vida e suas paixões. Pensei na necessidade que Nelson sempre tivera de ser reconhecido como o homem da casa e em como se esforçara o quanto podia para melhorar financeiramente — e em como sentia que não conseguira. Pensei também em seu gosto pelo trabalho intelectual e pelas artes. Nelson é uma pessoa genuinamente curiosa e tem talentos pouco explorados, como o apreço por invenções, pela leitura e pela escrita. É também uma pessoa que não recebeu os estímulos necessários para desenvolver esses talentos. Teve de se dedicar ao trabalho braçal a vida toda. Admirava locutores de rádio e enchia cadernos com frases de autoajuda nas horas vagas.

Seria a busca por reconhecimento, nunca plenamente satisfeita, uma das razões para a escolha que fizera? A forma como optou por dar fim à vida da esposa e à sua vida teria relação com isso? Se o que Nelson queria era ser ouvido, uma explosão poderia ser um método eficaz. Camus é importante para estudiosos do tema por ter recolocado o suicídio no terreno da filosofia. Ele começa o ensaio O Mito de Sísifo, publicado em 1942, indicando que considera o suicídio “o único problema filosófico realmente sério.” Ou seja, julgar se a vida vale a pena ser vivida ou não.

Certa vez, perguntei a Nelson se ele era feliz. Sua resposta me surpreendeu, principalmente considerando o momento duro que ele vivia. “Feliz você é toda a sua vida. Há períodos de tropeço, claro. Mas, se parar para pensar, vai ver que viveu mais momentos felizes do que infelizes. É só reunir os cacos da sua vida. A gente é que não se dá conta, porque fica preocupado trabalhando, sempre descontente com o emprego que tem, sempre querendo mais. O indivíduo vai ser feliz se ficar contente com aquilo que tem.” A resposta me fez pensar novamente no ensaio de Camus.

Em O mito…, o filósofo compara a existência humana à de Sísifo, personagem da mitologia grega condenado pelos deuses a empurrar uma rocha até o topo de uma montanha, de onde ela tornava a cair. Ele, então, desce e recomeça o trabalho — e, assim, eternamente. Parece uma maldição, mas Camus não vê dessa forma. “Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela durante toda a descida. […] É durante esse regresso, essa pausa, que Sísifo me interessa.” Enquanto desce até o pé da montanha, ele sabe o que virá depois, tem consciência de sua sorte. “Um rosto que padece tão perto das pedras já é pedra ele próprio! […] A clarividência que deveria ser seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo. […] Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence.”

Abraçar o destino com orgulho e desafio, para Camus, deve ser suficiente para garantir a felicidade a um homem. E a superação do absurdo da existência humana (o embate entre o silêncio do mundo e a busca por uma razão para estar aqui), portanto, está na consciência das dificuldades da vida e na própria execução da tarefa que se aceita como sua, mesmo que não haja um sentido para ela — afinal, “o homem absurdo (nesse caso, Sísifo) diz que sim e seu esforço não terá interrupção. Se há um destino pessoal, não há um destino superior ou ao menos só há um (a morte), que ele julga fatal e desprezível. De resto, sabe que é dono de seus dias.” Camus conclui o ensaio assim: “Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.”

Passei a ver de outra forma as idas e vindas de Nelson, diariamente, entre a casa e a clínica — agora, para mim, esse era o momento em que ele adquiria consciência de sua sorte, inclusive da inutilidade do que vivia junto da mulher. Passou a desprezar sua condição e a dela. Seria esse o momento em que Nelson se tornara superior ao seu sofrimento, mais forte do que a sua rocha, e teria assim, finalmente, decidido dar um fim a ele? Seria essa a forma que encontrou de superar o absurdo de sua existência naquele momento?

Nelson na praça perto de sua casa, onde passou os momentos que antecederam a explosão. Imagem: Dirceu Neto.

Em outra ocasião, perguntei o que Nelson entendia por felicidade. Ele estava diante de uma câmera de vídeo, com a qual gravávamos um depoimento seu. “Felicidade é estar aqui comentando um pouco da minha vida”, disse, sem hesitar. Pensei, então, que a tentativa de cometer o duplo suicídio (ou a eutanásia, como Nelson chamou) era parte de sua tarefa. E que a tomada de consciência de que nem tudo na vida é trabalho também formava sua vitória, talvez tardia, diante de um destino que ele se impusera — ele próprio se impusera, sozinho e no terreno dos homens, pois há tempos duvidava da existência de Deus.

Nelson não esperava continuar aqui. Mas, como permanecera, pensei que ele poderia sentir ter recebido duas recompensas. Sua esposa de toda a vida — ao lado da qual padecera e junto de quem se tornara rocha — não sofre mais; e ele conseguiu, de alguma forma, ser ouvido. Agora, ciente do destino que criou para si, Nelson terá de prosseguir na luta para levar sua rocha ao cume. E isso — a consciência de que esse é seu destino e de que ele é obra sua — deve ser o suficiente para encher-lhe o coração. Passei a pensar que, para ser justo com ele e assim poder contar sua história, era preciso imaginar Nelson feliz.

Imagens e edição: Dirceu Neto

“Até aqui, com certeza, ela sabe chegar”.

A principal preocupação de Nelson na atual fase da vida é o desfecho judicial do seu caso. Ele teme ser condenado pelo assassinato da esposa. “Infelizmente, para a lei, estou errado. Vamos ver agora o que vão dizer. A única coisa que eu pensei foi em livrá-la de um fardo. Ela descansou, eu vejo assim. Uma pessoa não conversar, não se movimentar, estar deitada numa cama com uma sonda do nariz ao estômago… Não sei, acho que acabou. Mas a nossa cultura não admite esse tipo de coisa. Não pode. Então, tem que morrer sofrendo, no desespero. Será que isso é o correto? Taí uma coisa para se analisar. Acho que o ser humano, nesse aspecto, é muito maldoso. Ele não pensa em abreviar a vida do outro. Ele quer que continue. Agora, quem é que tem vantagem com isso aí? Quem não passa por essa situação, condena. Mas quem conhece, quem vive esse sofrimento, pensa duas vezes antes de falar qualquer coisa”, foi como ele se defendeu quando perguntei se o que ele fez foi pelo bem da mulher.

Perguntei se ele se arrepende. “Não sei se fiz certo ou fiz errado, fiz aquilo que eu achava melhor no momento e que eu achava que era melhor para ela. Mas arrependido eu não estou. Porque ela já estava sofrendo muito. Acho que o ser humano não foi feito para isso. O ser humano foi feito para viver feliz, trabalhar, passear, brincar. Agora, eu não sei…”, ele disse. Prosseguiu emocionado. “A Neusa já não tinha… Coitada… Ela falava pra mim: não aguento mais. Ela queria vir embora pra casa. Não queria ficar na clínica, queria vir embora, coitada. E não tinha mais jeito.”

No Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, onde tramita o processo de Nelson, o caso ficou conhecido entre advogados e estagiários como “Romeu e Julieta da terceira idade”. Estive lá em abril para encontrar com o defensor público Ivan Laino, que atua no caso de Nelson desde que os advogados Ivan e Audalécio deixaram o caso, após a revogação da prisão preventiva. Para o defensor, seu cliente já está pagando a pena: já vive sem a mulher com quem foi casado durante mais de meio século. “Foi por piedade, e não por crueldade. Basta conhecer a história para se convencer”, disse Laino. Ainda não há data para o julgamento, que será por júri popular. A primeira audiência pública, em que testemunhas serão ouvidas, está marcada para 16 de novembro. Não há no processo quem se posicione contra Nelson — nem a clínica Novo Lar, nem os familiares de Almerinda e Luisita, nem os irmãos de Neusa, partes que poderiam acusá-lo, estão dispostas a isso.

Aos poucos, à medida que voltávamos a nos encontrar, as histórias que Nelson me contava ganhavam traços mais positivos. “Luciana, preciso encontrar alguma coisa para fazer da minha vida, não posso ficar aqui parado”, ele desabafou para a namorada do filho Junior, em fevereiro. Indicava disposição para seguir adiante. Os filhos incumbiram-no de pequenas tarefas: praticamente todas as compras da casa eram agora realizadas por Nelson, mesmo que conseguisse carregar pouco peso a cada vez. Passou a ir ao mercado quase todos os dias: valia a pena, pois, em alguns dias, havia promoção de um produto, outros, promoção de outro produto, e assim Nelson levava o que precisavam. E sentia que economizava. Ao fazer as contas, ele recordava os tempos em que era a esposa a responsável pela tarefa. Às vezes, olhava para o alto, mas já não chorava.

Nelson dispensou a psicóloga que lhe indicaram após uma única consulta (“ela não sabia de nada”), mas em compensação começou a participar de sessões de terapia de grupo que há no parque em frente, o mesmo em que meses antes refletia se teria coragem para concretizar o plano que fizera para a mulher e para si. Gostou tanto que perguntou à atendente se poderia comparecer todos os dias. Duas vezes por semana era o máximo permitido, explicaram-lhe, pois havia mais gente a atender. Resignou-se e tratou de procurar outras ocupações para o resto da semana.

Ele tem aproveitado para ampliar seu repertório culinário. Voltou inclusive a pegar o metrô, após anos de intervalo. Acompanhado do filho Nilson, foi até o Bairro da Liberdade, tradicional reduto oriental na região central de São Paulo. Queria fazer compras em um mercado japonês, onde comprou “ingredientes legítimos” com os quais prepararia um yakisoba à família. Na sessão de terapia de grupo que coincidiu com o dia de seu aniversário, Nelson levou um bolo de cenoura que ele mesmo preparou. “Cresceu direitinho e ficou até meio cremoso”, ele contou depois, desculpando-se por não ter me convidado: só podia o pessoal do grupo.

Por enquanto, não se fala entre os Golla sobre a morte de Neusa. É a forma que encontraram para tocar a vida até cicatrizarem as feridas — o filho Junior não concorda com isso e acha que, em breve, eles terão de encarar o que aconteceu. “Não é maquiando a realidade que vamos conseguir realmente superar isso tudo. Temos de entender o que erramos e o que acertamos, do início ao fim da situação que vivemos. Não só meu pai, mas todos nós.”

Nelson vem criando novos hábitos, mais saudáveis. Todas as manhãs, ele caminha até o topo de uma colina próxima de casa, onde há um parque ecológico. Exercita-se durante meia hora nos equipamentos de ginástica, “umas baboseiras que tem lá pra manter o ânimo”, segundo ele descreveu, e passa o tempo “respirando um pouco do ar do mato.” Leva algumas garrafas PET que sempre há em casa (eles se habituaram a beber muito refrigerante) até o centro de reciclagem do parque. Ressente-se apenas do fato de os frequentadores não conversarem, não se cumprimentarem, muitas vezes, não dizerem sequer bom dia. “Parecem todos inimigos!”

Certo dia, em março, Nelson recebeu da filha Nilma a notícia de que ele tinha consulta marcada com um geriatra.

– Geriatra, Nilma? Geriatra é pra velhinho! Vou lá fazer o quê?

– Mas pai… — preparou-se para argumentar Nilma.

A filha foi interrompida.

– Tô brincando, tonta! Vamos lá, sim.

Nelson disse-me ter encontrado no geriatra, o Dr. Eduardo, “mais do que um médico: um amigo.” Ele falara o mesmo aos filhos, que se surpreenderam tanto que nem graça fizeram com a mudança de postura, para não o irritar. Melhor deixar assim. Além de uma consulta tradicional, o doutor deu-lhe conselhos. “Você tem tudo: tem uma filha que te traz aqui, não tem horário nenhum pra fazer as coisas, pode caminhar no parque, ir ao clube, conversar com as pessoas… Tanta gente aí que trabalha da manhã até a noite e não tem tempo nem para ver os filhos. Aproveite!” Ao final da consulta, Nelson sentiu-se confortável o bastante para perguntar — desculpando-se pela “franqueza e curiosidade” — qual a religião do médico. “Sou espírita”, disse-lhe o geriatra. Nelson continua decepcionado com o catolicismo, e por isso respondeu: “Logo imaginei, tinha mesmo que ser!”.

“É um cara de uma bondade, de um carinho… Ele me falou pra chamá-lo de ‘você’ e não de ‘senhor’! Tem muito médico que não é assim tão humilde hoje. É um cara muito bacana!”, disse-me Nelson. “A essa altura você sabe que eu nunca gostei de ir ao médico. Mas não vejo a hora de ir lá bater um papo com ele! Ele me deu uns remédios pra tomar, então, eu tenho que aguardar um tempo, mas vai demorar muito pra tomar tudo. Então, vou esperar mais uns dias e vou ligar pra ele pra ir lá fazer a consulta. Ele disse que eu podia, então, é o que eu vou fazer! Um médico muito bom.”

No parque em que faz as sessões de terapia, há também aulas de dança para a terceira idade. Outro dia, uma das companheiras do grupo perguntou se ele não dançava. Nelson lembrou-se de que, na família, de dez irmãos, todos dançavam — exceto ele e mais um, Vitorino. Por timidez? Ele não sabia dizer. Agradeceu à senhora e contou-lhe uma história. “Minha esposa, Neusa, gostava de dançar. Ela dançava muito bem. Aí começamos a namorar e, desse dia em diante, ela nunca mais dançou. Por minha causa. A não ser quando meu filho mais velho estava grande, aí ela dançou com ele em uma festa. Mas só. Nunca mais. Eu até brincava com ela que um dia ela me ensinaria a dançar… A gente se arrepende de tanta coisa nessa vida… Mas, então, eu não posso. Se for aprender a dançar agora, será um desrespeito. Porque ela se dedicou tanto a mim que nunca mais dançou, nunca mais nem pensou em dançar! Então, se eu não aprendi quando ela estava viva, vou aprender agora? Não posso.” Nelson está mudando, mas não tanto assim. Na altura em que falamos, ele me disse estar vivendo “um dia de cada vez”, sem mudanças bruscas — uma postura interessante, recomendada por psicólogos especializados em luto.

Ele não voltou a dormir no quarto do casal. Prefere adormecer no sofá, com a TV ligada. O filho Junior apareceu um dia com a ideia de vender a casa e se mudarem todos para o interior. Eles tinham familiares em Presidente Prudente, o pai gostava do campo, eles podiam se adaptar — por que não? Nelson não respondeu diretamente, disse apenas que “teria que ver.” Mas o que ele pensou foi que não mudaria daquela casa de jeito nenhum. Pensou que lutara tanto para construir o sobradão de três andares onde viviam há décadas e que não abandonaria aquela casa jamais. Somente quando “fosse embora”.

Sua esposa, Neusa, ainda não havia aparecido para ele, afinal. “Ela pode ficar perdida se quiser voltar e eu não estiver em casa. Até aqui, com certeza, ela sabe chegar.” No dia em que Neusa aparecer, ele pensou, ela saberá onde encontrá-lo. Talvez ele esteja na cozinha, preparando a refeição da família. Talvez esteja dormindo no sofá, talvez até durma sentado. Pode ser que ele desperte de súbito, um pouco assustado, pois ultimamente é assim que tem sido. Ele logo vai perceber. Ficará feliz por acordar novamente ao seu lado.

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Vitor Hugo Brandalise é repórter do caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo. Foi também repórter de Cidades do mesmo jornal (entre 2008 e 2013) e editor de reportagens da revista GQ Brasil (até 2014). Formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007), é mestre em Comunicação pela Universidade de La Coruña. É vencedor de sete prêmios nacionais e internacionais de reportagem, entre eles o Petrobras de Jornalismo 2013, ano em que também publicou o livro-reportagem O Theatro Municipal de São Paulo (editora Senac).

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